quarta-feira, dezembro 31, 2003

Os telejornais

Olhar, mais uma vez, as alfarrobeiras ainda jovens. O pomar de amendoeiras à espera de florir no mês de Janeiro. O círculo da eira. O tanque. Os muros de cal. Os alcatruzes da nora. O armazém de guardar a fruta, em sendo o seu tempo. A vinha. A horta. As laranjas iluminadas contra o Inverno. E desejar que seja este o mundo verdadeiro. Que os noticiários televisivos sejam apenas sombras. Sombras de uma realidade que já não é possível reflectir sem distorções ou desvios.

terça-feira, dezembro 30, 2003

E nos piruns?

Luz: e no Pai Natal? Você acredita no Pai Natal? E no Peinto da Cuosta?

Segredos

Não regressar à procura do que chegámos a suspeitar que ficaria para sempre, intacto, à nossa espera. Regressar apenas. A um caminho que corre paralelo às arribas de xisto cortadas a pique, por vezes em fatias, abertas como as páginas dum livro de histórias. Às breves enseadas onde a maré nunca chega a esconder a linha do equinócio. Aos campos agrícolas defendidos do vento pelo alinhamento das sebes. A essas praias, durante a noite. E ficar assim, à noite, a olhar o mar como se víssemos o mar pela primeira vez.

[Depois das viagens]

Um dia, muitos anos depois, confessou que nunca partira tendo em vista conhecer o mundo. Mas pelo milagre de regressar e encontrar as mesmas coisas de sempre.

segunda-feira, dezembro 29, 2003

Louisiana

Foi considerada a melhor forma de prevenir futuros acidentes com armas de fogo: levar as crianças para a carreira de tiro e ensiná-las a disparar tendo em devida atenção as normas de segurança. A segunda fase do curso de aprendizagem, já programada, prevê a continuação do tiro ao alvo e o manuseamento de armas de maior calibre. Sobre a terceira fase não foram até ao momento adiantados pormenores.

Depressões

Talvez seja desta frente oclusa, depressiva, a influenciar a Península. Talvez seja só do calendário. Talvez seja dos autocarros vazios a atravessar as ruas da cidade a caminho não se sabe de quê. Talvez seja das ruas quase desertas. Talvez seja de tudo isso. Talvez seja das aves, muito cedo de manhã, a voar sobre os lagos onde a neblina começa a levantar. Talvez seja da memória longínqua de um muro de pedra, da sombra que uma árvore espalhava sobre o muro. Talvez seja apenas isso: o excessivo silêncio do entardecer.

domingo, dezembro 28, 2003

A avestruz

José António Saraiva, na sua Política à Portuguesa de ontem no Expresso, diz que «movimentos como o da despenalização do aborto» vão no sentido errado. E acrescenta que «ninguém, entre os que defendem a despenalização e os que não a aceitam, quer que as mulheres que abortam sejam condenadas». Se isto fosse para a gente perceber, víamo-nos aflitos.

São dias tristes

Ainda temos a árvore de Natal, mas já não é Natal. É quase fim do ano, mas não é ainda ano novo. Precisamos desesperadamente da noite de 31. Não propriamente para brindar ao novo ano. Mas para nos livrarmos do velho.

O tal canal

A publicidade ao novo canal da RTP, que se chamará 2:, faz-nos temer o pior. Parece que se trata de uma televisão «aberta à sociedade civil». Uma «televisão feita por todos, para todos». Uma televisão que «conta com a participação activa de 50 parceiros dos mais variados quadrantes». Confesso não ficar particularmente arrebatado com os termos do anúncio. Confesso que preferia, em vez de «receber a sociedade em casa», continuar a receber apenas bons documentários, um espaço noticioso decente e filmes de Tati, Kitano, César Monteiro ou Renoir.

Uma conversa triste

Não somos racistas. Nem somos contra as migrações, claro. Temos apenas uma ligeira questão gramatical mal resolvida: os migrantes são bons se forem precedidos do prefixo e. E maus se forem precedidos do prefixo i. De resto somos todos iguais.

sexta-feira, dezembro 26, 2003

Ainda o Natal

Hoje de manhã, muito cedo ainda, corri ao fundo do jardim a olhar o pomar de amendoeiras. Juro que, por instantes, acreditei nessa possibilidade. No milagre de as amendoeiras, durante a noite, terem ficado em flor.

A quadra natalícia

Peço um café e uma água. Pago com cinco euros. Quase sou insultado pelo chefe, que fica a resmungar qualquer coisa sobre a falta de trocos e esta mania de pagar tudo em notas. Recebo finalmente a demasia, componho um sorriso e desejo-lhe continuação de Boas Festas. O meu mau-feitio, nestas alturas, não se propaga.

quinta-feira, dezembro 25, 2003

[Um poema para o Natal]

1.
Como se estas lâmpadas acesas pudessem
por um instante
iluminar os dedos das crianças
quando sublinham uma frase
nos primeiros livros do ano

2.
O mundo é tão pequeno
tão sujeito à vaga do inverno
aos limites da dádiva
à chuva a demorar no pátio a
memória breve
dos milagres

3.
Nenhuma sombra que a memória pudesse
trazer de novo
à superfície rasurada das páginas
nenhuma lança que pudesse trespassar
de mágoa
os corações abandonados
à tristeza inúmera da idade

quarta-feira, dezembro 24, 2003

Boas Festas

O meu vizinho comprou doze metros de mangueira com luzinhas que acendem e apagam. A cobra iluminada contorna o vão da entrada, sobe a empena, enrosca-se nos balaústres da varanda, corre na horizontal até ao limite nascente do alçado, desce a prumo ao pavimento de tijoleira, desenha um coração no relvado e acaba em elipse ascendente no arbusto encimado por uma estrela prateada. A estética não me comove. De resto comove-me tudo.

terça-feira, dezembro 23, 2003

O desejo

Não voltarás a dividir com o medo essa estranha forma de júbilo, esse inesperado ardor que regressa de onde nem suspeitavas que alguém se recolhesse do frio ou afastasse com as mãos a tempestade.

segunda-feira, dezembro 22, 2003

O rumor desses pássaros

Nas casas da encosta finda, cada vez mais cedo, o rumor desses pássaros que se recolhem aos bosques no tempo vagaroso dos desastres.

Uma última vez

Um último rumor, esse que chegava da península e percorria a casa enquanto desciam as sombras de ser já quase a noite. Um lenço molhado para as lágrimas das mulheres ainda jovens a recolher a roupa da cómoda, os panos bordados das mesas, os desenhos do estrangeiro pendurados nas paredes velhas. Podias então chegar e olhar a água da tristeza, com alguma indiferença, a marcar a distância que vai de ti às coisas que são tuas.

Os segredos desse tempo

Não escondes os púcaros, o pau de vidoeiro cortado à navalha, a cruz em tinta vermelha do lado de dentro da porta do curral, o licor da artemísia, a erva cidreira, a masseira do pão. Só a ninguém dirás o segredo escondido nos bosques mais próximos ou repetirás as frases de afastar o trovão e o mau olhar da noite.

Quase o outono

A tarde acrescenta às vozes comuns, uma e outra vez, o anil da evaporada água das represas, o sobressalto do voo picado da águia, o ouro inúmero das margens do pomar de macieiras. E quando a noite se desenha no recorte dos cumes azulados, é ainda o calor da terra de setembro que adormece devagar, no regaço das crianças com sono, essa promessa de felicidade depois do tempo dos incêndios.

As pragas, pra eles verem como é

O imprescindível aoeste lança-nos o desafio na caixa de comentários. Asulado abre as hostilidades. Eu sei mais umas quantas. Môces, o endereço está ali à direita. Vamos meter mãos à obra?

A galinha e o ovo

Quem nasceu primeiro? Os livros do top ou o top dos livros?

domingo, dezembro 21, 2003

Uma praga algarvia vinha mesmo a calhar

Devia-te nascer uns cornos tão grandes que nas pontas poisassem dois litibós. E que começassem a cantar e um não ouvisse o outro.

Outra

Devias deixar cair as chaves. E que quando te agachasses pra apanhá-las te caísse a tampa do peito.

sábado, dezembro 20, 2003

Um por um

Se tivéssemos menos vinte anos... E se soubéssemos o que sabemos hoje... E se pudéssemos de novo cometer exactamente todos os mesmos erros...

O Código Penal

É difícil ir a qualquer lado sem ouvir música. Ao centro comercial, ao comércio tradicional, a um bar, à fisioterapia. Há sempre «música ambiente». Devia ser proibido darem-nos música. Só pagando. Fosse em que situação fosse. Mas na «quadra natalícia», então, é exasperante: até na rua nos dão música. A srª drª Celeste Cardona anuncia a intenção de mexer no Código com vista ao agravamento de penas para os crimes mais graves. Em sendo assim, eu atrevia-me a solicitar a Sua Excelência o obséquio de considerar a possibilidade de o «Gingle Bells», passando em altifalante num sítio público, configurar uma moldura de prisão preventiva sem direito a recurso.

Andaluzia

Há brasileiros em todo o lado. Até no Brasil.

sexta-feira, dezembro 19, 2003

O Sul

As crianças, ruidosas, brincam no recreio. Correm, saltam, escondem-se, gritam, juntam-se em pequenos grupos em redor de um pneu de camião. O céu permanece indeciso entre o branco e o azul. Não há uma nuvem. Os aviões cortam a cidade à altura dos prédios. Os plátanos do jardim da Alameda estão carregados de folhas. O sol, ao fim da manhã, atravessa a copa do eucalipto do outro lado da rua e desenha no asfalto um rendilhado geométrico de luzes e sombras. Não pode ser ainda o Inverno. O calendário está errado. E, portanto, por muito que custe dizê-lo, as mulheres nuas dos calendários das oficinas de serralharia mecânica são, nesta altura, a única coisa acertada com o meridião.

quinta-feira, dezembro 18, 2003

As prendas de Natal

A TV publicita um anel com brilhantes sobre fundo vermelho. Vistoso. De encher o olho. Chama-se «Anel Moulin Rouge». A questão é: a quem se oferece um anel destes? À amante?

E, de novo, só a sombra

Já noite, de regresso a casa, começa a chover. O dia esteve cinzento. Desde manhã cedo. Cinzento escuro. Baço. Cinzento. E foi debaixo de chuva que saí do carro, que subi os doze degraus que levam à tijoleira do alpendre. Chove, portanto. Mas, de súbito, a laranjeira do jardim parece iluminada. Como num quadro de Georges de la Tour, a luz sai do interior da própria árvore. Como se cada um dos seus frutos fosse iluminado pela sua própria luz. Fico parado por instantes. À chuva. A olhar esse fogo. Interdito. Até que a sombra regressa de novo. E, de novo, só a sombra, a chuva batida pelo vento.

quarta-feira, dezembro 17, 2003

Os sonhos

Em 1903, dois irmãos, construtores de bicicletas, puseram a voar uma máquina mais pesada que o ar. Hoje, cem anos depois, há ainda quem nem consiga levantar os pés do chão.

Depois da tempestade

Depois da tempestade de sábado, ontem, em Fátima, a Igreja apressou-se a meter os pontos nos ós.

terça-feira, dezembro 16, 2003

Coro

Os homens fazem a guerra
para que na sua ausência alguém possa chorá-los
ou manter o fogo aceso
para que a súplica seja resgatada ao
silêncio
das muitas promessas
antigas

Por isso lhes dão cigarros e
vinho quando regressam
entoam-se cânticos na praça
e ninguém reconhece as lanças partidas como parte
do espólio
de nenhum desastre

segunda-feira, dezembro 15, 2003

Nem sempre há pachorra

Este meu amigo, se mandasse, privatizava tudo: hospitais, escolas, repartições de finanças, direcções regionais. Ontem à tarde lá voltou a desfiar o seu rosário recorrente de acusações contra a administração pública: que não funciona; que não dá uma resposta atempada; que não despacha; que ninguém mexe uma palha; que é um sumidouro de recursos... A páginas tantas, olhando o horizonte, interrompeu uma frase sobre a eficácia demonstrada dos privados na gestão hospitalar: «Bolas, já é noite... Também é verdade que estamos quase no solstício. É a 21 ou 22 de Dezembro?». Respondi-lhe no seu registo, como num eco: «Se depender da administração pública, se calhar só lá para meados de Janeiro do próximo ano»...

domingo, dezembro 14, 2003

Recorde mundial

Respondendo a um desafio lançado pela SIC, milhares de motociclistas circulam pelas ruas do Porto vestidos de Pai Natal. Sem capacete. Vieram da Lousada, de Vila Nova de Gaia, de Matosinhos, de Barcelos: sem capacete. Há um sistema de contagem. Parece que são quase seis mil. Batem-se, portanto, dois recordes: o da maior concentração de Pais Natal do mundo; e o do maior número de pessoas em infracção simultânea ao código da estrada. Amanhã recomeçarão, presume-se, as campanhas de prevenção rodoviária.

Iconografia

Saddam Hussein foi capturado. Nas imediações de Tikrit, sua terra natal. Num buraco escuro. Onde só havia uma ventoinha. E uma mala cheia de dólares.

Os empatas

Taça Intercontinental. O Milan e o Boca Juniors desempataram nas grandes penalidades. Cento e vinte minutos de jogo sem emoção, sem paixão, sem alegria. Onde entra uma equipa italiana, é isto. Nem jogam nem saem de cima.

sexta-feira, dezembro 12, 2003

A retoma

Talvez não tivesse compreendido bem. Mas por instantes pareceu-me ter-lhe ouvido, a meio do discurso, falar em «gincana política». É uma imagem interessante. Uma metáfora desportiva um bocadinho diferente. Antigamente era só futebol. Anuncia uma nova fase na retórica do Parlamento. Mais civilizada. Mais literária. A coisa ainda vai lá. Não me parece que haja razões para dizer que está tudo perdido. Isto devem ser já os reflexos da retoma.

quinta-feira, dezembro 11, 2003

Discursos

Um político, durante um aceso debate, pedia hoje ao seu interlocutor que lhe respondesse com «um discurso fundamentado e não com um discurso político». Eles lá sabem...

O deputado das comunidades

[ou dos perigos da poesia]

Teve a inocência de pensar que não era
ilícito fazer o que a outros, velhos
democratas de tarimba, se permitia
num silêncio cúmplice por direito consuetudinário.
E de repente viu-se, as mãos nos bolsos
de um sobretudo ainda recente das suas
funções públicas, descidas as
pálpebras, nas primeiras páginas dos jornais
a servir do exemplo que terceiros davam.
Recordo-o alguns anos antes com o saco
de viagem e o primeiro volume da obra
poética de Ruy Belo na mão esquerda
a caminho da pensão americana. Talvez então
não sonhasse ainda com esse exercício de
presumir que fazia as leis e
de servir os seus iguais viajando em
nome do povo e da diáspora com o dom
da ubiquidade e as facturas múltiplas
respectivas à mesa do orçamento.
Quem diria, ouvindo-o nesse tempo à
sombra dos ulmeiros velhos a recitar os
decassílabos na edição da Presença,
que o logro da política, a suposta imunidade
e a ilusão do poder haviam de perdê-lo?
A alguns colegas seus do hemiciclo, cúmplices
no que o desviou menos em ser lorpas,
talvez os tivesse salvo nunca o bichinho da
lírica ter chegado a corrompê-los.

Fazemdas alheias

Ainda hoje são frequentes as rivalidades entre aldeias e cidades vizinhas, entre concelhos, regiões ou países que partilham fronteiras. O concelho de Cacela, no século XVII, não era excepção. É verdade que os moradores de Alcoutim e Tavira, concelhos limítrofes, pareciam não sofrer tratamento diferente dos naturais e moradores de Cacela no que era essencial: a aplicação das coimas. Mas com Castro Marim a coisa fiava mais fino... A postura de 6 de Janeiro de 1663 da Câmara de Cacela, por exemplo, previa uma coima de quinhentos reis para quem tivesse «malhada de colmeias» sem licença; tratando-se de pessoa «do termo de Crasto Marim», no entanto, aplicava-se «pena dobrada»... As Actas do Concelho de Cacela no Século XVII, publicadas por Hugo Cavaco em 1990 (ed. C.M.V.R.S.A.), são, também a este respeito, uma pérola: «Toda a pesoa que tiver ovelhas neste termo dos figeirais para baxo e lhe forem achadas em fazemdas alheias terhão de pena por cada res que forem achadas mill reis para o Conselho e mandarão que se apregoasse e as de Crasto Marim dois mill reis»... A isto se chama fazer pelas receitas próprias: imagine-se o cofre da Câmara em se fisgando um rebanho de «Crasto Marim» em «fazemdas alheias»...

quarta-feira, dezembro 10, 2003

Saltar à tesoura

Uma vez, no tempo em que ainda se dizia «liceu», fui humilhado numa prova de salto em altura por um sujeito da turma C que saltava à tesoura. Fiquei em segundo lugar e, claro, apresentei protesto formal com o argumento de que o tipo saltava muito, sim, mas não tinha estilo; e que portanto deveria ser desclassificado. Indeferido o protesto, jurei que nunca mais haveria de entrar num ginásio. Isto ocorreu-me ao passar os olhos por um livro onde se atinge que o autor tem ideias em catadupa mas que é preguiçoso na forma; que é incapaz de sacrificar uma ideia a um parágrafo. Independentemente da eficácia narrativa, não gosto de autores que escrevem como quem salta à tesoura.

terça-feira, dezembro 09, 2003

Os jardins do Outono

Um jardim é essa pequena sombra no tempo da luz derramada sobre as paredes de cal. E a luz, a magoada luz de Dezembro, quando as sombras se repetem fora dos seus muros ou das suas sebes de murta. A trepadeira verde. E as árvores. Os seus ramos feitos para as aves do Outono poisarem a meio da tarde.

Também a casa

O jardim é também a casa, e por isso os aromas da casa e do jardim se confundem. Chove. Mas um mesmo perfume, antes de ser noite, há-de percorrer a biblioteca, as flores brancas do viburno e a tijoleira do alpendre.

domingo, dezembro 07, 2003

É esse o milagre

O sol desce muito cedo sobre a cumeada irregular do poente. As figueiras recortam-se num emaranhado de ramos contra um fogo que já não aquece. As folhas da alfarrobeira persistem junto ao armazém de frutas. A terra, de um castanho espesso, adormece vagarosamente. E é esse o milagre: o de sabermos que as amendoeiras haverão ainda de florir, num branco cor de rosa e azul, durante o Inverno.

A cal

O seu azul. As suas
va ga ro sas
marcas d' água.

sábado, dezembro 06, 2003

A vida é bela

É curioso. O teatro de revista, que chegou a estar mais que morto e enterrado, aí está de novo, pujante, com «momentos muito bonitos» a animar os palcos e as tardes televisivas. Neste espírito, o incontornável Vítor de Sousa lá vem recitar pela enésima oitava vez um poema que é um marco da nossa literatura e da grande aventura poética do século vinte. Foi escrito na década de cinquenta, num tempo em que não havia subsídios à criação, e a gente ainda se emociona ao ouvir em voz alta esta toada decassilábica: «Olha os irmãos da nossa confraria/ muito solenes nas opas vermelhas»... E, de facto, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que se recusa a acreditar que «na nossa igreja, que Deus a proteja/ já passou a procissão». Seja como for, momentos destes (obrigado, TVI!) explicam-nos mais sobre o estado da nação do que um programa de governo, a discussão na especialidade do orçamento ou a leitura diária do jaquinzinhos e do Barnabé.

Os direitos conexos

Eu não sabia que se compravam casas no Algarve com putativos direitos conexos. O de um clima sem sobressaltos, por exemplo. A senhora, que aparentemente precisava mais de ginásio do que dos Baileys que mamava ao balcão com muito gelo, queixava-se em voz alta. «Vem a gente passar um fim de semana ao Algarve, e é isto: chove...» Como se a chuva devesse poupar a segunda habitação e só fosse legítimo que molhasse os autóctones... Não me tive que não me mostrasse determinado a ajudar. E então disse-lhe que conhecia o senhor presidente da Região de Turismo e que estava disposto, contra os meus princípios, a meter uma cunha: «ainda lhe telefono esta noite. Esteja descansada que amanhã só chove em Monchique...»

Más notícias

Celeste Cardona diz que não verga. E que é coerente consigo mesma. Más notícias... Pois era exactamente isso que se temia...

Agora o juiz que decida

Picão de Abreu, da lista A, venceu as eleições para a presidência da Federação Portuguesa de Râguebi. Dídio de Aguiar, da lista B, também. Até que enfim que o desporto português começa a dar sinais de entrar nos eixos...

sexta-feira, dezembro 05, 2003

Os jacarandás da avenida

Primeira sessão de fisioterapia. A clínica de um branco asséptico. A temperatura primaveril. A técnica, na fase inicial de recolha de dados, virou o envelope das radiografias e deu com os versos alinhados de um poema sobre os jacarandás da avenida que eu acabara de cometer na sala de espera. Ergueu ligeiramente a cabeça e perguntou-me se tínhamos ali poeta... Atrapalhado, apanhado em falta, respondi-lhe logo que não. Que aquilo nem sequer era a minha letra... E acrescentei: «meu Deus, só me faltava mais essa»... Ela sorriu e continuou a preencher o impresso administrativo. E via-se que ficou aliviada.

História de Portugal

Tem estado um frio terrível. E recomeçou a chover. Agarrados à lareira, pega-se num livro e logo nos há-de sair o Oliveira Martins a garantir que no Algarve, durante o Inverno, se vive «no seio de uma constante Primavera». Ele que viesse cá hoje. Ou ontem. Saísse ele agora ao alpendre, a acarretar mais um pouco de lenha, e talvez compreendesse quem o criticava no entendimento de que o rigor, num historiador, nem sempre deve ser sacrificado ao estilo.

Perguntas queimadas

Se há problemas de estacionamento e de congestionamento de tráfego no centro das cidades, por cada estacionamento subterrâneo que é construído no centro das cidades não deveria correr paralela a opção de construir uma estrada subterrânea (ou aérea, descendo no troço final a doze por cento em direcção ao subsolo) de acesso ao estacionamento subterrâneo?

quinta-feira, dezembro 04, 2003

Os bons e os maus

Hoje houve uma acirrada discussão ideológica na Assembleia da República. Um debate aceso sobre o que é a esquerda e o que é a direita, e acima de tudo sobre quem é ou não é de extrema direita. E o que significa isso. Comovi-me a ver a reportagem. Quase parecia a blogosfera.

quarta-feira, dezembro 03, 2003

A voz do povo

De acordo com um aforismo de que não conseguimos ainda libertar-nos, para morrer basta apenas estar vivo. Enfim, é verdade. Mas isto escusava de ser uma espécie de regra que exclui interrogações e perplexidades.

Pormenores. Sem importância

Um edifício ruiu. Duas pessoas morreram. Não há país na Europa que nos ultrapasse em número de licenças emitidas anualmente para construções novas. As licenças para obras de recuperação e reconstrução de edifícios, por sua vez, apresentam valores insignificantes. São pormenores. Sem importância. Que fazem toda a diferença.

Regras de três simples

Depois de um rigoroso e exaustivo inquérito, os relatórios oficiais das comissões de inquérito geralmente apontam para a impossibilidade de concluir que a causa a) tenha determinado o efeito b), não sendo no entanto de eliminar a hipótese de o efeito b) ser determinado pela causa a).

Insolências

«O filho do herói liberal foi mais longe: apresentou uma moção em que se estabelecia a responsabilidade governamental, obedecendo à lei da responsabilidade particular e privada. Essa noção célebre foi rejeitada solenemente pela câmara inteira, empalidecida de indignação sob a afronta insolente do atrevido.»

Carlos Malheiro Dias. Os Teles de Albergaria (1901)

terça-feira, dezembro 02, 2003

Inês

Ela via o templo romano pela primeira vez. Chovia. Ainda assim ficámos os dois a olhá-lo durante muito tempo. Já noite. À chuva. Com os holofotes a iluminá-lo dessa irrealidade sem tempo. A Inês a olhar pela primeira vez as colunas erguidas sobre a cidade e contra o escuro que há muito descera sob um céu de chumbo. E eu com a ilusão de que ela não via o templo de Diana pela primeira vez, mas como se aquelas pedras existissem desde sempre na sua breve e antiga memória do mundo.

Obscuro alarme

«Chove. A fúria do vento não cessa. Batida pela sua vergasta, a chuva esparrinha na vidraça, varre a rua de lembranças concretas. E uma memória antiga, pesada de augúrio, levanta-se-me no seu clamor, memória escura, anterior à vida. Assim o que relembro não tem face nem nome, é a forma oca de um limiar indistinto, pura anunciação de presença, obscuro alarme de uma aparição.»

Vergílio Ferreira, Carta ao Futuro

segunda-feira, dezembro 01, 2003

No Alentejo

No Alentejo é costume sentir-me assim: de bem com a pátria.

domingo, novembro 30, 2003

Ainda bem que assim é

Durão Barroso justificou o voto favorável de Portugal à suspensão do procedimento de infracções contra a Alemanha e a França com o facto de o nosso país não poder deixar de ser solidário com quem em 2001 nos apoiou numa altura de défice excessivo. Manuela Ferreira Leite, no entanto, justificou tal medida com a indispensabilidade de salvar o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) e evitar uma situação de vacuidade jurídica. Marques Mendes, por sua vez, considera que, subtilezas à parte (subtilezas, presume-se, de Durão e Ferreira Leite), o que aconteceu foi um forte pontapé no PEC. Alberto João Jardim, finalmente, é de opinião que Manuela Ferreira Leite votou com a França e a Alemanha a acautelar a putativa impossibilidade de Portugal vir a conter o défice nos 3%.

Imagine-se se isto fosse para a gente perceber...

sexta-feira, novembro 28, 2003

D. Sebastião

De acordo com o barómetro da Marktest, António Vitorino é, de longe, o político de esquerda mais popular. É certo que 95% dos inquiridos não saberá muito bem por onde tem andado nos últimos anos, ou quais as propostas e as ideias de António Vitorino sobre o défice, o Pacto de Estabilidade e o Estatuto da Aposentação dos funcionários públicos, ou mesmo se desempenha funções na Comissão Europeia, numa Vice-Presidência da Internacional Socialista ou no Conselho de Administração do Central-Banco de Investimentos. Mas isso é irrelevante: o que conta é que D. Sebastião vai em primeiro. E é também por isso que nós apreciamos tanto os barómetros e as sondagens...

Mudança de planos

Pronto, está bem... É verdade que ontem estava previsto um post sobre a humilhação de uma equipa turca de nome impronunciável... Mas acabámos por nos distrair e mudar de planos, rendidos à ambição de um treinador que, em casa, contra o Gençlerbirligi, arriscou jogar de início com um avançado...

A força da vazante

Desceu a escada a caminho da ria e estranhou a força da vazante. Uma leve cerração erguia-se no enraizamento da península e começava a ocultar em névoa a linha do horizonte, e depois os chapéus de sol mais distantes, e depois os cordeirinhos-da- praia e o eriçado irregular do estorno, e depois as estacas dos viveiros da fábrica, e depois o próprio azul ondulado das águas. Virou-se e olhou o pano da muralha a procurar um rosto ou uns braços apoiados no muro, uma criança que corresse no largo, um guarda-fiscal na atalaia da fortaleza a assestar os binóculos ao assoreamento da barra. Mas não havia ninguém, nenhum movimento, nenhuma sombra. Olhou o areal da península e deixou de ver o mar. Não havia ninguém à face da terra e o mar adivinhava-se apenas à distância no marulhar sobressaltado do levante.

quinta-feira, novembro 27, 2003

O debate político, de novo

Seguindo a coisa um bocadinho à distância, mal imaginava que a decisão da escolha de Valência para a realização da próxima edição da America’s Cup se viria a constituir como o mais recente pretexto da blogosfera para retomar o debate político e ideológico. Pela amostra da caixa de comentários do BdE II, a coisa promete... JMS começara por garantir que «os nossos marinheiros de água doce, pedantes e cheios de vento, assobiam agora para o ar, tristonhos», aconselhando-lhes a audição de A Baía de Cascais, dos Delfins, em «ritmo de marcha fúnebre»... Tomás (perdão: Thomaz) não se conteve, e lamentou a «enfermidade mental» de JMS, de diagnóstico fácil tendo presente o «seu fel para com os gajos que não têm a culpa de ter nascido numa piscina cheia de notas», e que tal despeito só se compreende por JMS «ser um teso que não tem onde cair morto»... Por seu lado, O Blogador considera que, mesmo tendo perdido a candidatura, «Lisboa-Cascais foi promovida e está na alta roda da aristocracia da vela», lamentando, de qualquer modo, a insinuação de que «a culpa é dos desgraçados dos pescadores que perderam um porto de abrigo e uma lota de pesca», acusando ainda o Ministro Arnaut de ninguém ter sabido negociar com os homens da pesca nem se ter feito um «pacto de regime» com o respectivo sindicato. Esta da aristocracia é muito cara ao Acanto, onde se explica que perdemos a organização da regata por sermos uma república, sendo que a Espanha, mais avançada, tem uma monarquia... Guutman, finalmente, lamenta termos perdido «mais um boom económico», e «mais emprego, mais iva, mais irc, mais tudo o que faz falta», acrescentando com ironia que «pelo menos os 30 pescadores já não precisam de andar mais um pouco e não têm de se incomodar».

«Mais tudo o que nos faz falta», digo eu, deve ser uma marina e acabar de vez com a frota nacional de pesca.

quarta-feira, novembro 26, 2003

Do mundo

A cidreira adormecida numa cesta, a única, de quatro varas. Desse tempo. Tudo quanto eu conhecia do mundo e de mim.

Manhã

Eis a perfeição aos nomes só entregue. O verde duma árvore, o rumor da boca, o só vibrante começar do amor. O brilho da manhã poisando no infindável movimento das palavras.

terça-feira, novembro 25, 2003

As boas vindas,

claro, ao BdE II.

Durante tantos anos

No primeiro dia de Junho, que é quando verdadeiramente começa o Verão, saiu de casa e a amendoeira grande tinha desaparecido. Aproximou-se e remexeu a terra à procura de um sinal dessa presença antiga. Mas não havia uma raiz, a casca porosa de um fruto, uma folha apodrecida, um pedaço de madeira que trouxesse ao fim da manhã a memória da árvore erguida no pátio durante tantos anos.

Era como se tudo estivesse certo

À hora em que a sombra começa a espalhar-se vagarosamente nos telhados das casas, imaginou que uma ave gigante varria o areal da praia e se levantava na espuma do levante, e que depois avançava sobre o parque de estacionamento e sobre as esplanadas da praça. Era uma ave de longas asas recortadas, e era como se o mundo por instantes ficasse suspenso de si próprio e nada mais houvesse à face da terra para além desse voo e de um silêncio tão espesso que podia tocar-se com as mãos. Apercebeu-se então de que ninguém falava, que ninguém se movia, que ninguém respirava. E no entanto ouvia-se um alarido de vozes estrangeiras misturado na sombra que recomeçava a descer. E a ave desapareceu e a sombra desceu e era como se tudo estivesse certo.

O avião da publicidade

Chegou à praia e deitou-se numa toalha de losangos e olhou as águas e adormeceu por instantes. E quando acordou viu que um barco se levantava na linha do horizonte e que o avião da publicidade mergulhava no mar.

O inverno

A água nos vidros dos últimos dias de Novembro. O mar a subir na vazante. As nuvens à altura dos telhados cinzentos das casas.

segunda-feira, novembro 24, 2003

Spamesia

Continuamos sem resolver o problema dos resíduos industriais perigosos. Continuamos encalhados nos resíduos de construção & demolição. Tardam os resultados da reciclagem, da redução, da reutilização. Não há melhoras nos resíduos sólidos urbanos. Enfim, não estamos cercados de spam apenas digital. Antes estivéssemos. Porque neste domínio há quem teime em fazer serviço público: aqui, imagine-se, o lixo é reciclado e devolvido sob a forma de poemas. Talvez pudesse servir de exemplo.

Antologia da SUL, 3

No Inverno de 1999/2000, a revista SUL publicou dois poemas inéditos de Gastão Cruz. Um deles trazia o título de

LEMBRANÇA DA RIA DE FARO

Dunas atrás da casa
gafanhotos cor de
madeira cardos cor de areia
ao fim da tarde,
barcos na água rósea
onde a cidade, em frente à casa, cai
De madeira caiada a
casa está
sobre a areia, que escurece quando
a maré devagar desce na praia

domingo, novembro 23, 2003

Os Planos

Os Planos das zonas de expansão urbanística, um dia, terão praças e jardins.

Foguetório

O estádio do Algarve onde se vão realizar dois jogos do Euro-2004 é inaugurado hoje. Com circunstância e sem pompa. Com fogo de artifício, mas sem futebol. E está certo. Num campo de bola onde não se espera que venham a ter lugar grandes jogos de futebol, não há nada como a gente se ir habituando desde o início.

E podia poupar-se na relva

Um alto responsável político regional minimizou a circunstância de o Parque das Cidades ser inaugurado sem um jogo da bola, preferindo realçar o facto de a infraestrutura poder vir a constituir-se como a mais importante sala de espectáculos do Sul da Península. Compreendemos a mensagem. Mas ficamos com pena que o dinheiro gasto em balneários não tenha sido investido em camarins.

sábado, novembro 22, 2003

45 R.P.M.

Nesse tempo era tudo tão escasso.
Até no arco-íris a banda do anil.
Mesmo em tempo de festa.
Até o vinil.

Daqui ninguém sai vivo

Júlio Carrapato («Crónicas de Escárnio e Boa Disposição», Edições Sotavento) relembra Tomás da Fonseca e a suspeita de que a aparição de Nossa Senhora de Fátima seria imputável, não à celestial e gasosa Virgem Maria, mas sim à terrena mulher do coronel Genipro dos Serviços Cartográficos do Exército Português. Duvida que, com a sua tarimba de 33 anos de Comité Central, Carlos Brito seja o paradigma da virgindade. Lamenta que Fernando Rosas exiba a magra especialidade académica a prefaciar obras sobre os deprimentes amores entre Madame Christine Garnier e Oliveira Salazar, em vez de optar pela divertida sexualidade do Carlinhos de A Marca dos Avelares. Acha que Lula da Silva é o maior prestidigitador do momento. Garante que capitalismo e fascismo são a mesma coisa, em momentos distintos da organização do Estado. Irrita-se com os cagões que ainda não perceberam que todo o sangue azul do mundo não daria para encher um tinteiro. Desanca nos Estados Unidos, mas sem saudades nenhumas da União Soviética (era uma excelente pessoa, paz à sua alma) nem do antigo equilíbrio do terror, considerando que tentar deter um Estado com outro Estado, ou um Império com outro Império, é como apagar um incêndio com gasolina. Recorda os campos petrolíficos de Vasco Rato e os grécios e os kosovários de Bush. Não foge aos adjectivos: o lépido e jovial VPV; o conspícuo EPC, campeão das meias-tintas; as graçolas onomásticas de VGM; a robusta inteligenciazinha de LD, capaz de ofuscar a de Pacheco. É refractário às comemorações oficiais e pouco dado às mundanidades cá da paróquia.

É de escacha-pessegueiro? É. Mas depois de lermos estas crónicas nada nos impede de regressarmos ao Canal Parlamento ou aos noticiários da TVI apresentados por Manuela Moura Guedes.

sexta-feira, novembro 21, 2003

Ainda não é desta

Confesso que esperei com alguma ansiedade o livro de memórias de Gabriel García Márquez. Depois do realismo mágico e do fantástico de livros como O Amor em Tempos de Cólera, Cem Anos de Solidão ou Crónica de uma Morte Anunciada, era com muita curiosidade que esperava o relato dos seus anos de infância e juventude. Descubro, afinal, que Viver para Contá-la não é um livro de memórias. E que Gárcia Márquez, de resto, não se propunha escrever um livro de memórias. Como diz em epígrafe, «la vida nos es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla». Pois muito certo: este é mais um livro de ficção. O mais verosímil que consegui topar nestas seiscentas páginas é o seguinte episódio da infância do autor:

«Mi madre me compró además el sobretodo de piel de camello de un senador muerto. Cuando me lo estaba mediendo en casa, mi hermana Ligia - que es vidente de natura - me previno en secreto de que el fantasma del senador se paseaba de noche por su casa con el sobretodo puesto. No le hice caso, pero más me hubiera valido, porque cuando me lo puse en Bogotá me vi en el espejo con la cara del senador muerto.»

Tudo o mais é realismo mágico, pura ficção.

quinta-feira, novembro 20, 2003

Mera sugestão...

Parece-me que de um momento para o outro se percebeu que no país grassa um problema terrível. Um monstro de sete cabeças que tudo espezinha e devora, daí­ vindo enorme prejuízo para a produção e para a prosperidade nacionais. Tal vil criatura dá pelo nome de Informalismo, eufemismo para Corrupção. É um facto, Portugal tem uma história fantástica de julgamentos onde são condenadas criaturas por corromperem titulares de cargos públicos, mas sem que estes o sejam por sua vez, ou venham alguma vez a ser. Todavia, em diversos relatórios europeus, a par deste problema surge ainda um outro com ele amiúde conexo, que tem que ver com a crónica fuga ao fisco. Um e outro dos problemas geram a economia paralela, o esquema, a distorção do mercado, a especulação desregrada e, no limite, o colapso do próprio mercado. Propiciam ainda a riqueza não tributada, a lei da selva e do salve-se quem puder, enfim, um atentado às regras de sã convivência e estabilidade sociais.
Ora, o que me pergunto é, porque razão sabendo-se que isto assim é, não se trata de atacar o mal pela sua raiz, expondo precisamente esta? Passo a explicar: quem recebe dinheiro indevidamente, tem de o colocar em algum lugar, não o manterá por certo debaixo do colchão ou numa cave, trancafiado a sete chaves. É que isso é perigoso e há por aí muita gente desonesta que não desdenharia a oportunidade de se apropriar de tal dinheirinho, tão esforçadamente ganho pelo seu dono.
Proponho, para que se moralize um pouco um sistema, que para começar, porque é barato e não custaria nem um cêntimo ao Estado, que se convide o comum cidadão e a empresa, que anexem à sua declaração de rendimentos a indicação das contas bancárias de que um ou outro são titulares, com cópia dos respectivos extractos apensados. A descoberta de que o sujeito teria outras contas que consubstanciasse evidência de rendimentos auferidos e não declarados poderia constituir infracção mais ou menos gravosa em função do montante, facto que de resto já sucede. O regime exposto nem sequer teria de ser obrigatório, bastaria que quem abrisse as suas contas fosse tributado de forma mais favorável, com uma taxa mais reduzida. Num par de anos o Estado saberia quem tem algo a esconder e daria pelo decurso de tal tempo, a tais pessoas e entidades, o tempo necessário para regularizarem as suas contas antes de se iniciarem as inspecções ditas "à séria".
Não será difícil perceber que pode ser tão fácil. E é. Isto sim, requeria coragem e vontade política para resolver um problema de fundo, muito mais grave, infinitamente mais grave que a gota de água que representam as sociedades off shore. Não é assim, Srª Ministra?

Afinal...

Afinal, o Governo vem anunciar que o défice controlado abaixo dos 3 por cento já não será bem assim. Afinal, há mais uns "pozinhos" que é preciso acrescentar e parece que esses pozinhos obrigam a rever o próprio algarismo à esquerda da vírgula. Afinal, a Srª Ministra também se "engana" redondamente. Afinal, onde é que já ouvi isto, antes? Que país. E logo hoje, que o dia tinha amanhecido tão solarengo...

Propinas e piquês

Quando estamos em casa, de baixa, com a perna esticada e ligeiramente elevada relativamente ao resto do corpo, esperando que o perónio desfissure, lá somos obrigados a fazer um zapping matutino e um zapping vespertino pela nossa TV. É o país real. E o país real, pelos vistos, são as canções do padre Borga e a Maya a adivinhar o futuro num baralho de cartas, e a Rita Ribeiro a falar sobre «gente iluminada», e o Roberto Leal em diálogo com o sr. D. Duarte Pio, e o Rodrigo Leal e o João Leal e uma particular amiga do Roberto, a Cinha Jardim, a cometer enunciados filosóficos sobre as relações luso-brasileiras, e ele é ainda o Toy e o João Malheiro com dossiers sobre futebol debaixo do braço a arrotar postas de pescada, e o Marco Paulo em sessões contínuas, e o Manuel Goucha e as avozinhas do Manel, e o maestro Vitorino d' Almeida, e o José Cid de boina e camisolas de lã a perorar sobre jazz, e o diabo a quatro. E então olhamos a luta dos estudantes contra as propinas de um outro modo. Com alguma simpatia. Porque nos regressa uma vontade imensa de meter cadeados em todas as portas e acender rastilhos. E, por instantes, até suportamos as capas e batinas de cem contos dos meninos. E a sobranceria dos meninos em conferência ao ar livre sobre a possibilidade de sequestrar o sr. Reitor. Agora há uma coisa que não se suporta: é o líder da Associação de Estudantes da Universidade do Algarve, armado em revolucionário de pacotilha, falando à turba de megafone, do alto da sua sua alarve ignorância, supondo que o plural de piquete é «piquês». E portanto era preciso organizar os piquês de defesa dos cadeados dos portões da universidade...

Grandes Antas

Ainda voltando ao FCP e à inauguração do novo estádio, Pinto da Costa e seus sequazes deixaram cair a nódoa no seu melhor pano. À festa apadrinhada por um senhor vestido de negro que praticou truques de ilusionismo já sabendo de antemão o resultado final dos seus passes e ao facto de não ter sequer faltado o milagroso penalti que permitiu a marcação do primeiro golo no novo Estádio do Dragão, junta-se agora a descoberta de que o projecto deste, afinal, tem bastantes "semelhanças" com o Zentralstadion em Leipzig, morada do clube desta cidade que actualmente milita na Segunda divisão do futebol alemão. Juro que vai ser divertido ver como é que Miguel Sousa Tavares, Pinto da Costa e o arquitecto Manuel Salgado vão desenrolar a trama deste "original projecto".

Isto assim até dá gosto

A partir de agora, na Califórnia, o acto sexual está sujeito à assinatura prévia de contrato entre os promitentes parceiros, exigindo-se a antecipada e pormenorizada explicitação escrita das modalidades que serão exercitadas. Um dos parceiros, por exemplo, não poderá acariciar o rabo do parelho, ou mordiscar-lhe o lóbulo, caso o acordo preveja exclusivamente uma cópula e sexo oral mútuo. Mordiscar o lóbulo sem que as cláusulas o prevejam, obriga os contraentes a deter-se, vestir-se, discutir o clausulado, pegar na esferográfica e minutar uma adenda ao contrato inicial. Depois de dilucidada e acordada a minuta, e passada a contrato devidamente assinado, poderão então os salazes despir-se de novo e recomeçar a retouça. Isto assim, como mandam as regras, é outra limpeza...

quarta-feira, novembro 19, 2003

Campeões

Scolari considera que Vítor Baía não tem lugar na selecção nacional: está no seu direito. Scolari considera que o suplente do suplente de Vítor Baía tem lugar na selecção nacional: está armado em campeão. Pois muito bem: quando vencermos o Euro 2004 não se fala mais nisso.

Assobios

Parece que ontem o público não começou a assobiar a selecção nacional de sub-21 aos cinco minutos de jogo.

Era o mais forte de todos

Vacilavam na tarde, traziam cordas e correntes
amarradas ao corpo. Mas só a noite
os socorria, efémera, diluída nos sinais
de lume da manhã. Lembravam esses artifícios,
a cerveja e outras drogas leves, um licor
barato comprado em espanha,
um nome ou um rosto que dividisse por dois
a tristeza de tanto abandono. Vacilavam
na tarde, só o relógio da noite os socorria.
Um deles vinha armado, era o mais
forte de todos, o que chorava
no ombro das crianças ao romper da madrugada.

terça-feira, novembro 18, 2003

Panis et circensis

A inauguração de um novo estádio é sempre um acontecimento em qualquer paí­s do mundo. O novo estádio do Dragão não foge por certo à regra, mas era preciso terem misturado a brilhante "Sonata ao Luar" de Beethoven, magnificamente interpretada ao piano por Pedro Burmester, com Luí­s de Matos e uma cantora pimba (seria a famosa Bela da Ribeira?) que tentou trautear o insuportável hino do Porto dando-se ares de cantora lí­rica desafinada? Felizmente, por uma vez, fomos poupados ao guarda Abel, ao Bóbi e ao Tareco.

Os antigos

O poder de curar ou afastar a sombra com as mãos e dividir o fogo, vagarosamente, pelos púcaros.

O esquecimento

Um homem adormece com a tarde a pique nas amarrotadas folhas do cadastro. O deserto avança por onde a aluvião se perdeu ou vagarosamente incide o arco de ferro do esquecimento repetindo injúrias.

As pequenas armas

É a água nos vidros, o vento, a fonte, a luz adormecida nos degraus. A pobre gramática dos campos. Nunca se repetem, esses nomes, como a tempestade não se repete quando sobe das margens e se esconde, uma e outra vez, no cabelo das crianças, nas suas mãos tão breves ainda de ver o inverno tropeçar na rua de tristeza. A água nos vidros, a luz adormecida nos degraus. As pequenas armas de lutar contra o deserto.

Antes de perder o caminho de casa

Antes de perder o caminho, para sempre, de casa, o caminho do largo, a luz dos degraus em pedra, o muro do pátio, o cântaro, mais uma vez levanto e rodo a cabeça sobre os ombros, o último cigarro nos dedos, um lenço, o bordado epigrama antecipado ao labirinto do futuro, a linha vermelha que parece atravessar a direito o espaço de sombra que leva hoje ao mais difícil coração.

segunda-feira, novembro 17, 2003

Contra os canhões

A GNR de Vila Real de Santo António, associando-se ao Dia do Não Fumador, anunciou o resgate de 30 Kg de haxixe enterrados nas dunas da Manta Rota.

Já não foi mau

Uma concorrente do Quem Quer Ser Milionário, confrontada com oito nomes da cultura portuguesa, confessou que o nome de Miguel Torga lhe era familiar. Concedeu que Paula Rego e Júlio Pomar não serão nomes fictícios. Mas nunca ouviu falar em Julião Sarmento, Ana Vidigal, Irene Lisboa, Manuel da Fonseca e Maria Judite de Carvalho. Sabe que nasceu e que reside em Cinfães do Douro. Mas também não sabe lá muito bem a que distrito pertence Cinfães do Douro. Enfim, não se pode saber tudo. E ela é só Professora, não é o Super-Homem.

sábado, novembro 15, 2003

A milhas, etc.

É lamentável que se tenha perdido a tradiçao dos suplementos literários na imprensa portuguesa. O El País e o ABC, por exemplo, ainda nao substituíram os seus suplementos literários por produtos equívocos: no Babelia e no Blanco y Negro entrevistam-se escritores, publicam-se poemas e fazem-se recensoes críticas a livros de ficçao e poesia, deixando para espaços próprios do jornal os assuntos de moda, medicina & futebol, automóveis & motores e aparelhagens de alta fidelidade.

Botas de montanha

Percebe-se que estes turistas vêm de países com muitos anos de educaçao ambiental e muito amor à ecologia. Saem dos carros alugados e tiram retratos de família junto aos painéis informativos do Parque Natural. Olham depois as vertentes íngremes no antecipado prazer de subir aos mais altos cumes da Península. Trazem brochuras, botas de montanha, coletes com muitos bolsos, chapéus de explorador, máquinas fotográficas a tiracolo prontas a disparar contra a borboleta endémica. E iniciam entao os preparativos da aventura que os levará aos 3718 metros de altitude: metem-se na bicha, compram o bilhete, e vê-se pelo ar descontraído que confiam no teleférico, na sua tecnologia de ponta.

Telenovelas e oceanários

Vemos baleias e golfinhos no seu habitat natural. Mas é uma sensaçao estranha. Por instantes é como se ficássemos à espera que fizessem habilidades de circo.

sexta-feira, novembro 14, 2003

O acaso do olhar

Na era dos telemóveis, da comunicação satélite, da talevisão, da internet e do cabo, descobrir que se consegue trocar um olhar com alguém no outro lado do mundo apenas porque se partilha a observação do mesmo astro, no mesmo instante, reveste-se de uma particular e especial profundidade. E por vezes é tão difícil apercebermo-nos disto...

quinta-feira, novembro 13, 2003

Os lugares ausentes

As folhas apodrecem no fundo do
tanque. Recordarás entao o tempo em
que os canais traziam a água em declive
e um estreito fio de luz acompanhava
pelo fim da tarde o voo das aves
a caminho dos açudes. Terás
na memória os torroes da aluviao
a desenhar o labirinto do vale,
os muros de musgo a definir o cadastro
e o perímetro dos campos alagados
à vez, a vara de negrilho
espetada na terra pelas maos das
crianças, o eco de uma voz a
atravessar os telhados e a vibrar
ainda no arame das vinhas.
Mas agora é como se nem
regressasses e só os ramos inclinados
das tílias deixassem as suas folhas
em forma de coraçao a apodrecer
no fundo do tanque sem água.

O coração e a visão

Ferro Rodrigues abriu hoje, em entrevista, o seu coração à Visão. Ao país interessará saber o que vai no coração do líder do PS? Numa coisa, no entanto, Ferro tem razão: no contexto actual parece precipitado o envio dos 128 militares da GNR para o Iraque. Não é de cooperação internacional nem de solidariedade que se trata, mas antes de instalar segurança num país que ainda vive em ambiente de guerra e onde há guerrilheiros armados a quem a manutenção do caos interessa. Provavelmente os militares não estarão preparados para o que vão encontrar. Provavelmente alguns poderão não voltar. O atentado de ontem contra forças italianas teria sido, porventura, o pretexto para se repensar um bocadinho esta questão. Ferro poderá ter marcado um ponto ontem, mas o tempo se encarregará de dizer se ganhará mais, pelo menos nesta matéria. Isso é necessário para o PS e para Ferro o qual, como se sabe, tem emitido opiniões mais baseadas no coração que na razão.

Um ano depois do desastre do Prestige e da forma pragmática como lidou com o assunto, facto que valeu pontos na sua popularidade, este índice está mais baixo que nunca para Paulo Portas. Até quando o PSD, Durão e o país estarão dispostos a manter o ministro em funções? Terá o envio de militares da GNR em vez de militares das forças armadas algo que ver com a necessidade de poupar o líder do PP a mais um rol de críticas?

Milton

Recordo o caminho que subia do rio ate' `a linha de cumeada. Passando a urze e o tojo. Deixando as rai'zes do freixo mergulhadas na a'gua. As folhas adormecidas da ti'lia e os seus troncos afastando-se a custo de ambas as margens. E depois o carvalho negral e as be'tulas antes da neve. E um nome ma'gico: Ilex aquifolium. E nada mais desejaria hoje que recolher ainda em meados de Dezembro as bagas vermelhas do azevinho.

Ainda os jardins, 2

Construi'mos os jardins `a procura de um parai'so perdido. Mas se um jardim fosse o parai'so, e nesse jardim se vivesse, haveri'amos entao de construir um novo jardim `a procura de uma outra coisa.

Ainda os jardins

Estamos no sul. Entramos num jardim e procuramos a sombra. Mal nos ocorre que o jardim foi construi'do contra a luz do peri'metro exterior aos seus muros.

quarta-feira, novembro 12, 2003

Um fim de tarde

O azul muito escuro do mar encostado `as arribas talhadas a pique. O castanho poroso da lava. O branco que separa as nuvens do fim de tarde, descendo vagarosamente, dos mais altos cumes da Peni'nsula.

terça-feira, novembro 11, 2003

Quase o paraíso

Entramos num jardim botânico e sabemos que alguém sonhou assim o paraíso. Nao exactamente assim, claro, porque falta sempre uma árvore, um arbusto, uma flor, e depois outra árvore, outro arbusto, outra flor. Quem sonha o paraíso, ou desenha um jardim, sabe que o paraíso, incompatível com os dias que correm, é sempre feito para o futuro. Como este jardim botânico, num sul umpoucomaisasul. Com a Washingtonia robusta a erguer-se a custo contra um céu muito azul. Com as flores de um rosa muito vivo da Chorisia speciosa. Com as raízes expostas da Pandanus utilis. Com as folhas imensas da Artocarpus altilis. Com os relevos escultóricos do tronco da Ficus elastica. Com o universo fabuloso de raízes e troncos da Ficus macrophylla subsp. columnaris, nesse labirinto de trocas entre o que é do ar (a sua luz) e o que é da terra (a sua sombra).

Um dia regressaremos ao interior destes muros e sabemos que o paraíso estará ainda mais próximo, um pouco mais próximo, do sonho que alguém sonhou muitos anos atrás.

Ela...

Passou à minha frente, na sala apertada, da direita para a esquerda. O seu olhar evitou-me. Soube de imediato que a queria muito, mas tive a certeza disso quando, anos depois da sua gravidez atribulada, me confidenciou que considerara uma dádiva a possibilidade de a filha que trazia no ventre ter nascido deficiente, porque ela, só ela, tinha todas as condições e forças para a criar...

Deus me livre!

Livra! PSD, eu? Lagarto, lagarto, lagarto!
Apenas e só, até à morte...

segunda-feira, novembro 10, 2003

Casar por amor

Depois de ter descoberto Eduardo Mendoza em A Cidade dos Prodígios, há já alguns anos, é reconfortante encontrá-lo agora em plena forma a assinar crónicas jornalísticas na última página do El País:

Versado en novelas de intriga y espionaje e ignorante de las cosas importantes de la vida, apenas me entero del compromiso matrimonial del príncipe Felipe se me ocurre la infundada ideia de que en realidad es una maniobra para contrarrestar los efectos disgregadores del plan Ibarretxe (...). La teoría me gusta, porque me parece más romántica que la que ofrecen los medios de comunicación. Casarse por amor es cosa de todos los días, mientras que lo otro es hacer historia y literatura de una solo tacada.

Para Llorar

Em Espanha, hoje, a notí­cia desportiva nao era propriamente a humilhaçao do Real Madrid, mas sobretudo a derrota do treinador português e a vitória de Caparrós. Nao foi o Real que fez uma primeira parte patética e, a espaços, quase circense. Nao foi o Real que revelou uma impressionante instabilidade defensiva: a equipa foi apenas ví­tima da falta de classe de Queiroz; das suas opçoes desastradas; da sua estratégia destinada ao massacre. Para além desse entendimento, a imprensa espanhola nao lhe perdoa também que tenha lançado Rubén aos leoes e às lágrimas ou condenado Pavón a um triste calvário. É triste. Nós que tí­nhamos o Figo...

domingo, novembro 09, 2003

Também tu, Brutus?

A tendência dominante é a de considerar que o investimento, e sobretudo o investimento directo estrangeiro, é bom em abstracto. Um projecto é tanto melhor quanto maior é o investimento que se lhe encontra associado, ponto final. Não se aceita, portanto, que um determinado projecto imobiliário, por exemplo, possa ser reprovado por contrariar as disposições regulamentares de um instrumento de gestão territorial ou por razões ambientais. No Algarve, sempre que um investidor alemão ou holandês não pode avançar com o projecto de execução de um condomínio privado em zona de máxima infiltração ou na crista de uma arriba em faixas de risco, a indignação cresce e acena-se com o fantasma da perda de investimento directo estrangeiro que, invariavelmente, será desviado para Espanha; que assim não saímos da cepa torta. Ora muitas vezes acontece o contrário. A multinacional alemã Benteler, por exemplo, anuncia a intenção de construção de uma segunda fábrica de componentes para a indústria automóvel no nosso país, supostamente porque não foi possível encontrar na Galiza solo industrial disponível. E descobrimos então que a Espanha também se dá ao luxo de perder IDE; que em Espanha também há planos de ordenamento do território; que em Espanha também há Rede Natura e áreas protegidas. E isto é uma surpresa...

Última hora

Pinto da Costa acaba de anunciar que não convidará umpoucomaisdesul para a inauguração do Estádio do Dragão. Lamentamos informar que, como retaliação, vetaremos a presença de Pinto da Costa e de José Mourinho no jogo-convívio de encerramento do encontro de blogs algarvios cuja organização está em curso.

Quase um domingo

Um sábado sem vento nem sol. Nem chove nem sai de cima. O levante deu ontem as últimas. Hoje amanheceu com um sudoeste que anuncia água. Parece domingo. Uma manhã e uma tarde sem história. Valeu-nos, à noite, um Douro da Quinta de Nápoles: tinta amarela, roriz e touriga francesa em terrenos xistosos. E a noite já parecia diferente quando saímos ao jardim, depois do vinho, a fumar um cigarro.

Urbe

O lixo, a má arquitectura, o mau urbanismo (ou a ausência dele), o desleixo: é bem verdade que parece que entramos sempre nas nossas cidades pelas traseiras.

sábado, novembro 08, 2003

Desenhos que não precisam de legenda

Um T2 na Praia da Lota custava vinte e sete mil contos na Primavera do ano passado. Em Novembro de 2003 estão a ser vendidos a trinta e quatro mil contos. Os serventes e os trolhas que trabalham nestes loteamentos ganham em Novembro de 2003 o mesmo que ganhavam na Primavera de 2002. O sistema de tratamento de águas residuais, que servirá este e os restantes empreendimentos em curso no concelho, será concretizado com recurso ao investimento público. Os rendimentos dos agregados familiares do Algarve estão em decréscimo, em termos relativos, há três anos.

Agora é claro que tudo isto explicadinho em economês, com duas ou três citações e enquadramento teórico, era outro asseio...

sexta-feira, novembro 07, 2003

Com as palavras de Sophia, o tempo que agora nos cabe

Vais pela estrada e ouvirás
O som metálico dos guindastes movendo-se
A imitar o antigo canto das
Aves. Depois encontrarás
O entulho arrumado aos taludes
Cortados a pique. Em nenhum lugar escutarás
O silêncio. Em nenhum lugar se
Levantará como um canto o teu amor
Pelas coisas visíveis. Mas olharás
Em redor e compreenderás
Que muitas coisas se vendem. Que
Se vende o mar, o vento e a lua
A prestações suaves. Que estão à venda a
Própria praia outrora extasiada e nua,
Os murmúrios da terra indefinida,
A transparência das paisagens que
Alguém jurou um dia ser de
Madressilva e primavera desenhada.
E trarás então para o almoço,
Entrando no hipermercado,
Com seu sabor de rosa densa e breve,
O peixe congelado.

quinta-feira, novembro 06, 2003

Porque escrevo

Há dias perguntaram-me se porque escrevo. Aqui ou noutro lugar, mas suspeito que a pergunta tinha mais que ver com o "Um Pouco Mais de Sul" - como se apenas o fizesse aqui - que com outros escritos. Naturalmente, partindo do pressuposto de que há vida para além da blogoesfera, não deixa de ser uma boa pergunta. O interessante é que muito provavelmente não tenho nem nunca terei qualquer resposta para a pergunta. Felizmente que Virgílio Ferreira nos dá uma certa ajuda:

"Escrever. Porque escrevo? Escrevo para criar um espaço habitável da minha necessidade, do que me oprime, do que é difícil e excessivo. Escrevo porque o encantamento e a maravilha são verdade e a sua sedução é mais forte do que eu. Escrevo porque o erro, a degradação e a injustiça não devem ter razão. Escrevo para tornar possível a realidade, os lugares, tempos que esperam que a minha escrita os desperte do seu modo confuso de serem. E para evocar e fixar o percurso que realizei, as terras, gentes e tudo o que vivi e que só na escrita eu posso reconhecer, por nela recuperarem a sua essencialidade, a sua verdade emotiva, que é a primeira e a última que nos liga ao mundo. Escrevo para tornar visível o mistério das coisas. Escrevo para ser. Escrevo sem razão."

Vergílio Ferreira, in "Pensar"

Finalmente...

E não é que Durão Barroso teve finalmente a lucidez e a inteligência de perguntar a Francisco Louçã porque espécie de razão é que a esquerda continua a achar-se no direito de entender que só ela tem coração? E não é que na ala esquerda do parlamento, ninguém lhe soube dar uma resposta coerente e justificativa? Não era esta pergunta necessária há já um bom par de anos? Com a sua pergunta na discussão do Orçamento de Estado para 2004, Durão Barroso sentou a esquerda portuguesa, e apertou-a ainda um pouco mais com o prometido aumento das reformas em seis por cento, a que acrescerá a diminuição das listas de espera nos hospitais a breve trecho. O arregaçar de mangas do governo, traduzido no agarrar das tradicionais bandeiras da esquerda deixam pouca margem de manobra para grandes contestações. Mais, a oposição tem agora muito mais trabalho, se quiser ser alternativa séria em 2006, tanto mais que o défice está contido dentro dos limites impostos pela União Europeia, apesar de todo o alarde que se fez em torno desta questão. Sem nutrir qualquer simpatia pelo Primeiro-Ministro, imparcialmente direi que o seu discurso político começa a fazer algum sentido apenas porque procura quebrar os tradicionais tabus e chavões que não têm qualquer razão de ser no actual estado da democracia portuguesa.

quarta-feira, novembro 05, 2003

Antologia da SUL, 2

De Nuno Júdice, a revista SUL publicou em inícios de 2001 três poemas inéditos. Agora que é tempo dos figos cheios, e dos figos em estrela, será tempo também de partilhar aqui esses versos, essa memória dos frutos que no inverno se tiravam dos frascos para, em segredo, chupar os seus grânulos ou saborear na boca a amêndoa que os recheava. Depois do excerto de uma crónica de Manuel Dias, retomamos aqui uma Antologia da SUL com um poema de Nuno Júdice:

ESTRELAS

Desfaço nas mãos os figos, os fios
fugazes de setembro, enquanto o seu leite
escorre pelas folhas verdes que
os envolvem. Esses figos, metidos
em cestos de vime, eram mel na boca
que os saboreava. Secos, iam parar
aos frascos fechados para o inverno, de onde
os tirava para os meter no bolso,
antes de sair. «O que tens aí?», perguntavas-me. E
eu passava-te para a mão um desses figos, e via
como o abrias, chupando os seus grânulos,
e passeando na boca a amêndoa que
o recheava. Mas hoje, onde estarás?, pergunto. Poderia
ainda partilhar contigo um
desses figos do inverno? Ou o seu leite secou,
no canto dos lábios, roubando-te
as palavras, e o húmido murmúrio
do amor?

Isso sim

Que a Nossa Senhora de Fátima da srª Benigna Pereira tenha começado a chorar lágrimas de cera, enfim, não parece milagre de monta. Milagre, milagre, era se, inopinadamente, se começasse a rir da situação...

Ao menos haja quem aproveite

Ferro Rodrigues, na discussão sobre o Orçamento de Estado, diz que «Portugal está a andar para trás». Entretanto, dois reclusos fugiram de Alcoentre na segunda feira e continuam a monte. Deve ser a tal crise assimétrica a que se refere o sr. presidente do BPP: enquanto uns insistem em andar às arrecuas, outros aproveitam para fugir em frente.

terça-feira, novembro 04, 2003

Ainda a memória

É verdade que somos vizinhos. Que é mais fácil tropeçarmos assim nesse fio quase invisível das cumplicidades. Partilhar o fascínio da evocação das sombras inclinadas nos muros de pedra do barrocal, do crepúsculo a desenhar-se nas muralhas antigas, da luz a levantar-se nos pomares de sequeiro. Aí regressar tantas vezes, sem pressas. Aos poetas de Cacela do século XI ou a Sophia. A Omar Khayyam, ao vinho e às rosas dos seus versos. À memória da Feira de Todos-os-Santos. Aos carrinhos e aos aviões da infância, ao comboio fantasma, ao poço da morte. Às tendas de fancaria, às louças de barro, aos colares de bolotas. E a esses lugares: ao Pego do Pulo, à Cerca da Feira, ao rio, à alcáçova, ao grés das cisternas. A tudo isto regressar assim, vagarosamente.

segunda-feira, novembro 03, 2003

Memória dos sabores antigos

Hoje à noite, na serra, havia figos cheios e em estrela, e havia medronho. E recordámos então uma crónica de Manuel Rosa Dias (esse mesmo, o do DN-J...) publicada na revista SUL há um pouco mais de três anos. É um texto com um pouco mais de sul, uma memória dos sabores antigos. E não se resiste a publicar aqui um excerto - também, ou sobretudo, em nome de uma velha e sempre presente amizade:

«Figos, já disse, é na figueira. Abro uma excepção, vá lá, duas. Ou mesmo três.
A primeira é para os figos secos do almanxar. Estou a ver-me de calções, agachado ao pé das esteiras que, ao fim do dia, o meu pai ia enrolar por causa da brandura da noite. Eu não ajudava nada, passava o tempo catando para a boca os mais direitinhos. As mãos pegajosas do melaço agarrado às canas, um pouco bêbado talvez, mas nunca enjoado desse inesquecível perfume.
Depois, os figos do Maio. Secos e espalmados, acamavam-se em latas ou caixas de papelão e, durante seis ou sete meses, iam ganhando o espírito da erva-doce e de outras plantas aromáticas lá encerradas também. Até que chegava Maio e o tempo da ressurreição. Que cheirinho. E que inveja de não poder, como os mais velhos, acompanhá-los com aguardente de medronho.
Por fim, os figos torrados no forno, com ou sem guarnição de amêndoas. Sendo com elas, já agora que seja em estrela, e os miolos abertos ao meio e descascados»...

Almanxar

Se já nem ao Suave do Português temos direito, imagine-se a confusão que não seria nos gabinetes e corredores da Comunidade Europeia se pretendêssemos certificar a designação de «figos secos do almanxar»...

domingo, novembro 02, 2003

A solidariedade para com a águia...

Vinham estas breves palavras a pretexto da solidariedade com todos os benfiquistas depois da primeira derrota - no primeiro jogo - em jogos oficiais no novo estádio... perdão, no inferno... perdão, na catedral da luz. Enfim, a primeira derrota da era Luís Filipe Vieira, expressivo vencedor das eleições da passada sexta-feira, concorrente em ritmo de passeio no seu carocha encarnado. Diga-se, à laia de curiosidade e em bom abono da verdade, que o autor da façanha foi o poderoso Beira-Mar.
Contudo, tendo-me debruçado um pouco sobre uma reflexão da autoria de António Barreto, publicada no Público de hoje (Domingo, dia 2), na qual este se questionava sobre se faria sentido a existência da Casa Pia, não por causa dos escândalos que a vêm afectando, mas antes pelo seu papel, resolvi analisar a questão sob outra forma. Concretizando, António Barreto afirma que o papel do Estado deve ser o de promover a adopção do maior número possível de crianças, dando-lhes um lar e o aconchego de uma família. Ora, a Casa Pia, ao desenvolver precisamente uma estrutura que preconiza o princípio contrário, representa uma contradição face a tal desiderato, pelo que, em última análise, aproveitando o momento conturbado que vive, o Estado deveria promover o seu desaparecimento. Este, sinteticamente, o pensamento de António Barreto.
Sem querer aqui analisar a complexidade da questão, parece-me, salvo erro, que a reflexão se pode e deve igualmente aplicar ao Benfica. Com efeito, o Benfica cresceu e dotou-se de uma mística num período em que os portugueses andavam descontentes com o regime, eram órfãos de pai e mãe porque o Estado os deixara de proteger e, mais grave, os agredia. O Benfica foi assim adoptando cada vez mais filhos que, rezam as crónicas, chegaram a ser cerca de 6.000.000, órfãos que viviam debaixo da protecção da asa vigilante da grande águia. Ora, nos tempos que correm, os papéis inverteram-se. O Estado passou a proteger a águia, esta perdeu a sua mística e o povo, outrora carente de protecção, passou a saber cuidar de si próprio. Adquiriu maioridade e agora passou ele a cuidar do Benfica. Mesmo os pretensos 4.000.000 de portugueses que não são seus adeptos nem sócios pagam (altos) impostos que ajudam ao seu sustento sob as mais variadas formas. Pergunta-se então, face ao exposto, à semelhança do que é legítimo questionarmo-nos acerca da Casa Pia, fará sentido a existência do Benfica?

4.000!

Muito por "culpa" do Zé Carlos este blog atingiu as 4.000 page views. Não é muito, nem é pouco, serve num blog sem pretensões e com um grau relativo de leveza. Contudo, revela que há espaço para o que aqui se diz. Para já, é pena o apagamento do João e do Joaquim que tanta falta fazem. Começamos agora a caminhada rumo às 5.000 page views, com promessa de beberete (cada um paga o seu) nesse dia. Combinado? Até lá e uma saudação especial a toda a blogoesfera.

Uma solução natural

Um dia sem história. O nariz entupido. A cabeça num oito. Pego num livro. Leio meia página e desisto. Levanto-me. Vou ao jardim. Volto a sentar-me. Levanto-me de novo. Pego no frasco de Rhinomer Forte, retiro-lhe a pequena tampa circular, fixo o aplicador nasal conforme instruções do folheto informativo. Passo os olhos pelo folheto informativo. Vejo a composição, as indicações, as contra-indicações que não tem. E compreendo então que estou a tomar «água do mar»... Nem mais nem menos: «água do mar». A escassas centenas de metros da praia, e eu a desentupir as fossas nasais com água do mar adquirida na farmácia a 58.80 euros o litro...

sábado, novembro 01, 2003

Peles genuínas

Já se sabia que o pássaro preferido de Bobone é a borboleta. Fica-se agora a saber que Cinha adora «tudo o que é animal» e acha «chiquíssimo» usar peles genuínas...

Isto nem chega a ser grave. É só parolo.

Ainda o off-shore

Em entrevista ao «barlavento», o presidente do Conselho de Administração do Banco Privado Português reconhece que o novo regime de tributação de empresas off-shore «poderá ter uma influência negativa, embora em Espanha o governo tenha feito exactamente a mesma coisa há já muitos anos». João Rendeiro acrescenta que esta legislação se insere «numa tendência internacional que está a acontecer», e que o novo regime não afastará tanto «os investidores sérios», mas sobretudo «aqueles investidores que terão algumas dificuldades de explicar exactamente todas as suas operações»...

Entretanto, a Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve insurge-se pela milionésima vez contra este regime tributário, garantindo que a situação nos coloca «ao nível de um qualquer país de 3º mundo», e que «serão necessários muitos milhões de euros e muitos anos de investimento promocional para reparar os danos causados na nossa imagem»...

Depois querem que a gente compreenda... Então a nossa imagem fica danificada por uma medida que afecta sobretudo os investidores que têm dificuldades em explicar de onde lhes vem o dinheiro?...

A crise assimétrica

Na mesma entrevista ao Barlavento, o presidente do Banco Privado Português analisa assim a situação do país: «Diria que o país vive uma crise assimétrica. E uma crise assimétrica é uma crise em que para uns há crise e para outros não. Isto pode parecer contraditório, mas não é.»

Oh senhor doutor João Rendeiro, por amor de Deus: claro que não é contraditório... Até está muito bem explicadinho...

quinta-feira, outubro 30, 2003

s. tomé

eu é ao contrário
preciso de crer
para ver

quarta-feira, outubro 29, 2003

Os marsupiais saltadores

As Áreas Protegidas junto dos eucaliptos, tudo bem. Mas, já agora, importem-se cangurus para espalhar na Rede Natura.

Um adeus

Discutiam daquela forma civilizada, pedagógica, explicadinha, insuportável. Sem elevar demasiado a voz. Dizendo coisas do género: «mas não penses que a partir dessa altura a minha confiança em ti não ficou definitivamente comprometida». Falavam na rua, em Bensafrim, às 09:00 AM, quase protegidos pela esquina da Travessa que dá para o largo da Vicentina, ela num tom meio ponto acima a sublinhar um adjectivo. A trocarem frases copiadas dos compêndios de ciências sociais. Sem modulações, racionais, como se estivessem imunes à paixão e ao ódio e apenas, em vez do amor, os tocasse a erosão. Despediam-se. Era um adeus. Mas compreendia-se que não havia muito de que se despedirem. E que eles próprios sabiam que essa era a maior tristeza que lhes pesava nos ombros.

Todas as coisas

A casa à beira do rio, a manhã de névoa a erguer-se vagarosamente das águas da presa, o caminho que sobe pela encosta até ao bosque de bétulas, a chuva, o muro de pedra, as folhas do negrilho, a urze nos declives: o mundo todo.

terça-feira, outubro 28, 2003

A administração da justiça

Num jogo em que não morreu ninguém porque a estatística é grandiosa, apesar das sucessivas e bem distribuídas acções de entrada ao osso com muita fé, esperança e nenhuma caridade (como diria Duda Guenes), o senhor árbitro acabou por expulsar um jogador. Decidiu expulsar o Deco. Expulsou-o quando estava descalço, depois de perder a chuteira numa disputa de bola, e impedido, portanto, de garantir uma fractura exposta ao adversário. Está certo. Foi coerente com a sua actuação ao longo do jogo e com o estado a que chegou o nosso futebol. Só falta o sr. Guerra Madaleno ganhar as eleições e o sr. Pinto da Costa receber uma bênção de Sua Santidade ou iniciar-se o seu processo de beatificação. Mas, nada mais sendo improvável, não é certo que Madaleno ganhe as eleições.

segunda-feira, outubro 27, 2003

O candidato vermelho

O leitor, sportinguista avisado, já imaginou a felicidade que lhe iria na alma, se acaso, se pelo mais mero dos acasos, Guerra Madaleno ganhasse as eleições do Benfica? Do mal o menos, sempre podemos sorrir, já que, ao que parece, Jaime Antunes, afinal, não tem a mais pequena hipótese...

«A coceira baixa a produtividade»

A srª drª Odete Santos é agora actriz de revista. Um sujeito não-sei-quê faz de Tarzan. O ex-revolucionário Carlos Alberto Moniz faz a música. Odete Santos faz dela própria. A realidade segue dentro de momentos.

A missa a metade

O Ministério Público, a PIDE, a Gestapo. Isto vai lindo...

A tempestade

Era no tempo em que a indecisão e
o poder caminhavam juntos
e a trepadeira do sono floria exuberante nas
primeiras páginas dos jornais diários.
A própria sombra atava os seus próprios
nomes à mais alta torre.
As crianças esperavam impacientes que os
croissants e as sondagens da manhã
permitissem a circulação dos
transportes públicos a caminho da escola.
Primeiro o ábaco difícil, depois a água a subir
nas margens de barrancos sem regra,
a pronúncia divisória, a chuva
nas janelas de casa, a tempestade.

Depois da tempestade

Depois da tempestade era preciso recolher os
destroços e organizar as defesas. Vieram então à
linha de rebentação os economistas com
suas pranchas de surf e seus inúmeros gráficos.
Ajudantes de campo com sua álgebra e seus
logaritmos impressos vagueavam à distância
repetindo nos átrios encerados, uma a uma, as
sombras dos portões das fábricas e dos
armazéns das periferias. Guardas fiscais com
seus impermeáveis cinzentos e sapatos de chuva
mediam os alçados dos edifícios alienáveis
e contavam pelos dedos subindo ligeiramente
contra o lábio superior a língua humedecida nos
labores do cálculo. Os namorados à procura do
primeiro emprego gostavam de mostrar em
público que sabiam tocar-se mutuamente
em esquadria, numa rigorosa aritmética.

domingo, outubro 26, 2003

Agora, quando chove,

recordamos com nostalgia o tempo em que a água corria nas linhas de água.

A chuva

espalha nos passeios dos loteamentos a terra dos taludes cortados a pique.

E, de súbito,

a luz do farol, de seis em seis segundos, cortando a noite num movimento rápido, erguida contra a chuva e esse manto de cinza que desce do céu e sobe do mar, volta a fazer sentido.

sábado, outubro 25, 2003

Assim dá gosto

«Já o sol atingia a linha do horizonte e começava a mergulhar no mar quando os mouros chegaram às naus, que acabavam de ancorar». Este é o resumo da primeira estrofe do Canto II d’Os Lusíadas, na versão do Expresso. A rima é um bocadinho pobre, mas a musicalidade está garantida: «se o que procuras são as mercadorias orientais, a canela, o cravo, a pimenta, ervas medicinais...» O original que se cuide...

Mas não é só a musicalidade... Mesmo quando Camões parece menos inspirado («Quais para a cova as próvidas formigas,/ Levando o peso grande acomodado»...), os comentários que acompanham cada uma das oitavas não abdicam da originalidade e da vivacidade das imagens: «Do mesmo modo que as previdentes formigas levam grandes pesos para as suas covas»...

É verdade que a ortografia não sai muito bem tratada: ha, apostolos, tambem, ceus, conclue, saiem, àgua, maguada, têem, quizeram... Mas o caso não é grave, numa edição que se pretende didáctica...

sexta-feira, outubro 24, 2003

Um estranho rumor

Já aqui se falara dela, dessa voz que espalha um estranho rumor de cumplicidades, dessas canções que deixamos de ouvir apenas para que, por um instante, o vento lá fora nos confirme que a noite não se perdeu ainda nos seus fios trémulos. E que depois ouvimos de novo por suspeitarmos que foi apenas para nós que alguém escreveu esta música. Que foi apenas para nós que alguém acendeu esta luz vagarosa. Que foi apenas para nós que alguém trouxe de longe a folha em forma de coração, com suas nervuras intactas, guardada nas páginas velhas de um herbário. Que foi apenas para nós que alguém se perdeu entre a chuva da península e os seus caminhos junto ao mar.

Carla Bruni: «quelqu’un m’a dit»:

Quand j’aurai tout compris, tout vécu d’ici-bas,
Quand je serai si vieille, que je ne voudrai plus de moi,
Quand la peau de ma vie sera creusée de routes,
Et des traces et de peines, et de rires et de doutes,
Alors je demanderai juste encore un minute...

quinta-feira, outubro 23, 2003

As aves da Directiva

Conta-se que, na fase descendente do partido, vendo chegar Hermínio Martinho e três camaradas, alguém comentou com um amigo: «Aí vêm as cúpulas do PRD». E que o amigo acrescentou: «As cúpulas e as bases...» Mas a estes ainda os eleitores podiam pedir responsabilidades políticas, mesmo quando já pouco distinguia a direcção do partido e a respectiva base sociológica. Com «Os Verdes» o caso é diferente: eles são uma voz na Assembleia da República preocupada com as questões ambientais e da conservação da natureza? Sim, quando as suas posições sobre questões ambientais e da conservação da natureza não conflituam com a agenda política ou os interesses estratégicos do Partido Comunista. O problema é que as aves migratórias (e isto é só um exemplo) às vezes escolhem países progressistas para a hibernação. Nesse caso, até onde vai a capacidade dos Verdes para discutir programas de conservação das espécies da Directiva?

Contra factos...

Jaquinzinhos digna-se explicar à plebe o bê-a-bá da «Evasão Fiscal, Offshores e Coisas Afins». Tão límpida é a prosa, tão escorreita, tão arrumada, tão encadeados os raciocínios, que mesmo os menos versados em economês compreendem sem dificuldades o cerne da questão: os ricos pagam na íntegra os impostos que a lei exige, e se não pagam mais é porque utilizam «as faculdades legais ao seu dispor para pagarem menos», e a isso chama-se «planeamento fiscal» (os bancos, por exemplo, pagam pouco de IRS apenas «porque a lei o permite», nomeadamente «através do tratamento fiscal diferenciado de vários produtos financeiros»); os pobres, por sua vez, fogem dos impostos como o diabo da cruz. A eles, portanto, a crise obviamente se deve.

Tudo isto já sabíamos, mas assim explicadinho é outro asseio...

quarta-feira, outubro 22, 2003

F1

Não pude resistir a responder ao post do Zé Carlos sobre a Fórmula 1. No meu caso, descobri-a antes do futebol; a paixão pelos automóveis nasceu em memórias de corridas de automóveis disputadas junto à  Fortaleza de Luanda e nas 6 Horas de Nova Lisboa, ambas em Angola, anos antes da independência. O meu pai, trabalhando para o importador da BMW, da NSU, da Autobianchi e da Skoda, tinha acesso a bons lugares no paddock e a azáfama que ali se vivia, contagiou-me de forma indelével. Durante anos, alimentei o sonho de poder vir um dia a disputar provas, ser um deles, sonho esse que foi adiado até ao dia em que decidi prestar provas no autódromo do Estoril. Salvo erro, na altura, as provas eram para o troféu Renault 5 GT Turbo e o vencedor tinha direito a disputar uma época totalmente patrocinada. Um 5º lugar entre 100 candidatos não foi suficiente e por isso demandei, no Verão seguinte, os testes de Fórmula Renault no circuito de Paul Ricard, Sul de França. Uma viagem a sós, partilhada com um Ford Cortina, evitando as caras (para o bolso de um estudante) auto-estradas do Sul de Espanha e França, com dormida em parques na auto-estrada e Parques de Campismo foram a melhor aventura para este vosso escriba durante muito tempo. Apenas chegado, uma desilusão; nessa tentativa fiquei para trás do top ten entre cem candidatos, pelo que o sonho acabou nesse dia. Enfim, restava outra paixão, a que me dediquei e, anos volvidos, me dedico.
Dito isto, não quero entrar na querela acerca de quem terá sido o maior piloto de todos os tempos. Direi que vi grandes estrelas (como Shumacher, Senna, Prost, Lauda, Piquet, Mansell, Stewart), vi pilotos que foram grandes promessas (casos de Villeneuve, Alesi, Berger, Peterson, Pironi, Alboretto, de Angelis) mas que nunca foram campeões e vi campeõµes fracos e sem qualquer carisma (o que julgo serem os casos de Hunt, Schecketer, Rosberg, Jacques Villeneuve, Damon Hill e Hakkinen). No presente, destacaria Button, Raikkonen, Alonso e Button como pilotos do futuro, o finlandês de longe o mais competitivo. Montoya será uma incógnita, mas não me parece suficientemente estável emocionalmente para poder ser um dia campeão. Contudo, Mansell também não o foi durante muito tempo e bastou uma vitóriaria frente a Rosberg em Kyalami, no ano de 1985, para tudo mudar no perfil psicológico do homem e do piloto.
Todavia, perdoe-meo leitor, mas com tudo o que há de subjectivo nestas apreciações, o meu coração penderá sempre para um único homem, que alimentou e alimenta ainda o sonho de milhares de admiradores da F1, anos volvidos após a sua morte. Enzo Ferrari, no livro em que fala das suas má¡quinas e dos seus homens - Ferrari piloti, che gente - leva-nos ao epicentro das sensações. Ali, percebemos que Gilles Villeneuve é o filho que substituiu Dino após o seu desaparecimento prematuro e a morte de Gilles levou igualmente parte da sua existência. Percebi a mí­stica da scuderia muito cedo, e desde sempre torci pela Ferrari, independentemente de quem fossem os seus pilotos. Assim, detestei e adorei Prost, detestei e adorei Mansell, e tenho pena que Senna nunca se tenha predisposto a fazer o que Schumacher fez nos últimos seis anos. Hoje, nove anos volvidos após a morte de Ayrton, noto que me fez falta torcer por Senna; à  scuderia e a mim falta-nos isso no passado. Como falta me fez o campeonato de 82, perdido na luta fraticida entre Pironi e Villeneuve. Ambos, como Alboretto, estão mortos pelo sonho. Villeneuve, último piloto a morrer ao volante de um Ferrari será todavia sempre o maior, porque Enzo Ferrari quis que assim fosse. Assim se cumpra o legado do Comendador.

O piloto de testes

Anda uma discussão interessante no BdE sobre Fórmula 1 e os seus mitos. Sobre Fangio, sobre o êxtase de ver Alain Prost cortar a meta em primeiro lugar, sobre o virtuosismo muitas vezes sem cálculo de Nigel Mansell, sobre os excessos de Montoya, sobre Gilles Villeneuve, esse «rei sem trono». Tudo isto, claro, a propósito do «hexa» de Schumacher: o piloto alemão é ou não o melhor de sempre? De acordo com o meu amigo J. M Dantas, que não subscrevo senão no elogio final, uma geração com um Schumacher num Ferrari é um Renault impotente; o Schumacher nasceu para provar que nem todos os que são campeões sabem ser campeões; não se compreende como há ainda quem lhe lave a roupa; apesar de tudo, Michael Schumacher «é o melhor piloto de testes de toda a história da Fórmula 1»...

terça-feira, outubro 21, 2003

A Calábria em Portugal

A Calábria é uma das regiões do Sul de Itália que se estende entre o "calcanhar" e o meio da "bota". É uma das regiões mais pobres e, talvez por isso, daquelas acerca das quais menos se ouve falar.
Portugal, naquelas paragens, é muito longe, mas entre uma e outro há inúmeros pontos de contacto para além da latinidade, a começar pelos ingredientes básicos da gastronomia. Como os Portugueses, os Calabreses não desdenham uma boa refeição, sendo igualmente conhecidos pela sua inclinação para a boa e farta cozinha.
Talvez por isso, mas não apenas por isso, um calabrês decidiu aterrar no Algarve não para fazer pizzas mas unicamente comida calabresa, e ainda por cima com gosto caseiro, servida em toalhas aos quadrados e simpatia a rodos, coisa que não constava do panorama. Já há alguns meses a esta parte, o Grissini, casa sem pretensões, mas digna de nota, localizada na rua dos Correios, em Almancil, tornou-se ponto de paragem obrigatório para os apreciadores do género. Recomenda-se uma visita, sem pressa, que o tempo, ali, passa devagar.

Alguém anda distraído

Luís Figo diz que há selecções melhores que a nossa: a Alemanha, a França e a Espanha, por exemplo. E que, obviamente, é pouco provável que vençamos o Europeu. Scolari, por sua vez, explica que nos falta «determinação». Não tenho ouvido ultimamente o senhor ministro Arnaud, mas parece-me que isto não era ainda para se dizer...

segunda-feira, outubro 20, 2003

O direito de passagem

Só elas sabem que os filhos regressam uma
única vez, e às vezes é tarde. Por isso se
vestiram de negro antes ainda dos meses frios
e guardaram os retratos na cómoda
como quem defende a propriedade
ou o direito de passagem.

domingo, outubro 19, 2003

O poder do mercado

Em Cacela só há catequese três vezes por mês. As sessões de catequese resistem aos domingos de vento, aos domingos de sol, aos domingos em que a névoa se derrama sobre a laguna e a península. Só não resistem aos domingos de mercado. E está certo: no mercado de Cacela há roupa de marca ao preço da chuva, e não se pode dizer que seja pecado sequer venial não resistir a comprar pólos da Sacoor ou da Quebra-Mar a seis euros a peça nos dias em que o mercado coincide com a catequese...

Os fumadores morrem prematuramente

O Futebol Clube do Porto está a perder com o Belenenses. Saio da sala da televisão para comprar cigarros, subo o degrau que leva à outra sala, não tenho dinheiro trocado, destroco uma nota de cinco euros, falo por instantes com o empregado de balcão, acabo por beber uma imperial, meto as moedas na máquina, desço à sala, sento-me na mesa, acendo um cigarro e olho de novo a televisão: o Porto ganha por 4-1. Se isto não é prova suficiente dos malefícios do tabaco, vou ali e já venho...

sábado, outubro 18, 2003

A época baixa

Vê-se uma salamandra de pintas amarelas, ou saramaganta, e é impossível não especular sobre as notáveis semelhanças, ao nível da biologia da espécie, entre o anfíbio e estes simpáticos turistas idosos que passeiam a pé pelos caminhos secundários ou junto à praia, e que nos visitam durante a chamada época baixa: é que também a actividade anual da saramaganta se concentra entre finais de Setembro e meados de Maio; também ela apresenta uma locomoção lenta; e também no seu caso a actividade sexual se limita a dois curtos períodos durante o ano, uma vez no Outono e, recuperadas as forças, outra vez na Primavera...

A água dos açudes

Os meteorologistas andam com má fama no Algarve. O «Barlavento» chama-lhes mentirologistas. Primeiro anunciaram uma tempestade e vieram dias de praia; depois a tempestade chegou quando se anunciava bom tempo.
Há gente assim. Há gente que dava tudo por saber com rigorosa antecedência quando chove ou faz sol. Por nunca ser surpreendida. Por nunca se sobressaltar. Por nunca o amor ou a paixão visitá-la sem aviso.

sexta-feira, outubro 17, 2003

As moradas inúteis

O céu poisado nas casas, no
barro do ar, nos lenços
de água das crianças.
O deserto avança pelo interior
do verde claro do país.
A ignomínia da vigília, eis
o que resta, o levantamento
da ironia e seus refúgios
difíceis. O inverno recorta
na cartolina dos eucaliptos
a paisagem desolada
e frágil. Como pesa nos ombros
esta chuva dum postal enviado
de longe a moradas inúteis.

Crime e Castigo

No comentário inocente a um post de Prazer_Inculto deu-me para falar dos malefícios do chouriço e da importância de prever avisos longitudinais na tripa do invólucro alertando os incautos para o problema do colesterol. Possidónio Cachapa leu, tresleu e pespegou-me o rótulo de «defensor do direito a fumar onde apetecer e os outros que se mudem»... Veja-se o exagero militante, o verniz a estalar... Eu, imagine-se, que já só desejaria o «direito a fumar» onde não incomodasse ninguém, e que já só desejaria, pegando num maço de cigarros com avisos de 16.40 centímetros quadrados a publicitar o meu estatuto de burgesso, que não me olhassem como a Raskólnikov, na secretaria da polícia, quando começaram a crescer as suspeitas de que teria assassinado Aliona Ivánovna e a sua irmã Lisaveta... Será pedir muito?

quinta-feira, outubro 16, 2003

É cedo ainda

É cedo para esboçar cenários sobre as eleições presidenciais. Portugal não foi ainda humilhado no Europeu. Scolari não foi ainda demitido. Madaíl não pediu ainda a demissão. O Futebol Clube do Porto não venceu ainda a Liga dos Campeões. Vítor Baía não defendeu ainda a grande penalidade decisiva na final da competição nem recebeu ainda o troféu de melhor jogador do torneio. Mourinho e o seu guarda-redes galáctico não chegaram ainda a acordo com o Real Madrid. Cavaco Silva, Freitas do Amaral e António Guterres não comunicaram ainda o abandono da vida política activa. Santana Lopes não confessou ainda, em entrevista exclusiva à Blogspot.PT, gerida por Paulo Portas, que em boa verdade a presidência da República nunca esteve nos seus horizontes. Pinto da Costa, vindo de Roma, não foi ainda recebido em apoteose no Terreiro do Paço.

Uma nova luz

Conhecendo-se já pormenorizadamente a posição dos estudantes sobre o pagamento das propinas, seria talvez tempo de saber o que pensa sobre o assunto quem realmente desembolsa. De resto, a opinião pública seria muito mais sensível ao caderno reivindicativo das academias caso o slogan «Não Pagamos» fosse removido de vez das manifestações e substituído por palavras de ordem que não remetessem para conceitos abstractos: «Os Nossos Pais Não Pagam», por exemplo, traria uma nova luz ao debate, e exigiria discussão séria.

quarta-feira, outubro 15, 2003

A vexata quaestio

O leitor desculpar-me-á porventura a inoportunidade da pergunta mas, não lhe parece que depois da recente troca de recados entre Portas e Freitas do Amaral, caminhamos mesmo para uma candidatura de Cavaco Silva à presidência da República, apoiada pelo PP? A ser assim, confirma-se que a flexibilidade intelectual de Paulo Portas, mais do que alarmante, começa a ser francamente perigosa. E o pior é que, sinceramente, tirando o próprio Cavaco ou Pacheco Pereira - por ora entricheirado na Europa e no seu Abrupto - não vejo quem, dentro do PSD, lhe possa fazer frente; isto, naturalmente, se o PSD sobreviver a Portas...

Bragança 0 - Time 2

O Governo decidiu suspender toda a publicidade relativa ao campeonato da Europa de futebol Euro 2004 na revista "Time", segundo declarações avançadas pelo gabinete do ministro adjunto do primeiro-ministro, José Luís Arnaut. Afinal, quando se pensava que os efeitos da avalanche provocada pelas mães de Bragança tinham terminado, eis que se descobre, afinal, estes não cessam. Pessoalmente, acho um erro crasso, pelas razões que passo a explicar: o Euro 2004 era um magnífico pretexto para alguns homens dessa Europa virem a Portugal, com o beneplácito das suas famílias. Bragança, como se sabe, dotada de magníficas infra-estruturas rodoviárias herdadas do cavaquismo, fica a meia dúzia de quilómetros do Porto (2 estádios) e de Braga/Guimarães (2 estádios) pelo que, muito naturalmente, Bragança - capa da revista Time - só teria a beneficiar com a publicidade. Imagino que, mercê da natural e acolhedora recepção das mães de Bragança, os homens dessa Europa fora acabassem por querer voltar mesmo muito depois do Europeu, porventura para iniciarem os seus filhos em mui nobres artes. Francamente, não entendo o que há de incompatível entre futebol e meninas, que justifique esta medida, sobretudo se pensarmos que, por sinal, o palco da final do último europeu de futebol até foi Amsterdão...

Tradução fiche'r

Passando Vale da Telha (uff!) e seguindo para poente, topa-se com uma placa informativa das escavações arqueológicas que têm lugar junto à arriba. As informações são escassas, como de costume nestas coisas: há pouco mais que um título («Rîbat da Arrifana, sítio mítico do Garb-Al-Andaluz») e um pequeno texto em duas línguas. Em português («Fortificação islâmica do século XII») e em inglês («Seasonal ficher settlement»)... Quem precisar de informações talvez não seja mau ir esclarecido...

terça-feira, outubro 14, 2003

O PS e Ana Gomes

O PS costumava ser um partido de oposiçao a quem de um momento para o outro sucedeu a contingência de ter de governar o país sem que tivesse especial aptidão para isso. Quando perdeu o poder, o PS reagiu mal e, esquecendo-se que não é preciso defender teorias cabalísticas para desacreditar quem está na oposição, mas antes quem está no poder, anda entretido, em auto-combustão, a defender-se de ataques quixotescos provenientes de fértil e duvidosa imaginação.
Ana Gomes tornou-se assim, paulatinamente, na principal figura do PS sem que tenha dito ou feito algo de especial para o merecer. Em termos políticos, bem entendido, limitou-se a não comentar, até esta manhã, o caso Casa Pia. Todavia, tomada de um infeliz achaque partidário, nivelou o seu discurso pela normalidade dos seus pares e expôs de forma lamentável o que pensa sobre a conspiração contra a justiça.
Em bom rigor, torna-se urgente encontrar uma solução para o PS, a bem da democracia.

Time 2 Time

Bragança acordou na capa da Time.O movimento das mães deve estar orgulhoso desta conquista. Os donos das casas de Alterne devem lamentar o excesso de clientela e os lucros que a notícia inevitavelmente lhes trará. Tudo está bem, quando acaba bem.

Talvez faças, já não sei sequer

Uma imagem
difusa
num verso
subliminar revela

A minha completa
perda, no labirinto,
de um passado
que não existiu e

do qual tu
talvez apenas faças,
já não sei sequer,
parte.

Mesmo nos versos

Há partidas
mas não há regressos

Os caminhos que nos levam
e os caminhos que nos trazem
são diferentes

Despertares

Hoje, deitaste-te cedo. Faltou um beijo teu. Nunca tinha notado que a falta dos teus lábios queimasse mais que o seu toque. Esta noite, se não te importas, fico ao teu lado, vigilante, não suportaria perder o teu despertar.

Um tiro no porta-aviões

Desculpar-me-á o leitor a questão, e bem assim a insistência no tema, mas será que alguém se importa de me explicar porque razão o PS insiste em colar-se ao desfecho do caso Casa Pia e, em particular, ao que daí advenha para Paulo Pedroso? Sinceramente, até percebo a solidariedade e as declarações inflamadas dos membros do partido, mas tornar o maior partido da oposição - como vejo o líder do PS fazer - refém de uma sentença, parece-me um erro indesculpável. Para já, parece-me que o PS não precisava disso na medida em que a tese da cabala não cola, nem pode colar em democracia e muito menos num Estado de Direito. A ser aceitável defendê-la, é essencial arguir um simples facto que nos aponte nessa direcção, coisa que o PS não fez, nem provavelmente fará. Por outro lado, a manter-se o actual estado de coisas, e perante o cenário de uma eventual condenação de Paulo Pedroso, todos, sem excepção, os órgãos do partido terão forçosamente de se demitir, sem redenção possível. Já perante o cenário contrário, no caso da eventual absolvição de Paulo Pedroso, não vejo o que tem o PS a ganhar com a sua atitude actual e, nessa justa medida, parece-me disparatada a insistência nesta postura - porque nem de estratégia se pode, em bom rigor, falar.
Para já, e por outro lado, sendo Paulo Pedroso arguido num processo do foro criminal, parece-me assaz criticável que tenha tomado o seu lugar de deputado na Assembleia da República. É que, se antes de qualquer investigação, o PS exigiu a queda de dois ministros com base em argumentos do campo moral, não consigo perceber como consegue conceber a manutenção de um deputado seu em exercício de funções, com o particular relevo que sobre este impende uma investigação pela eventual prática de uma conduta que se situa, mais do para além do campo da imoralidade, no próprio campo da criminalidade. Bem sei que Paulo Pedroso não está condenado, mas o certo é que no desempenho da função que lhe foi confiada, a suspeita, o indício e a conduta imoral ou amoral, não são aceitáveis. Receio, pois, que ao PS e a Paulo Pedroso, apesar da apoteose com que este foi recebido na AR pelos seus, mais não reste que a continuação da suspensão do seu mandato, até trânsito em julgado da decisão do caso, altura em que, consoante o resultado, terá de optar por renunciar ao mandato, ou retomá-lo. A não ser assim, sinceramente, não vejo como o PS possa sobreviver a uma batalha que não era a sua e que, pela quantidade de água que mete, é verdadeira batalha naval na qual muito facilmente irá ao fundo, salvo se, como é hábito, a opinião pública se preocupar mais com o teor das declarações de Marco Paulo no programa do Herman (por sinal, arguido no mesmo processo e sujeito à mesma medida de coacção de Paulo Pedroso) que com o (des)governo da nação.

segunda-feira, outubro 13, 2003

Dez minutos ao acaso

Um senhor Vítor qualquer coisa, durante o jogo de futebol que o Olhanense foi vencer a Faro, resolveu despir-se, saltar a rede e entrar assim no relvado, de pirilau oscilando, a animar uma partida que não teve outros particulares motivos de interesse. Não foi detido para averiguações nem viu restringida a sua liberdade de movimentos. Pelo contrário, acaba de ver-se reconhecido com o estatuto de vedeta nacional. Há uns minutos atrás, no Herman Sic, teve direito à sua primeira actuação televisiva enquanto profissional do espectáculo. O ex-humorista, apresentando-o ao público que não tinha ido a Faro no domingo passado, garantiu, com um brilhozinho nos olhos, que «mais uma vez ia acontecer televisão». E aconteceu, embora em boa verdade não tenha acontecido grande coisa. A novel vedeta despiu-se, fez um manguito e foi aplaudido em apoteose. Depois foi anunciada a presença de Marco Paulo, e Marco Paulo entrou de microfone em riste, confirmando a ameaça, e agradeceu a Herman José o seu contributo para o sucesso do álbum que acaba de ser «disco de ouro». Abraçaram-se pela segunda vez. Acto contínuo, uma senhora de Famalicão subiu ao palco a oferecer a ambos uns ramos de flores em nome de uma senhora de que esta senhora não recordava o nome mas que era «a mãe de Vítor Paneira» e que estavam todas «muito felizes». Marco Paulo, comovido, cantou e encantou, e agradeceu a presença na plateia de «cinquenta amigos» que tinham vindo de diferentes partes do país «propositadamente» para o aplaudir e acarinhar. E que também ele estava muito feliz. E pronto. Nós também...

domingo, outubro 12, 2003

A ideia de ordem

Num bar andaluz, às quatro da manhã, dois jovens esfregam-se, desesperados, com «comovedora ilicitude». Ninguém parece muito preocupado com isso. Mas é impossível, não obstante o adiantado da hora e os pamperos, deixarmos de recordar os posts do Pedro e as suas ideias sobre o estado a que chegou a civilização ocidental...

sábado, outubro 11, 2003

É obra

Ainda não li Coetzee. Vou ler. A maior parte dos críticos não apenas tem vindo a realçar que se trata de um excelente escritor: sobretudo, enfatiza esse facto aparentemente fabuloso de, este ano, o Prémio Nobel da Literatura ter sido atribuído a um excelente escritor... Bolas, isto comove...

Com amigos destes...

De entre tantos mistérios que gostaríamos de ver esclarecidos, não deixaria de ser gratificante começar por este: quem, no PS, tem actualmente responsabilidades de coordenação estratégica da agenda política?

A humidade do ar

A lua cheia, a humidade do ar, a linha ondulante da duna, o estorno, os cordeirinhos da praia, e só depois a praia, um silêncio nem quebrado pelo quase imperceptível movimento das marés. Por instantes é possível acreditar que as moradias geminadas e as palmeiras de papel de cenário não fazem parte deste filme.

sexta-feira, outubro 10, 2003

Ainda o Outono

folha tão leve
que só no inverno tivesse
onde poisar

Tudo nos pertence

[para A.B.O.]

O mar da península
com suas imagens
quebrado nas dunas
antes dos naufrágios
o vento do árctico
nos dedos mais ágeis
os jardins suspensos
imensos e frágeis

tudo nos pertence
quando somos jovens

Um dia o deserto
levanta as amarras
das águas de junho
de todas as margens
o rumor do inverno
o calor dos trópicos
o lume imprevisto
por entre a folhagem

Perdida a memória
de medos e perigos
tudo nos pertence
quando somos jovens
e por um instante
nos sabemos vivos

quinta-feira, outubro 09, 2003

Sequestro em era má

Miguel Graça Moura foi hoje sequestrado pelos funcionários e alunos da Orquestra Metropolitana de Lisboa. Com a matéria noticiosa que os telejornais mantêm em lista de espera (a decisão do Tribunal da Relação, os ecos dessa decisão, os ecos desses ecos, a fogueira e o fogo de artifício, os dois milhões de portugueses cuja opinião jurídica sobre o assunto não foi ainda transmitida em horário nobre, a enunciação dos princípios de actuação política da senhora Ministra dos Negócios Estrangeiros, a nomeação do senhor Secretário de Estado das Florestas, a Portucel, os comentários do presidente da Associação Académica de Coimbra sobre a lista de convocados de Scolari, os comentários do presidente da Associação Académica de Coimbra sobre as especificidades da investigação na área das fibras ópticas, a inauguração do Estádio do Dragão e os novos episódios da novela «Pinto Atira-te ao Rio», etc...), deseja-se muito sinceramente que a libertação do maestro não esteja dependente da visibilidade do caso junto da opinião pública...

O Estado de Direito

Paulo Pedroso foi libertado, afinal o Estado de Direito prevaleceu. Não nutro particular simpatia por Paulo Pedroso, nem antipatia, não o conheço, nunca lhe vi obra. Paulo Pedroso é um cidadão como outro qualquer, contra o qual pende investigação pela potencial prática de um dos piores crimes. A libertação de Paulo Pedroso tem apenas o significado de demonstrar que as instituições funcionam, mesmo que demorem a decidir. Paulo Pedroso está, até prova em contrário, inocente, mas seguramente tem todo o direito de se defender. No uso desse direito, recorreu. Um Tribunal (constitucional) reconheceu que tinha sido coarctado no exercício do seu direito ao recurso. Outro Tribunal (Relação de Lisboa) reconheceu que a prisão preventiva era uma medida excessiva para os indícios da prática do crime pelo qual está indiciado e substituiu a aplicação da medida de coacção mais gravosa que existe no nosso sistema (prisão preventiva) pela menos gravosa (termo de identidade e residência). É desnecessário o comentário do Procurador-Geral da República quando chama a atenção para o facto do acórdão do Tribunal da Relação ter sido decidido por maioria porque um dos juízes desembargadores votou vencido, propondo a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliária. Em justiça a decisão é una, independentemente desse factor. Um inocente cujo acórdão tenha um voto de vencido não é menos inocente que outro cujo acórdão seja votado por unanimidade, nem um condenado, nas mesmas circunstâncias, é mais culpado. Paulo Pedroso até pode vir a ser condenado, mas para já, prova-se que se deve ter confiança nas decisões dos tribunais portugueses.
Uma palavra ainda para o papel dos advogados. Neste caso, como no da Universidade Moderna, ou em outro qualquer, goste-se ou não da figura do advogado, não há outra figura que se interponha entre o poder judicial e o cidadão, entre o poder de acusar e cada homem. Na separação de poderes necessária no Estado de Direito, o poder judicial é fundamental. Mas como qualquer poder, tem de ser fiscalizado e o seu exercício deve ser rigorosamente acompanhado. Os advogados, mesmo quando envoltos em polémicas, são o bastião do controle desse poder e o garante último dos direitos de cada um. Obviamente, não se pense que são a peça-chave, o sistema perfeito e equilibrado não a tem, evidentemente, a bem desse próprio sistema.