terça-feira, novembro 30, 2004

Cruzamentos

Por vezes, quando menos esperamos, recordações de um passado distante acometem-nos pelo espaço de horas, ou de dias. Pessoas, lugares, acontecimentos... coisas que fazem parte de nós, de um passado que teimamos em preservar, como às ruínas de um templo. Por onde andará Carlitos, o colega de carteira que tive nos primeiros anos e que um dia soube, tinha levado um tiro de um vizinho? Que é feito de Jack, o velejador solitário que, acabado de atravessar o Atlântico no seu veleiro de 7,80 m, partilhou comigo a sua última cerveja de bordo à chegada a Faro e um dia, cansado das avarias do seu sistema de quilha retráctil, fixou-a definitivamente ao casco da sua embarcação. Quando lhe observei que dificilmente conseguiria bolinar assim, disse que isso não era problema, porque tinha decidido transformar-se num gentleman e os gentlemen não navegam contra o vento. Ignoro se regressou à sua Escócia natal, ou se errará pelo mundo. São cruzamentos, não etapas, nem marcos, mas que rasgam e marcam. Saúde Carlitos. Saúde Jack.

Fronteira

Sim: não desconhecia que às vezes é muito estreita a fronteira que separa as muralhas e as ruínas.

segunda-feira, novembro 29, 2004

Laura

Era quase uma doença: chegava a casa e corria para o computador à espera de encontrar um novo post. Começava a acreditar que aqueles textos eram escritos para mim. Como se nos conhecêssemos. Como se nos conhecêssemos desde sempre.Como se não houvesse segredos entre nós. Como se os meus próprios pensamentos fossem nascendo das frases que ela escrevia em http://lauravaz.blogspot.com - ou seja, como se o futuro só existisse porque alguém acreditava num futuro onde haveriam de caber os nossos sonhos e as nossas vidas.

Começámos a comunicar por mail. Compreendemos que o mundo estava à nossa espera. Não tardou que marcássemos um encontro. Em Évora. No dia 27 de Novembro. Às 16.00 horas. Na Residencial Riviera. («O primeiro a chegar fica sentado no maple castanho do átrio.»)

Cheguei cedo: eram 15.42. Ela tinha chegado ainda mais cedo. Levantou-se (só pode ser ela, pensei; só pode ser ele, terá ela pensado...), ficámos interditos por um instante, dissemos apenas: «olá». Subimos ao quarto 209. Quase não falámos: não saímos do quarto: o amor protegia-nos do mundo.

No dia seguinte, ao fim da manhã, depois de termos marcado um novo encontro, despedimo-nos com lágrimas nos olhos. Pediu-me que não descêssemos juntos: «não suportaria olhar contigo a luz intensa das ruas da cidade».

Desci, portanto, alguns minutos depois e vi uma mulher sentada no maple castanho do átrio: vestida de azul; lindíssima; triste; uns olhos ausentes.

O empregado da recepção estendeu-me o recibo e disse-me (piscando o olho esquerdo, baixando a voz até ao cicio) que «a marmanja» estava ali desde o dia anterior; que, curiosamente, tinha chegado alguns minutos depois de mim; que, desde então, não dissera uma palavra; que passara ali a noite; que era como se estivesse à espera de alguém a quem quisesse muito; alguém a quem quisesse tudo.

Fiquei sem um pingo de sangue. Senti-me o mais desgraçado dos seres à face da terra (só então me ocorreu que nem sequer perguntara o nome da mulher de quem acabara de despedir-me; que o seu nome, provavelmente, não era o nome que me levara ao encontro do amor).

Aproximei-me da jovem vestida de azul. Ela ergueu os olhos (húmidos, vermelhos de sangue) à altura dos meus olhos. Disse-lhe (em desespero, muito a medo): «Laura?...» E ela (a voz cansada, trémula, já quase indiferente, arrastando-se; a voz de quem desistiu): «Zé Carlos Barros?...»

domingo, novembro 28, 2004

Os nossos nomes

Encontrámo-nos muitos anos depois. Eu continuava a amá-la como nesse tempo. E ela (pressentia-o) continuava a amar-me como nesse tempo. Quase não trocámos uma palavra. Sabíamos que tudo o que disséssemos haveria de virar-se contra nós - quando a água da chuva escorresse nas ruas, quando a luz do trovão iluminasse o pátio, quando o calor de Julho arrastasse pelas veredas a memória dos troncos dos vidoeiros onde gravámos, a ponta de navalha, os nossos nomes.

sexta-feira, novembro 26, 2004

A confiança

Deposito nas tuas mãos
o que nem às sombras
e aos vultos furtivos
da minha imaginação
ouso confiar,
.
para que saibas,
se a loucura me atingir
e a demência me diminuir,
que houve dentro de mim
um amor
.
como nunca houve,
que nunca morrerá
e assim permanece
como o fim último
do meu viver.
.
Guarda, meu amigo
este segredo,
como se fosse o teu bem
o teu bem mais precioso
como foi meu
.
É o que te peço,
Meu amigo
de todas as horas.

Os anúncios de convívio

Os espelhos, não raro, devolvem-nos imagens de uma realidade que supúnhamos distante. É o caso das imagens que nos são devolvidas pelos textos dos anúncios «de convívio» que os jornais inserem abundantemente. E aqui não se diga que as leis de mercado são distorcidas por factores exteriores ao fenómeno - subsídios, intervenção estatal desajustada, interferências editoriais: ou seja, em poucas situações haverá uma tão estreita ligação entre o que o mercado oferece e o que o mercado procura. E é esse o abalo... Vejamos, então:

Quanto à idade, as propostas polarizam-se claramente em dois grupos: o das meninas (dos 18 aos 23 anos) e o das senhoras maduras («quarentona»; «cinquentona»), sendo evidente o vazio no escalão que vai dos 23 aos quarenta e tais.

O critério profissão/habilitações literárias não parece ser relevante. Ainda assim, há referências várias a professoras, universitárias e licenciadas. Num anúncio, a proponente garante que é «univercitária» (e se calhar é).

Abundam as viúvas, as divorciadas e as casadas infiéis, não se encontrando referências a meninas (ou senhoras) celibatárias. A virgindade também não parece ser propriamente um valor, embora haja o caso surpreendente de uma jovem que garante ser a «1ª vez» (presume-se que este anúncio, por óbvia impossibilidade material, não apareça em futuras edições do periódico).

Em alguns casos (raros) faz-se referência a um «corpo bem torneado». Mas as preocupações parecem caminhar num outro sentido: «gordinha», «muito gordinha», «rechonchuda», «perna grossa», «tornozelos fortes», «anca larga»... Nada de magreza, nada de regime alimentar light (enfim, isto também não é propriamente publicidade televisiva aos iogurtes)...

Desiluda-se quem pensar que abundam seiozinhos que não encham mais que a mão. Aqui é só de 40 para cima: «busto XXL», «busto grande», «seios 50», «peitão», «seios fartos». Curiosamente, o tamanho não é o critério mais relevante no que respeita ao bumbum (sem prejuízo de algumas «bumbumzudas»). Veja-se: «bumbumzinho ladrão», «bumbum comilão», «bumbum apertadinho», «bumbum maroto». Mas quanto a isto (e quanto à «chupadora», ao «chupa-chupa», à «boquinha gulosa», à «chupadora gulosa») - sei lá... Não estaríamos era à espera de assistir a tanto orgulho na exposição de alguns outros atributos: «peludinha», «peluda» e «peludíssima» parecem ser relevantes exemplos...

Há jornais que enchem diariamente quatro páginas de anúncios de convívio.

Celebridades

«Betty Grafstein não vai estar hoje com Guilherme, o filho de José Castelo Branco, que faz dezasseis anos. Mas não se esqueceu do aniversário do rapaz. "Já mandei o motorista deixar-lhe um cheque", conta a joalheira».

[Jornal 24 Horas]

Im-prensa

Arguido, à saída do tribunal: "Não presto mais declarações."
Jornalista: "Por que razão não presta mais declarações?"

quarta-feira, novembro 24, 2004

A força do destino

um barco, o "forza del destino" rasga a vaga rebelde que açoita a costa à força do braço dos seus tripulantes, uma e outra vez, desliza na orla e na cava. vem carregado de peixe nas entranhas, a faina da noite foi proveitosa, os homens rejubilam, a semana está ganha à chegada. O mar dá, o mar tira, a vaga que desce também sobe. há homens na água agarrados a nada, roupas ensopadas de água gelada, o barco desapareceu, engolido pela força do seu destino. pela manhã haverá viúvas e órfãos na praia, funerais sem corpos, missas prolongadas em memória das almas que nunca temeram a deus, mas souberam comer o pão que o diabo amassou.

terça-feira, novembro 23, 2004

Fio

Algumas pessoas, por um acaso que não é costume repetir-se em muitos lugares e em muitas épocas, são um dia tocadas por um Fogo que apaga, à excepção de uma única, todas as imagens do mundo. Então é provável que se percam num labirinto onde só uma coisa, obsessivamente, os interessa. Há quem tenha sido tocado pela ideia do Império, do País, da Árvore, do Jardim, da Cidade, do Jogo, do Ódio, da Pátria... Todos, menos os que foram tocados pelo fogo incombustível do Amor, dispõem de uma espécie de fio de Ariadne que lhes permite guiarem-se pelos infinitos corredores do labirinto. Ajudados por esse fio, é possível que alguns acabem por encontrar o caminho de regresso (conhecem-se relatos a confirmar essa rara possibilidade) e lhes seja concedido o dom da restituição integral das imagens do mundo.

segunda-feira, novembro 22, 2004

Quase tudo

Meu Deus: eu, quanto ao ténis, é como diz o outro: mas que saudades do resto (que é quase tudo)...

domingo, novembro 21, 2004

[Quase o universo]

Quase o universo
nestas cinco sílabas.
Um fechar de pálpebras.
O primeiro verso.

As frases mais íntimas
de todas as páginas.
O rumor das aves
descendo a península.

Os ramos das bétulas.
Os caules do trigo.
As cartas inéditas.
Um amor antigo.

Mas falta o retrato
na sombra das tílias:
o mundo separa-nos
só por cinco sílabas.

sábado, novembro 20, 2004

Neve

Os troncos erguidos das bétulas.

Antes da água

As raízes dos amieiros nos taludes da margem.

Tarde

As folhas dos olmos quase incendiadas.

Do amor

Os ramos azuis, inúmeros, leves, das amendoeiras jovens.

O medo

A tristeza, a tristeza adolescente, a tristeza sem outro nome, procura refúgio na sombra iridiscente das oliveiras do inverno.

[as palavras]

O que me preocupação
as palavras. Não o que signi
ficam
ou partem.

sexta-feira, novembro 19, 2004

nicotina sob os lençóis

alta noite. horas sem fim mergulho no pesadelo da falta de cigarros, sufoco por falta de nicotina. e tu, submersa no lençol de seda negro que a tua mãe nos deu, prenda de casamento, nem te moves, um gesto que seja, por compaixão. como te odeio e à tua insensibilidade imaterial. talvez um dia fumes e eu não. mas amo-te, já nem me lembro, que imbecil sou, porquê. tu e os teus, os da foto que insistes em abandonar todos os dias na tua mesa-de-cabeceira. como odeio tudo isto, mas não saberia viver sem ti. deve ser isto o amor, porque sei que amanhã sorrirei quando abrir o primeiro olho da manhã e te vir ao meu lado ou sentirei tristeza se já estiveres na tua rotina de casa-de-banho. merda de vício, que me consome. como te odeio por não me conseguires fazer abandonar o SG.

Agonia

A agonia de ler as tuas palavras, o desespero que está latente em cada uma delas, a forma como encarnas isto... não saberia escolher nunca as palavras certas para to dizer, nem que pensasse um milhão de anos e não tinhamos tanto tempo. Percebes?

Algarve...

Eu vivia no Paraíso e um dia descobri que mo roubaram.


quinta-feira, novembro 18, 2004

Medo

Tínhamos medo de tantas coisas. Tínhamos medo de tudo. Medo de termos medo, medo de sermos demasiado corajosos, medo da humildade, da obscuridade, dos agentes da autoridade, da petulância, dos políticos, da literatura, da sobranceria, do desdém. Por isso passávamos dias inteiros na cama, longe de tudo, longe do mundo. Não era isso o amor?

Filmes

Passámos uma tarde a escolher os vídeos, combinámos o dinheiro que nos era possível gastar (nesse tempo precisávamos de tão pouco para sobreviver ao mundo...) e depois ficámos dias inteiros sem sair de casa, fechados em casa, deitados, a ver os filmes e a rever as cenas em que, por um instante, depois das ravinas, o mundo regressava a um intenso (quase inverosímil) apaziguamento. Só desejávamos isso: passar por todos os perigos, sobreviver a todos os perigos e continuarmos a acreditar no amor.

Cuidado

Hoje lanço um livro.
Desculpa se te magoar a cabeça, meu amor.

quarta-feira, novembro 17, 2004

Ar

Gosto do desejo
mas afogo-me
na vã esperança de te encontrar.




[A Arte]

Tenho um amigo que pintava, indiferente
mente, por encomenda: paredes
das fábricas, gradeamentos
metálicos, quadros a óleo.

Vou quase por caminho
igual: escrevo, com emoção
igual, minutas de ofício, textos
literários, versos a metro para antologias
poéticas de circunstância.
E já nem se me dava, por convite,
alinhavar um soneto com as
sílabas contadas pelos dedos dos pés.

Ah! Se eu pudesse suicidar-me por seis meses
e recomeçar depois,/ achando tudo
mais novo.
Olhar de novo, pela primeira
vez, a cal dos muros, a flor
inúmera da urze, a água
da penumbra nas encostas frias.
As manhãs de junho vagarosa
mente.

Um dia, por cansaço, descobrimos
que a arte é mentira.
Que/ o sol é sempre o mesmo e o céu azul.
Que tanto
faz como fez.
Que o sorriso da Gioconda ou um
romance de Conrad
podem não valer a porosidade de
um tecto pintado a tinta de areia
ou a sombra dos guindastes
no cimento das zonas portuárias.


publicado em Junho de 2000 no volume colectivo «Recomeço Límpido- No Centenário de José Gomes Ferreira»

terça-feira, novembro 16, 2004

Lembras-te?

Namoravamos por baixo das laranjeiras
enfeitando os cabelos com as flores
enquanto o perfume dos caules arrancados
e a seiva escassa
se nos impregnava na roupa
e na pele

À tardinha, a inocência tolhia-nos os movimentos
e levava-nos de regresso à infância
onde a ausência de pudor
e o simples desejo imberbe
nos salvava do irresistível pecado
da carne

Nesses dias, em que o Sol
se escondia por trás dos galhos
mais baixos e as nuvens não apareciam no céu,
ficavamos a ouvir a nossa respiração compassada
com os murmúrios do riacho
que por ali errava, serpenteando

Aí, distraidamente, enrolava
os teus cabelos nos meus dedos
e conspiravamos que o mundo acabaria
assim para que tudo fosse perfeito
e tu e eu ffizessemos sentido
Como se apenas isso fosse possível.

segunda-feira, novembro 15, 2004

Mãos

Queima-me teu rosto ao tocar-me nas mãos
e ofuscam-me teus olhos
tamanha luz não é, contudo, suficiente
para alumiar as minhas trevas
nem secar as coroas de flores.

Ostra

Cresceu-me uma pérola no coração
consequência
da concha em que o encerrei.

Hesito,

entre deitá-la ao mar
ou conservá-la dentro de mim enquanto
aprendo a viver

novamente.

A aventura

São um punhado de homens e mulheres e encenam uma das maiores aventuras da Era Moderna, comparável à subida do Evereste em solitário e sem oxigénio, à ida a um dos pólos da Terra ou a uma descida em apneia no mar abaixo dos cem metros de profundidade. Alguns não voltaram da viagem, mas mesmo assim há quem esteja disposto a arriscá-la. Por prazer, ou apenas para se superar a si próprio. Poucos dos que a disputaram voltaram an disputá-la e sobretudo nenhum dos precedentes vencedores regressou, a não ser para alcançar a vitória que por qualquer razão escapou numa tentativa anterior. A Vendée Globe é uma regata disputada à volta do mundo em veleiros de 60 pés (18,58 metros) tripulados apenas por uma pessoa, sem assistência e sem escalas sob pena de desqualificação . A largada foi no passado dia 7 de Novembro, de Les Sables d'Olonne (França) e aí deverão regressar os concorrentes dentro de aproximadamente 90 dias, depois de terem circum-navegado o mundo passando pelos mais inóspitos mares. Os concurrentes estão actualmente a descer a costa atlântica de África, em seguida dobrarão o Cabo da Boa Esperança, percorrerão todo o Índico Sul, dobrarão o Cabo Leewin no extremo Sul da Tasmânia, entrarão no Pacífico para saírem deste inferno no Sul pela porta do Cabo Horn, à máxima latitude da América Latina, de onde subirão novamente pelo Atlântico, passando ao largo dos Açores e retornando ao ponto de partida.
Nesse percurso, estes aventureiros terão percorrido perto de 23.000 milhas (43.000 kms)dobrado os três mais perigosos cabos do mundo, enfrentando vagas de cerca de 20 metros no Pacífico Sul à aproximação do Cabo Horn e ventos com cerca de 60 nós (perto de 110 kms/h) de força.
O comum dos mortais pode acompanhar hora a hora a posição dos concorrentes, as condições meteorológicas e do mar encontradas, bem como algo mais no que toca a relatos, experiências, imagens em directo e em diferido no site da organização cujo link é fornecido acima. Recomenda-se, até porque só se disputa de quatro em quatro anos.

Limites

Podes molhar a terra com a água das nascentes, com as águas superficiais das albufeiras, com a água dos canais dos perímetros de rega: em vão. A terra só cheira a terra molhada quando chove.

domingo, novembro 14, 2004

O amor é

não gostares de futebol e ires comigo ver o Olhanense.

Quase o Inverno

As folhas das árvores mudam de cor enquanto os nossos olhos se movem.

Pleonasmo

O nosso amor é antigo. Começou nessa terça-feira de Carnaval em que, mascarados, longe do mundo, cúmplices, as nossas mãos, por um instante breve, se tocaram; e, quando a tarde começou a cair, nos olhámos, olhos nos olhos, por um instante breve. A vida separou-nos. Separou-nos sempre. Continua a separar-nos. Nunca falámos disso. E isso é o menos. Amo-te como no dia em que as nossas mãos, em segredo, longe do mundo, por um instante breve, se tocaram.

sexta-feira, novembro 12, 2004

Inverno

Vivíamos na ilusão de que o amor permanece contra as filas de trânsito e os horários de trabalho, contra o preço dos iogurtes e as revisões do carro, contra os prazos dos empréstimos, as avarias do vídeo, as portagens criminosas na Via do Infante. Vivíamos na ilusão de que o amor era um território imune à erosão do quotidiano. Hoje sabemos que não é assim. Mas sabemos também que sem o amor até o rumor da tempestade (meu amor) nos deixa frágeis, alarmados, sobressaltados, desprotegidos.

quinta-feira, novembro 11, 2004

Pintura

Nessa altura julgávamos que o amor era um dado adquirido. Por isso deixávamos só o tempo passar. Por isso não reparámos logo que aos poucos íamos ficando menos próximos, menos cúmplices, mais desatentos das coisas do amor. Um dia encontrámo-nos no museu por acaso e estranhámos - nós que andávamos sempre juntos - não ter combinado a visita à exposição do Palolo. Olhávamos os quadros e surpreendeu-nos não coincidirmos nas escolhas. De súbito, pela primeira vez, era como se cada um de nós tivesse que percorrer o seu próprio caminho. De súbito, pela primeira vez, era como se o amor não nos pudesse socorrer. E saímos da exposição com a nítida sensação de que já não havia mais nada que valesse a pena dizer um ao outro.

quarta-feira, novembro 10, 2004

[O lume]

Pequenos triângulos te cercam dum e outro
lado, para além das janelas e dos quartos
fechados por dentro, para além dos vastos
campos onde a madrugada poisa

junto ao rio. Para além de ti e do passado, é
um triângulo ainda o que te leva longe
e perto, ao brilho das nogueiras contra
os panos das saias e a roupa

escondida, ao encontro que demora o
tempo que demora o riso nas pálpebras, que
devora o tempo entre dois nomes fáceis.

É um jogo antigo a que não sabes fugir,
tão próximo do fogo, do lume e
das mais fundas e secretas confidências.

[O Futuro, ou A Cidade dos Prodígios]

Era assim o futuro nas nove cartas em círculo:
três mulheres e um fim trágico.
Mas antes a fortuna, a glória, a morte e
um lugar (Sant Climent) onde regressaria

tantas vezes quantas as moradas do sangue,
os seus caminhos na neve. De pouco servem
as palavras, as decisões difíceis, uma pistola
escondida no bolso das calças, de pouco

serve a paixão contra o destino: todos os
nossos sonhos, diria mais tarde, foram escritos
antes. Escrito estava ainda que voasse
sobre as ruas e as casas de Barcelona com María

Belltall, que perdesse a rota de Montjuich
e finalmente se despenhasse num mar parado
e luminoso, longe da costa, como se a paz
e o amor só assim pudessem coincidir

terça-feira, novembro 09, 2004

Berlim

No instante preciso em que comemoramos a queda do muro de Berlim, num outro lugar do mundo alguém continua, pedra sobre pedra, diligentemente, a erguer um novo muro. Daqui a alguns anos também esse muro será derrubado, enquanto, simultaneamente, num outro lugar do mundo, alguém, pedra sobre pedra, continua, ou começa, a erguer um novo muro. Etc.

segunda-feira, novembro 08, 2004

Perda

Porque o tempo que passou não volta
Nem voltará no futuro
E já não será possível voltarmos
A caminhar pelas mesmas pegadas
Que até aqui nos trouxeram
E que o mar apagou na preia-mar
.
Temos de nos conformar com a ideia
Que te perdi e tu me perdeste
Algures na linha onde a areia
Se separa das vagas que morrem
Na praia, todos os dias,
Também como nós

.
A pouco e pouco...
.
E no entanto só me restam
na memória
os bons momentos porque
todo o negrume se apagou.


[A ordem do mundo]

A luz começava nas manhãs de junho
a meio da encosta
para que a ordem do mundo pudesse pressentir-se
no pátio
vagarosamente
subindo os degraus.

É a vida

Os sonhadores temem, como ninguém, as insónias.

sexta-feira, novembro 05, 2004

As provas

Uma vez, há muitos anos, mergulhámos as mãos num tanque de pedra. Já esquecemos quase tudo. Foi há muito tempo. Às vezes suspeitamos que esse tempo não existiu, que o tanque não existiu. E no entanto as nossas mãos não chegaram nunca a secar. Essa água escorre-nos ainda dos dedos.

quinta-feira, novembro 04, 2004

Finados

Lembro-me da cor baça dos teus olhos, da névoa que os cobriu, da distância do teu olhar, da indiferença dos teus últimos dias face à doença que te levou. Lembro-me das brincadeiras que tivemos na minha infância, da tua infinita paciência, das aulas de vida que me deste, tu, que nem sabias ler e muito menos escrever. Lembro-me das histórias de mar, das tragédias humanas que contavas sem agrura, das semente da minha paixão, do incitamente à aventura num elementos que me ensinaste a amar e a respeitar. Lembro-me quando lançaram o teu ataúde à terra e as primeiras pazadas de areia que o cobriram. O menino que fui e preservo apenas dentro de mim jamais esquecerá isso, nem o lais de guia, o nó direito ou a volta de fiel. E as histórias que quero trazer sempre comigo a modos de te fazer perdurar pelo menos no tempo que o destino me permitir cumprir. E já passaram vinte e um anos, avô...

quarta-feira, novembro 03, 2004

Georges de la Tour

Tarde cinzenta. Chove. E no entanto as folhas dos jacarandás do jardim da Alameda brilham ainda. Como se houvesse uma luz específica, uma luz própria, no interior de todas as coisas que recusam a sombra do inverno.

[os valores]

A crueldade tem a sua pátria.
A rapariga olha da janela o dia a crescer
e é como se o medo sobreviesse
à idade: a memória acende no quarto
as suas lâmpadas de água.

Não tarda o inverno.
Não tarda a sementeira do trigo.
As crianças regressam a casa
e abandonam os muros do largo, a pedra do tanque.

É como se tudo estivesse certo.