domingo, novembro 30, 2003

Ainda bem que assim é

Durão Barroso justificou o voto favorável de Portugal à suspensão do procedimento de infracções contra a Alemanha e a França com o facto de o nosso país não poder deixar de ser solidário com quem em 2001 nos apoiou numa altura de défice excessivo. Manuela Ferreira Leite, no entanto, justificou tal medida com a indispensabilidade de salvar o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) e evitar uma situação de vacuidade jurídica. Marques Mendes, por sua vez, considera que, subtilezas à parte (subtilezas, presume-se, de Durão e Ferreira Leite), o que aconteceu foi um forte pontapé no PEC. Alberto João Jardim, finalmente, é de opinião que Manuela Ferreira Leite votou com a França e a Alemanha a acautelar a putativa impossibilidade de Portugal vir a conter o défice nos 3%.

Imagine-se se isto fosse para a gente perceber...

sexta-feira, novembro 28, 2003

D. Sebastião

De acordo com o barómetro da Marktest, António Vitorino é, de longe, o político de esquerda mais popular. É certo que 95% dos inquiridos não saberá muito bem por onde tem andado nos últimos anos, ou quais as propostas e as ideias de António Vitorino sobre o défice, o Pacto de Estabilidade e o Estatuto da Aposentação dos funcionários públicos, ou mesmo se desempenha funções na Comissão Europeia, numa Vice-Presidência da Internacional Socialista ou no Conselho de Administração do Central-Banco de Investimentos. Mas isso é irrelevante: o que conta é que D. Sebastião vai em primeiro. E é também por isso que nós apreciamos tanto os barómetros e as sondagens...

Mudança de planos

Pronto, está bem... É verdade que ontem estava previsto um post sobre a humilhação de uma equipa turca de nome impronunciável... Mas acabámos por nos distrair e mudar de planos, rendidos à ambição de um treinador que, em casa, contra o Gençlerbirligi, arriscou jogar de início com um avançado...

A força da vazante

Desceu a escada a caminho da ria e estranhou a força da vazante. Uma leve cerração erguia-se no enraizamento da península e começava a ocultar em névoa a linha do horizonte, e depois os chapéus de sol mais distantes, e depois os cordeirinhos-da- praia e o eriçado irregular do estorno, e depois as estacas dos viveiros da fábrica, e depois o próprio azul ondulado das águas. Virou-se e olhou o pano da muralha a procurar um rosto ou uns braços apoiados no muro, uma criança que corresse no largo, um guarda-fiscal na atalaia da fortaleza a assestar os binóculos ao assoreamento da barra. Mas não havia ninguém, nenhum movimento, nenhuma sombra. Olhou o areal da península e deixou de ver o mar. Não havia ninguém à face da terra e o mar adivinhava-se apenas à distância no marulhar sobressaltado do levante.

quinta-feira, novembro 27, 2003

O debate político, de novo

Seguindo a coisa um bocadinho à distância, mal imaginava que a decisão da escolha de Valência para a realização da próxima edição da America’s Cup se viria a constituir como o mais recente pretexto da blogosfera para retomar o debate político e ideológico. Pela amostra da caixa de comentários do BdE II, a coisa promete... JMS começara por garantir que «os nossos marinheiros de água doce, pedantes e cheios de vento, assobiam agora para o ar, tristonhos», aconselhando-lhes a audição de A Baía de Cascais, dos Delfins, em «ritmo de marcha fúnebre»... Tomás (perdão: Thomaz) não se conteve, e lamentou a «enfermidade mental» de JMS, de diagnóstico fácil tendo presente o «seu fel para com os gajos que não têm a culpa de ter nascido numa piscina cheia de notas», e que tal despeito só se compreende por JMS «ser um teso que não tem onde cair morto»... Por seu lado, O Blogador considera que, mesmo tendo perdido a candidatura, «Lisboa-Cascais foi promovida e está na alta roda da aristocracia da vela», lamentando, de qualquer modo, a insinuação de que «a culpa é dos desgraçados dos pescadores que perderam um porto de abrigo e uma lota de pesca», acusando ainda o Ministro Arnaut de ninguém ter sabido negociar com os homens da pesca nem se ter feito um «pacto de regime» com o respectivo sindicato. Esta da aristocracia é muito cara ao Acanto, onde se explica que perdemos a organização da regata por sermos uma república, sendo que a Espanha, mais avançada, tem uma monarquia... Guutman, finalmente, lamenta termos perdido «mais um boom económico», e «mais emprego, mais iva, mais irc, mais tudo o que faz falta», acrescentando com ironia que «pelo menos os 30 pescadores já não precisam de andar mais um pouco e não têm de se incomodar».

«Mais tudo o que nos faz falta», digo eu, deve ser uma marina e acabar de vez com a frota nacional de pesca.

quarta-feira, novembro 26, 2003

Do mundo

A cidreira adormecida numa cesta, a única, de quatro varas. Desse tempo. Tudo quanto eu conhecia do mundo e de mim.

Manhã

Eis a perfeição aos nomes só entregue. O verde duma árvore, o rumor da boca, o só vibrante começar do amor. O brilho da manhã poisando no infindável movimento das palavras.

terça-feira, novembro 25, 2003

As boas vindas,

claro, ao BdE II.

Durante tantos anos

No primeiro dia de Junho, que é quando verdadeiramente começa o Verão, saiu de casa e a amendoeira grande tinha desaparecido. Aproximou-se e remexeu a terra à procura de um sinal dessa presença antiga. Mas não havia uma raiz, a casca porosa de um fruto, uma folha apodrecida, um pedaço de madeira que trouxesse ao fim da manhã a memória da árvore erguida no pátio durante tantos anos.

Era como se tudo estivesse certo

À hora em que a sombra começa a espalhar-se vagarosamente nos telhados das casas, imaginou que uma ave gigante varria o areal da praia e se levantava na espuma do levante, e que depois avançava sobre o parque de estacionamento e sobre as esplanadas da praça. Era uma ave de longas asas recortadas, e era como se o mundo por instantes ficasse suspenso de si próprio e nada mais houvesse à face da terra para além desse voo e de um silêncio tão espesso que podia tocar-se com as mãos. Apercebeu-se então de que ninguém falava, que ninguém se movia, que ninguém respirava. E no entanto ouvia-se um alarido de vozes estrangeiras misturado na sombra que recomeçava a descer. E a ave desapareceu e a sombra desceu e era como se tudo estivesse certo.

O avião da publicidade

Chegou à praia e deitou-se numa toalha de losangos e olhou as águas e adormeceu por instantes. E quando acordou viu que um barco se levantava na linha do horizonte e que o avião da publicidade mergulhava no mar.

O inverno

A água nos vidros dos últimos dias de Novembro. O mar a subir na vazante. As nuvens à altura dos telhados cinzentos das casas.

segunda-feira, novembro 24, 2003

Spamesia

Continuamos sem resolver o problema dos resíduos industriais perigosos. Continuamos encalhados nos resíduos de construção & demolição. Tardam os resultados da reciclagem, da redução, da reutilização. Não há melhoras nos resíduos sólidos urbanos. Enfim, não estamos cercados de spam apenas digital. Antes estivéssemos. Porque neste domínio há quem teime em fazer serviço público: aqui, imagine-se, o lixo é reciclado e devolvido sob a forma de poemas. Talvez pudesse servir de exemplo.

Antologia da SUL, 3

No Inverno de 1999/2000, a revista SUL publicou dois poemas inéditos de Gastão Cruz. Um deles trazia o título de

LEMBRANÇA DA RIA DE FARO

Dunas atrás da casa
gafanhotos cor de
madeira cardos cor de areia
ao fim da tarde,
barcos na água rósea
onde a cidade, em frente à casa, cai
De madeira caiada a
casa está
sobre a areia, que escurece quando
a maré devagar desce na praia

domingo, novembro 23, 2003

Os Planos

Os Planos das zonas de expansão urbanística, um dia, terão praças e jardins.

Foguetório

O estádio do Algarve onde se vão realizar dois jogos do Euro-2004 é inaugurado hoje. Com circunstância e sem pompa. Com fogo de artifício, mas sem futebol. E está certo. Num campo de bola onde não se espera que venham a ter lugar grandes jogos de futebol, não há nada como a gente se ir habituando desde o início.

E podia poupar-se na relva

Um alto responsável político regional minimizou a circunstância de o Parque das Cidades ser inaugurado sem um jogo da bola, preferindo realçar o facto de a infraestrutura poder vir a constituir-se como a mais importante sala de espectáculos do Sul da Península. Compreendemos a mensagem. Mas ficamos com pena que o dinheiro gasto em balneários não tenha sido investido em camarins.

sábado, novembro 22, 2003

45 R.P.M.

Nesse tempo era tudo tão escasso.
Até no arco-íris a banda do anil.
Mesmo em tempo de festa.
Até o vinil.

Daqui ninguém sai vivo

Júlio Carrapato («Crónicas de Escárnio e Boa Disposição», Edições Sotavento) relembra Tomás da Fonseca e a suspeita de que a aparição de Nossa Senhora de Fátima seria imputável, não à celestial e gasosa Virgem Maria, mas sim à terrena mulher do coronel Genipro dos Serviços Cartográficos do Exército Português. Duvida que, com a sua tarimba de 33 anos de Comité Central, Carlos Brito seja o paradigma da virgindade. Lamenta que Fernando Rosas exiba a magra especialidade académica a prefaciar obras sobre os deprimentes amores entre Madame Christine Garnier e Oliveira Salazar, em vez de optar pela divertida sexualidade do Carlinhos de A Marca dos Avelares. Acha que Lula da Silva é o maior prestidigitador do momento. Garante que capitalismo e fascismo são a mesma coisa, em momentos distintos da organização do Estado. Irrita-se com os cagões que ainda não perceberam que todo o sangue azul do mundo não daria para encher um tinteiro. Desanca nos Estados Unidos, mas sem saudades nenhumas da União Soviética (era uma excelente pessoa, paz à sua alma) nem do antigo equilíbrio do terror, considerando que tentar deter um Estado com outro Estado, ou um Império com outro Império, é como apagar um incêndio com gasolina. Recorda os campos petrolíficos de Vasco Rato e os grécios e os kosovários de Bush. Não foge aos adjectivos: o lépido e jovial VPV; o conspícuo EPC, campeão das meias-tintas; as graçolas onomásticas de VGM; a robusta inteligenciazinha de LD, capaz de ofuscar a de Pacheco. É refractário às comemorações oficiais e pouco dado às mundanidades cá da paróquia.

É de escacha-pessegueiro? É. Mas depois de lermos estas crónicas nada nos impede de regressarmos ao Canal Parlamento ou aos noticiários da TVI apresentados por Manuela Moura Guedes.

sexta-feira, novembro 21, 2003

Ainda não é desta

Confesso que esperei com alguma ansiedade o livro de memórias de Gabriel García Márquez. Depois do realismo mágico e do fantástico de livros como O Amor em Tempos de Cólera, Cem Anos de Solidão ou Crónica de uma Morte Anunciada, era com muita curiosidade que esperava o relato dos seus anos de infância e juventude. Descubro, afinal, que Viver para Contá-la não é um livro de memórias. E que Gárcia Márquez, de resto, não se propunha escrever um livro de memórias. Como diz em epígrafe, «la vida nos es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla». Pois muito certo: este é mais um livro de ficção. O mais verosímil que consegui topar nestas seiscentas páginas é o seguinte episódio da infância do autor:

«Mi madre me compró además el sobretodo de piel de camello de un senador muerto. Cuando me lo estaba mediendo en casa, mi hermana Ligia - que es vidente de natura - me previno en secreto de que el fantasma del senador se paseaba de noche por su casa con el sobretodo puesto. No le hice caso, pero más me hubiera valido, porque cuando me lo puse en Bogotá me vi en el espejo con la cara del senador muerto.»

Tudo o mais é realismo mágico, pura ficção.

quinta-feira, novembro 20, 2003

Mera sugestão...

Parece-me que de um momento para o outro se percebeu que no país grassa um problema terrível. Um monstro de sete cabeças que tudo espezinha e devora, daí­ vindo enorme prejuízo para a produção e para a prosperidade nacionais. Tal vil criatura dá pelo nome de Informalismo, eufemismo para Corrupção. É um facto, Portugal tem uma história fantástica de julgamentos onde são condenadas criaturas por corromperem titulares de cargos públicos, mas sem que estes o sejam por sua vez, ou venham alguma vez a ser. Todavia, em diversos relatórios europeus, a par deste problema surge ainda um outro com ele amiúde conexo, que tem que ver com a crónica fuga ao fisco. Um e outro dos problemas geram a economia paralela, o esquema, a distorção do mercado, a especulação desregrada e, no limite, o colapso do próprio mercado. Propiciam ainda a riqueza não tributada, a lei da selva e do salve-se quem puder, enfim, um atentado às regras de sã convivência e estabilidade sociais.
Ora, o que me pergunto é, porque razão sabendo-se que isto assim é, não se trata de atacar o mal pela sua raiz, expondo precisamente esta? Passo a explicar: quem recebe dinheiro indevidamente, tem de o colocar em algum lugar, não o manterá por certo debaixo do colchão ou numa cave, trancafiado a sete chaves. É que isso é perigoso e há por aí muita gente desonesta que não desdenharia a oportunidade de se apropriar de tal dinheirinho, tão esforçadamente ganho pelo seu dono.
Proponho, para que se moralize um pouco um sistema, que para começar, porque é barato e não custaria nem um cêntimo ao Estado, que se convide o comum cidadão e a empresa, que anexem à sua declaração de rendimentos a indicação das contas bancárias de que um ou outro são titulares, com cópia dos respectivos extractos apensados. A descoberta de que o sujeito teria outras contas que consubstanciasse evidência de rendimentos auferidos e não declarados poderia constituir infracção mais ou menos gravosa em função do montante, facto que de resto já sucede. O regime exposto nem sequer teria de ser obrigatório, bastaria que quem abrisse as suas contas fosse tributado de forma mais favorável, com uma taxa mais reduzida. Num par de anos o Estado saberia quem tem algo a esconder e daria pelo decurso de tal tempo, a tais pessoas e entidades, o tempo necessário para regularizarem as suas contas antes de se iniciarem as inspecções ditas "à séria".
Não será difícil perceber que pode ser tão fácil. E é. Isto sim, requeria coragem e vontade política para resolver um problema de fundo, muito mais grave, infinitamente mais grave que a gota de água que representam as sociedades off shore. Não é assim, Srª Ministra?

Afinal...

Afinal, o Governo vem anunciar que o défice controlado abaixo dos 3 por cento já não será bem assim. Afinal, há mais uns "pozinhos" que é preciso acrescentar e parece que esses pozinhos obrigam a rever o próprio algarismo à esquerda da vírgula. Afinal, a Srª Ministra também se "engana" redondamente. Afinal, onde é que já ouvi isto, antes? Que país. E logo hoje, que o dia tinha amanhecido tão solarengo...

Propinas e piquês

Quando estamos em casa, de baixa, com a perna esticada e ligeiramente elevada relativamente ao resto do corpo, esperando que o perónio desfissure, lá somos obrigados a fazer um zapping matutino e um zapping vespertino pela nossa TV. É o país real. E o país real, pelos vistos, são as canções do padre Borga e a Maya a adivinhar o futuro num baralho de cartas, e a Rita Ribeiro a falar sobre «gente iluminada», e o Roberto Leal em diálogo com o sr. D. Duarte Pio, e o Rodrigo Leal e o João Leal e uma particular amiga do Roberto, a Cinha Jardim, a cometer enunciados filosóficos sobre as relações luso-brasileiras, e ele é ainda o Toy e o João Malheiro com dossiers sobre futebol debaixo do braço a arrotar postas de pescada, e o Marco Paulo em sessões contínuas, e o Manuel Goucha e as avozinhas do Manel, e o maestro Vitorino d' Almeida, e o José Cid de boina e camisolas de lã a perorar sobre jazz, e o diabo a quatro. E então olhamos a luta dos estudantes contra as propinas de um outro modo. Com alguma simpatia. Porque nos regressa uma vontade imensa de meter cadeados em todas as portas e acender rastilhos. E, por instantes, até suportamos as capas e batinas de cem contos dos meninos. E a sobranceria dos meninos em conferência ao ar livre sobre a possibilidade de sequestrar o sr. Reitor. Agora há uma coisa que não se suporta: é o líder da Associação de Estudantes da Universidade do Algarve, armado em revolucionário de pacotilha, falando à turba de megafone, do alto da sua sua alarve ignorância, supondo que o plural de piquete é «piquês». E portanto era preciso organizar os piquês de defesa dos cadeados dos portões da universidade...

Grandes Antas

Ainda voltando ao FCP e à inauguração do novo estádio, Pinto da Costa e seus sequazes deixaram cair a nódoa no seu melhor pano. À festa apadrinhada por um senhor vestido de negro que praticou truques de ilusionismo já sabendo de antemão o resultado final dos seus passes e ao facto de não ter sequer faltado o milagroso penalti que permitiu a marcação do primeiro golo no novo Estádio do Dragão, junta-se agora a descoberta de que o projecto deste, afinal, tem bastantes "semelhanças" com o Zentralstadion em Leipzig, morada do clube desta cidade que actualmente milita na Segunda divisão do futebol alemão. Juro que vai ser divertido ver como é que Miguel Sousa Tavares, Pinto da Costa e o arquitecto Manuel Salgado vão desenrolar a trama deste "original projecto".

Isto assim até dá gosto

A partir de agora, na Califórnia, o acto sexual está sujeito à assinatura prévia de contrato entre os promitentes parceiros, exigindo-se a antecipada e pormenorizada explicitação escrita das modalidades que serão exercitadas. Um dos parceiros, por exemplo, não poderá acariciar o rabo do parelho, ou mordiscar-lhe o lóbulo, caso o acordo preveja exclusivamente uma cópula e sexo oral mútuo. Mordiscar o lóbulo sem que as cláusulas o prevejam, obriga os contraentes a deter-se, vestir-se, discutir o clausulado, pegar na esferográfica e minutar uma adenda ao contrato inicial. Depois de dilucidada e acordada a minuta, e passada a contrato devidamente assinado, poderão então os salazes despir-se de novo e recomeçar a retouça. Isto assim, como mandam as regras, é outra limpeza...

quarta-feira, novembro 19, 2003

Campeões

Scolari considera que Vítor Baía não tem lugar na selecção nacional: está no seu direito. Scolari considera que o suplente do suplente de Vítor Baía tem lugar na selecção nacional: está armado em campeão. Pois muito bem: quando vencermos o Euro 2004 não se fala mais nisso.

Assobios

Parece que ontem o público não começou a assobiar a selecção nacional de sub-21 aos cinco minutos de jogo.

Era o mais forte de todos

Vacilavam na tarde, traziam cordas e correntes
amarradas ao corpo. Mas só a noite
os socorria, efémera, diluída nos sinais
de lume da manhã. Lembravam esses artifícios,
a cerveja e outras drogas leves, um licor
barato comprado em espanha,
um nome ou um rosto que dividisse por dois
a tristeza de tanto abandono. Vacilavam
na tarde, só o relógio da noite os socorria.
Um deles vinha armado, era o mais
forte de todos, o que chorava
no ombro das crianças ao romper da madrugada.

terça-feira, novembro 18, 2003

Panis et circensis

A inauguração de um novo estádio é sempre um acontecimento em qualquer paí­s do mundo. O novo estádio do Dragão não foge por certo à regra, mas era preciso terem misturado a brilhante "Sonata ao Luar" de Beethoven, magnificamente interpretada ao piano por Pedro Burmester, com Luí­s de Matos e uma cantora pimba (seria a famosa Bela da Ribeira?) que tentou trautear o insuportável hino do Porto dando-se ares de cantora lí­rica desafinada? Felizmente, por uma vez, fomos poupados ao guarda Abel, ao Bóbi e ao Tareco.

Os antigos

O poder de curar ou afastar a sombra com as mãos e dividir o fogo, vagarosamente, pelos púcaros.

O esquecimento

Um homem adormece com a tarde a pique nas amarrotadas folhas do cadastro. O deserto avança por onde a aluvião se perdeu ou vagarosamente incide o arco de ferro do esquecimento repetindo injúrias.

As pequenas armas

É a água nos vidros, o vento, a fonte, a luz adormecida nos degraus. A pobre gramática dos campos. Nunca se repetem, esses nomes, como a tempestade não se repete quando sobe das margens e se esconde, uma e outra vez, no cabelo das crianças, nas suas mãos tão breves ainda de ver o inverno tropeçar na rua de tristeza. A água nos vidros, a luz adormecida nos degraus. As pequenas armas de lutar contra o deserto.

Antes de perder o caminho de casa

Antes de perder o caminho, para sempre, de casa, o caminho do largo, a luz dos degraus em pedra, o muro do pátio, o cântaro, mais uma vez levanto e rodo a cabeça sobre os ombros, o último cigarro nos dedos, um lenço, o bordado epigrama antecipado ao labirinto do futuro, a linha vermelha que parece atravessar a direito o espaço de sombra que leva hoje ao mais difícil coração.

segunda-feira, novembro 17, 2003

Contra os canhões

A GNR de Vila Real de Santo António, associando-se ao Dia do Não Fumador, anunciou o resgate de 30 Kg de haxixe enterrados nas dunas da Manta Rota.

Já não foi mau

Uma concorrente do Quem Quer Ser Milionário, confrontada com oito nomes da cultura portuguesa, confessou que o nome de Miguel Torga lhe era familiar. Concedeu que Paula Rego e Júlio Pomar não serão nomes fictícios. Mas nunca ouviu falar em Julião Sarmento, Ana Vidigal, Irene Lisboa, Manuel da Fonseca e Maria Judite de Carvalho. Sabe que nasceu e que reside em Cinfães do Douro. Mas também não sabe lá muito bem a que distrito pertence Cinfães do Douro. Enfim, não se pode saber tudo. E ela é só Professora, não é o Super-Homem.

sábado, novembro 15, 2003

A milhas, etc.

É lamentável que se tenha perdido a tradiçao dos suplementos literários na imprensa portuguesa. O El País e o ABC, por exemplo, ainda nao substituíram os seus suplementos literários por produtos equívocos: no Babelia e no Blanco y Negro entrevistam-se escritores, publicam-se poemas e fazem-se recensoes críticas a livros de ficçao e poesia, deixando para espaços próprios do jornal os assuntos de moda, medicina & futebol, automóveis & motores e aparelhagens de alta fidelidade.

Botas de montanha

Percebe-se que estes turistas vêm de países com muitos anos de educaçao ambiental e muito amor à ecologia. Saem dos carros alugados e tiram retratos de família junto aos painéis informativos do Parque Natural. Olham depois as vertentes íngremes no antecipado prazer de subir aos mais altos cumes da Península. Trazem brochuras, botas de montanha, coletes com muitos bolsos, chapéus de explorador, máquinas fotográficas a tiracolo prontas a disparar contra a borboleta endémica. E iniciam entao os preparativos da aventura que os levará aos 3718 metros de altitude: metem-se na bicha, compram o bilhete, e vê-se pelo ar descontraído que confiam no teleférico, na sua tecnologia de ponta.

Telenovelas e oceanários

Vemos baleias e golfinhos no seu habitat natural. Mas é uma sensaçao estranha. Por instantes é como se ficássemos à espera que fizessem habilidades de circo.

sexta-feira, novembro 14, 2003

O acaso do olhar

Na era dos telemóveis, da comunicação satélite, da talevisão, da internet e do cabo, descobrir que se consegue trocar um olhar com alguém no outro lado do mundo apenas porque se partilha a observação do mesmo astro, no mesmo instante, reveste-se de uma particular e especial profundidade. E por vezes é tão difícil apercebermo-nos disto...

quinta-feira, novembro 13, 2003

Os lugares ausentes

As folhas apodrecem no fundo do
tanque. Recordarás entao o tempo em
que os canais traziam a água em declive
e um estreito fio de luz acompanhava
pelo fim da tarde o voo das aves
a caminho dos açudes. Terás
na memória os torroes da aluviao
a desenhar o labirinto do vale,
os muros de musgo a definir o cadastro
e o perímetro dos campos alagados
à vez, a vara de negrilho
espetada na terra pelas maos das
crianças, o eco de uma voz a
atravessar os telhados e a vibrar
ainda no arame das vinhas.
Mas agora é como se nem
regressasses e só os ramos inclinados
das tílias deixassem as suas folhas
em forma de coraçao a apodrecer
no fundo do tanque sem água.

O coração e a visão

Ferro Rodrigues abriu hoje, em entrevista, o seu coração à Visão. Ao país interessará saber o que vai no coração do líder do PS? Numa coisa, no entanto, Ferro tem razão: no contexto actual parece precipitado o envio dos 128 militares da GNR para o Iraque. Não é de cooperação internacional nem de solidariedade que se trata, mas antes de instalar segurança num país que ainda vive em ambiente de guerra e onde há guerrilheiros armados a quem a manutenção do caos interessa. Provavelmente os militares não estarão preparados para o que vão encontrar. Provavelmente alguns poderão não voltar. O atentado de ontem contra forças italianas teria sido, porventura, o pretexto para se repensar um bocadinho esta questão. Ferro poderá ter marcado um ponto ontem, mas o tempo se encarregará de dizer se ganhará mais, pelo menos nesta matéria. Isso é necessário para o PS e para Ferro o qual, como se sabe, tem emitido opiniões mais baseadas no coração que na razão.

Um ano depois do desastre do Prestige e da forma pragmática como lidou com o assunto, facto que valeu pontos na sua popularidade, este índice está mais baixo que nunca para Paulo Portas. Até quando o PSD, Durão e o país estarão dispostos a manter o ministro em funções? Terá o envio de militares da GNR em vez de militares das forças armadas algo que ver com a necessidade de poupar o líder do PP a mais um rol de críticas?

Milton

Recordo o caminho que subia do rio ate' `a linha de cumeada. Passando a urze e o tojo. Deixando as rai'zes do freixo mergulhadas na a'gua. As folhas adormecidas da ti'lia e os seus troncos afastando-se a custo de ambas as margens. E depois o carvalho negral e as be'tulas antes da neve. E um nome ma'gico: Ilex aquifolium. E nada mais desejaria hoje que recolher ainda em meados de Dezembro as bagas vermelhas do azevinho.

Ainda os jardins, 2

Construi'mos os jardins `a procura de um parai'so perdido. Mas se um jardim fosse o parai'so, e nesse jardim se vivesse, haveri'amos entao de construir um novo jardim `a procura de uma outra coisa.

Ainda os jardins

Estamos no sul. Entramos num jardim e procuramos a sombra. Mal nos ocorre que o jardim foi construi'do contra a luz do peri'metro exterior aos seus muros.

quarta-feira, novembro 12, 2003

Um fim de tarde

O azul muito escuro do mar encostado `as arribas talhadas a pique. O castanho poroso da lava. O branco que separa as nuvens do fim de tarde, descendo vagarosamente, dos mais altos cumes da Peni'nsula.

terça-feira, novembro 11, 2003

Quase o paraíso

Entramos num jardim botânico e sabemos que alguém sonhou assim o paraíso. Nao exactamente assim, claro, porque falta sempre uma árvore, um arbusto, uma flor, e depois outra árvore, outro arbusto, outra flor. Quem sonha o paraíso, ou desenha um jardim, sabe que o paraíso, incompatível com os dias que correm, é sempre feito para o futuro. Como este jardim botânico, num sul umpoucomaisasul. Com a Washingtonia robusta a erguer-se a custo contra um céu muito azul. Com as flores de um rosa muito vivo da Chorisia speciosa. Com as raízes expostas da Pandanus utilis. Com as folhas imensas da Artocarpus altilis. Com os relevos escultóricos do tronco da Ficus elastica. Com o universo fabuloso de raízes e troncos da Ficus macrophylla subsp. columnaris, nesse labirinto de trocas entre o que é do ar (a sua luz) e o que é da terra (a sua sombra).

Um dia regressaremos ao interior destes muros e sabemos que o paraíso estará ainda mais próximo, um pouco mais próximo, do sonho que alguém sonhou muitos anos atrás.

Ela...

Passou à minha frente, na sala apertada, da direita para a esquerda. O seu olhar evitou-me. Soube de imediato que a queria muito, mas tive a certeza disso quando, anos depois da sua gravidez atribulada, me confidenciou que considerara uma dádiva a possibilidade de a filha que trazia no ventre ter nascido deficiente, porque ela, só ela, tinha todas as condições e forças para a criar...

Deus me livre!

Livra! PSD, eu? Lagarto, lagarto, lagarto!
Apenas e só, até à morte...

segunda-feira, novembro 10, 2003

Casar por amor

Depois de ter descoberto Eduardo Mendoza em A Cidade dos Prodígios, há já alguns anos, é reconfortante encontrá-lo agora em plena forma a assinar crónicas jornalísticas na última página do El País:

Versado en novelas de intriga y espionaje e ignorante de las cosas importantes de la vida, apenas me entero del compromiso matrimonial del príncipe Felipe se me ocurre la infundada ideia de que en realidad es una maniobra para contrarrestar los efectos disgregadores del plan Ibarretxe (...). La teoría me gusta, porque me parece más romántica que la que ofrecen los medios de comunicación. Casarse por amor es cosa de todos los días, mientras que lo otro es hacer historia y literatura de una solo tacada.

Para Llorar

Em Espanha, hoje, a notí­cia desportiva nao era propriamente a humilhaçao do Real Madrid, mas sobretudo a derrota do treinador português e a vitória de Caparrós. Nao foi o Real que fez uma primeira parte patética e, a espaços, quase circense. Nao foi o Real que revelou uma impressionante instabilidade defensiva: a equipa foi apenas ví­tima da falta de classe de Queiroz; das suas opçoes desastradas; da sua estratégia destinada ao massacre. Para além desse entendimento, a imprensa espanhola nao lhe perdoa também que tenha lançado Rubén aos leoes e às lágrimas ou condenado Pavón a um triste calvário. É triste. Nós que tí­nhamos o Figo...

domingo, novembro 09, 2003

Também tu, Brutus?

A tendência dominante é a de considerar que o investimento, e sobretudo o investimento directo estrangeiro, é bom em abstracto. Um projecto é tanto melhor quanto maior é o investimento que se lhe encontra associado, ponto final. Não se aceita, portanto, que um determinado projecto imobiliário, por exemplo, possa ser reprovado por contrariar as disposições regulamentares de um instrumento de gestão territorial ou por razões ambientais. No Algarve, sempre que um investidor alemão ou holandês não pode avançar com o projecto de execução de um condomínio privado em zona de máxima infiltração ou na crista de uma arriba em faixas de risco, a indignação cresce e acena-se com o fantasma da perda de investimento directo estrangeiro que, invariavelmente, será desviado para Espanha; que assim não saímos da cepa torta. Ora muitas vezes acontece o contrário. A multinacional alemã Benteler, por exemplo, anuncia a intenção de construção de uma segunda fábrica de componentes para a indústria automóvel no nosso país, supostamente porque não foi possível encontrar na Galiza solo industrial disponível. E descobrimos então que a Espanha também se dá ao luxo de perder IDE; que em Espanha também há planos de ordenamento do território; que em Espanha também há Rede Natura e áreas protegidas. E isto é uma surpresa...

Última hora

Pinto da Costa acaba de anunciar que não convidará umpoucomaisdesul para a inauguração do Estádio do Dragão. Lamentamos informar que, como retaliação, vetaremos a presença de Pinto da Costa e de José Mourinho no jogo-convívio de encerramento do encontro de blogs algarvios cuja organização está em curso.

Quase um domingo

Um sábado sem vento nem sol. Nem chove nem sai de cima. O levante deu ontem as últimas. Hoje amanheceu com um sudoeste que anuncia água. Parece domingo. Uma manhã e uma tarde sem história. Valeu-nos, à noite, um Douro da Quinta de Nápoles: tinta amarela, roriz e touriga francesa em terrenos xistosos. E a noite já parecia diferente quando saímos ao jardim, depois do vinho, a fumar um cigarro.

Urbe

O lixo, a má arquitectura, o mau urbanismo (ou a ausência dele), o desleixo: é bem verdade que parece que entramos sempre nas nossas cidades pelas traseiras.

sábado, novembro 08, 2003

Desenhos que não precisam de legenda

Um T2 na Praia da Lota custava vinte e sete mil contos na Primavera do ano passado. Em Novembro de 2003 estão a ser vendidos a trinta e quatro mil contos. Os serventes e os trolhas que trabalham nestes loteamentos ganham em Novembro de 2003 o mesmo que ganhavam na Primavera de 2002. O sistema de tratamento de águas residuais, que servirá este e os restantes empreendimentos em curso no concelho, será concretizado com recurso ao investimento público. Os rendimentos dos agregados familiares do Algarve estão em decréscimo, em termos relativos, há três anos.

Agora é claro que tudo isto explicadinho em economês, com duas ou três citações e enquadramento teórico, era outro asseio...

sexta-feira, novembro 07, 2003

Com as palavras de Sophia, o tempo que agora nos cabe

Vais pela estrada e ouvirás
O som metálico dos guindastes movendo-se
A imitar o antigo canto das
Aves. Depois encontrarás
O entulho arrumado aos taludes
Cortados a pique. Em nenhum lugar escutarás
O silêncio. Em nenhum lugar se
Levantará como um canto o teu amor
Pelas coisas visíveis. Mas olharás
Em redor e compreenderás
Que muitas coisas se vendem. Que
Se vende o mar, o vento e a lua
A prestações suaves. Que estão à venda a
Própria praia outrora extasiada e nua,
Os murmúrios da terra indefinida,
A transparência das paisagens que
Alguém jurou um dia ser de
Madressilva e primavera desenhada.
E trarás então para o almoço,
Entrando no hipermercado,
Com seu sabor de rosa densa e breve,
O peixe congelado.

quinta-feira, novembro 06, 2003

Porque escrevo

Há dias perguntaram-me se porque escrevo. Aqui ou noutro lugar, mas suspeito que a pergunta tinha mais que ver com o "Um Pouco Mais de Sul" - como se apenas o fizesse aqui - que com outros escritos. Naturalmente, partindo do pressuposto de que há vida para além da blogoesfera, não deixa de ser uma boa pergunta. O interessante é que muito provavelmente não tenho nem nunca terei qualquer resposta para a pergunta. Felizmente que Virgílio Ferreira nos dá uma certa ajuda:

"Escrever. Porque escrevo? Escrevo para criar um espaço habitável da minha necessidade, do que me oprime, do que é difícil e excessivo. Escrevo porque o encantamento e a maravilha são verdade e a sua sedução é mais forte do que eu. Escrevo porque o erro, a degradação e a injustiça não devem ter razão. Escrevo para tornar possível a realidade, os lugares, tempos que esperam que a minha escrita os desperte do seu modo confuso de serem. E para evocar e fixar o percurso que realizei, as terras, gentes e tudo o que vivi e que só na escrita eu posso reconhecer, por nela recuperarem a sua essencialidade, a sua verdade emotiva, que é a primeira e a última que nos liga ao mundo. Escrevo para tornar visível o mistério das coisas. Escrevo para ser. Escrevo sem razão."

Vergílio Ferreira, in "Pensar"

Finalmente...

E não é que Durão Barroso teve finalmente a lucidez e a inteligência de perguntar a Francisco Louçã porque espécie de razão é que a esquerda continua a achar-se no direito de entender que só ela tem coração? E não é que na ala esquerda do parlamento, ninguém lhe soube dar uma resposta coerente e justificativa? Não era esta pergunta necessária há já um bom par de anos? Com a sua pergunta na discussão do Orçamento de Estado para 2004, Durão Barroso sentou a esquerda portuguesa, e apertou-a ainda um pouco mais com o prometido aumento das reformas em seis por cento, a que acrescerá a diminuição das listas de espera nos hospitais a breve trecho. O arregaçar de mangas do governo, traduzido no agarrar das tradicionais bandeiras da esquerda deixam pouca margem de manobra para grandes contestações. Mais, a oposição tem agora muito mais trabalho, se quiser ser alternativa séria em 2006, tanto mais que o défice está contido dentro dos limites impostos pela União Europeia, apesar de todo o alarde que se fez em torno desta questão. Sem nutrir qualquer simpatia pelo Primeiro-Ministro, imparcialmente direi que o seu discurso político começa a fazer algum sentido apenas porque procura quebrar os tradicionais tabus e chavões que não têm qualquer razão de ser no actual estado da democracia portuguesa.

quarta-feira, novembro 05, 2003

Antologia da SUL, 2

De Nuno Júdice, a revista SUL publicou em inícios de 2001 três poemas inéditos. Agora que é tempo dos figos cheios, e dos figos em estrela, será tempo também de partilhar aqui esses versos, essa memória dos frutos que no inverno se tiravam dos frascos para, em segredo, chupar os seus grânulos ou saborear na boca a amêndoa que os recheava. Depois do excerto de uma crónica de Manuel Dias, retomamos aqui uma Antologia da SUL com um poema de Nuno Júdice:

ESTRELAS

Desfaço nas mãos os figos, os fios
fugazes de setembro, enquanto o seu leite
escorre pelas folhas verdes que
os envolvem. Esses figos, metidos
em cestos de vime, eram mel na boca
que os saboreava. Secos, iam parar
aos frascos fechados para o inverno, de onde
os tirava para os meter no bolso,
antes de sair. «O que tens aí?», perguntavas-me. E
eu passava-te para a mão um desses figos, e via
como o abrias, chupando os seus grânulos,
e passeando na boca a amêndoa que
o recheava. Mas hoje, onde estarás?, pergunto. Poderia
ainda partilhar contigo um
desses figos do inverno? Ou o seu leite secou,
no canto dos lábios, roubando-te
as palavras, e o húmido murmúrio
do amor?

Isso sim

Que a Nossa Senhora de Fátima da srª Benigna Pereira tenha começado a chorar lágrimas de cera, enfim, não parece milagre de monta. Milagre, milagre, era se, inopinadamente, se começasse a rir da situação...

Ao menos haja quem aproveite

Ferro Rodrigues, na discussão sobre o Orçamento de Estado, diz que «Portugal está a andar para trás». Entretanto, dois reclusos fugiram de Alcoentre na segunda feira e continuam a monte. Deve ser a tal crise assimétrica a que se refere o sr. presidente do BPP: enquanto uns insistem em andar às arrecuas, outros aproveitam para fugir em frente.

terça-feira, novembro 04, 2003

Ainda a memória

É verdade que somos vizinhos. Que é mais fácil tropeçarmos assim nesse fio quase invisível das cumplicidades. Partilhar o fascínio da evocação das sombras inclinadas nos muros de pedra do barrocal, do crepúsculo a desenhar-se nas muralhas antigas, da luz a levantar-se nos pomares de sequeiro. Aí regressar tantas vezes, sem pressas. Aos poetas de Cacela do século XI ou a Sophia. A Omar Khayyam, ao vinho e às rosas dos seus versos. À memória da Feira de Todos-os-Santos. Aos carrinhos e aos aviões da infância, ao comboio fantasma, ao poço da morte. Às tendas de fancaria, às louças de barro, aos colares de bolotas. E a esses lugares: ao Pego do Pulo, à Cerca da Feira, ao rio, à alcáçova, ao grés das cisternas. A tudo isto regressar assim, vagarosamente.

segunda-feira, novembro 03, 2003

Memória dos sabores antigos

Hoje à noite, na serra, havia figos cheios e em estrela, e havia medronho. E recordámos então uma crónica de Manuel Rosa Dias (esse mesmo, o do DN-J...) publicada na revista SUL há um pouco mais de três anos. É um texto com um pouco mais de sul, uma memória dos sabores antigos. E não se resiste a publicar aqui um excerto - também, ou sobretudo, em nome de uma velha e sempre presente amizade:

«Figos, já disse, é na figueira. Abro uma excepção, vá lá, duas. Ou mesmo três.
A primeira é para os figos secos do almanxar. Estou a ver-me de calções, agachado ao pé das esteiras que, ao fim do dia, o meu pai ia enrolar por causa da brandura da noite. Eu não ajudava nada, passava o tempo catando para a boca os mais direitinhos. As mãos pegajosas do melaço agarrado às canas, um pouco bêbado talvez, mas nunca enjoado desse inesquecível perfume.
Depois, os figos do Maio. Secos e espalmados, acamavam-se em latas ou caixas de papelão e, durante seis ou sete meses, iam ganhando o espírito da erva-doce e de outras plantas aromáticas lá encerradas também. Até que chegava Maio e o tempo da ressurreição. Que cheirinho. E que inveja de não poder, como os mais velhos, acompanhá-los com aguardente de medronho.
Por fim, os figos torrados no forno, com ou sem guarnição de amêndoas. Sendo com elas, já agora que seja em estrela, e os miolos abertos ao meio e descascados»...

Almanxar

Se já nem ao Suave do Português temos direito, imagine-se a confusão que não seria nos gabinetes e corredores da Comunidade Europeia se pretendêssemos certificar a designação de «figos secos do almanxar»...

domingo, novembro 02, 2003

A solidariedade para com a águia...

Vinham estas breves palavras a pretexto da solidariedade com todos os benfiquistas depois da primeira derrota - no primeiro jogo - em jogos oficiais no novo estádio... perdão, no inferno... perdão, na catedral da luz. Enfim, a primeira derrota da era Luís Filipe Vieira, expressivo vencedor das eleições da passada sexta-feira, concorrente em ritmo de passeio no seu carocha encarnado. Diga-se, à laia de curiosidade e em bom abono da verdade, que o autor da façanha foi o poderoso Beira-Mar.
Contudo, tendo-me debruçado um pouco sobre uma reflexão da autoria de António Barreto, publicada no Público de hoje (Domingo, dia 2), na qual este se questionava sobre se faria sentido a existência da Casa Pia, não por causa dos escândalos que a vêm afectando, mas antes pelo seu papel, resolvi analisar a questão sob outra forma. Concretizando, António Barreto afirma que o papel do Estado deve ser o de promover a adopção do maior número possível de crianças, dando-lhes um lar e o aconchego de uma família. Ora, a Casa Pia, ao desenvolver precisamente uma estrutura que preconiza o princípio contrário, representa uma contradição face a tal desiderato, pelo que, em última análise, aproveitando o momento conturbado que vive, o Estado deveria promover o seu desaparecimento. Este, sinteticamente, o pensamento de António Barreto.
Sem querer aqui analisar a complexidade da questão, parece-me, salvo erro, que a reflexão se pode e deve igualmente aplicar ao Benfica. Com efeito, o Benfica cresceu e dotou-se de uma mística num período em que os portugueses andavam descontentes com o regime, eram órfãos de pai e mãe porque o Estado os deixara de proteger e, mais grave, os agredia. O Benfica foi assim adoptando cada vez mais filhos que, rezam as crónicas, chegaram a ser cerca de 6.000.000, órfãos que viviam debaixo da protecção da asa vigilante da grande águia. Ora, nos tempos que correm, os papéis inverteram-se. O Estado passou a proteger a águia, esta perdeu a sua mística e o povo, outrora carente de protecção, passou a saber cuidar de si próprio. Adquiriu maioridade e agora passou ele a cuidar do Benfica. Mesmo os pretensos 4.000.000 de portugueses que não são seus adeptos nem sócios pagam (altos) impostos que ajudam ao seu sustento sob as mais variadas formas. Pergunta-se então, face ao exposto, à semelhança do que é legítimo questionarmo-nos acerca da Casa Pia, fará sentido a existência do Benfica?

4.000!

Muito por "culpa" do Zé Carlos este blog atingiu as 4.000 page views. Não é muito, nem é pouco, serve num blog sem pretensões e com um grau relativo de leveza. Contudo, revela que há espaço para o que aqui se diz. Para já, é pena o apagamento do João e do Joaquim que tanta falta fazem. Começamos agora a caminhada rumo às 5.000 page views, com promessa de beberete (cada um paga o seu) nesse dia. Combinado? Até lá e uma saudação especial a toda a blogoesfera.

Uma solução natural

Um dia sem história. O nariz entupido. A cabeça num oito. Pego num livro. Leio meia página e desisto. Levanto-me. Vou ao jardim. Volto a sentar-me. Levanto-me de novo. Pego no frasco de Rhinomer Forte, retiro-lhe a pequena tampa circular, fixo o aplicador nasal conforme instruções do folheto informativo. Passo os olhos pelo folheto informativo. Vejo a composição, as indicações, as contra-indicações que não tem. E compreendo então que estou a tomar «água do mar»... Nem mais nem menos: «água do mar». A escassas centenas de metros da praia, e eu a desentupir as fossas nasais com água do mar adquirida na farmácia a 58.80 euros o litro...

sábado, novembro 01, 2003

Peles genuínas

Já se sabia que o pássaro preferido de Bobone é a borboleta. Fica-se agora a saber que Cinha adora «tudo o que é animal» e acha «chiquíssimo» usar peles genuínas...

Isto nem chega a ser grave. É só parolo.

Ainda o off-shore

Em entrevista ao «barlavento», o presidente do Conselho de Administração do Banco Privado Português reconhece que o novo regime de tributação de empresas off-shore «poderá ter uma influência negativa, embora em Espanha o governo tenha feito exactamente a mesma coisa há já muitos anos». João Rendeiro acrescenta que esta legislação se insere «numa tendência internacional que está a acontecer», e que o novo regime não afastará tanto «os investidores sérios», mas sobretudo «aqueles investidores que terão algumas dificuldades de explicar exactamente todas as suas operações»...

Entretanto, a Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve insurge-se pela milionésima vez contra este regime tributário, garantindo que a situação nos coloca «ao nível de um qualquer país de 3º mundo», e que «serão necessários muitos milhões de euros e muitos anos de investimento promocional para reparar os danos causados na nossa imagem»...

Depois querem que a gente compreenda... Então a nossa imagem fica danificada por uma medida que afecta sobretudo os investidores que têm dificuldades em explicar de onde lhes vem o dinheiro?...

A crise assimétrica

Na mesma entrevista ao Barlavento, o presidente do Banco Privado Português analisa assim a situação do país: «Diria que o país vive uma crise assimétrica. E uma crise assimétrica é uma crise em que para uns há crise e para outros não. Isto pode parecer contraditório, mas não é.»

Oh senhor doutor João Rendeiro, por amor de Deus: claro que não é contraditório... Até está muito bem explicadinho...