quinta-feira, setembro 30, 2004

Uma história de adormecer

História de Harun, da Menina do Mar, da Piratinha e de um pequeno Ouriço

“Sorte?” – perguntou Harun, admirado com o desplante com que a sua conquista fora apontada pelo amigo. Harun era um rapaz do fundo do mar, um pequeno nómada que gostava de passear pelas correntes, pelas ondas, saltar pelos abismos abissais e brincar às escondidas com as tartaruguinhas. E agora o seu pequeno amigo, um Ouriço do mar, dizia que essa liberdade era a sua sorte. Ao contário de Harun, o pequeno Ouriço estava preso à sua cova no rochedo do Penedo da Moreia e não se arriscava a sair de lá de dentro por um instante que fosse, sequer para comer, com receio de ser devorado por um grande peixe.
Harun era livre e valente, cavalgava as vagas das tempestades no dorso dos golfinhos, nadava no meio dos tubarões, media forças com eles, gostava de lhes agarrar no focinho e beliscá-lo com força, porque sabia que assim os irritaria.
E assim o pequeno Ouriço confessava ao seu amigo que gostaria de ser como ele. Mas Harun tinha uma fraqueza, ou melhor, duas: a primeira delas, Harun gostava perdidamente da Menina do Mar. Sentia muitas saudades quando não estava junto dela e passava os dias a imaginar o seu sorriso franco, aberto, muito branco e alinhado. Gostava de recordar os seus dedos a passar pelo cabelo da Menina do Mar, de sentir o carinho da testa dela na sua e sentia falta dos seus beijos de esquimó. Ninguém dava beijos de esquimó como a Menina do Mar. Harun gostava muito do nariz arrebitado da Menina do Mar e queria muito que ele e ela fossem um só e vivessem na mesma casa no Mar da Felicidade. Harun gostava também muito do pequeno Ouriço e por isso prometeu-lhe que se um dia assim fosse, o convidaria a viver com eles para que nunca tivesse medo, porque Harun e a Menina do Mar lhe dariam toda a protecção. A segunda fraqueza de Harun era a Piratinha. Harun gostava muito da Piratinha, que era um menina que percorria todos os oceanos do mundo à procura de tesouros e navios encalhados para neles entrar e explorar o que tinham lá dentro, coisa que Harun também gostava de fazer na companhia da Piratinha.
Ao contrário da Menina do Mar, a Piratinha vivia à superfície do oceano, gostava de histórias para adormecer que Harun gostava de contar e ouvir e por isso Harun gostaria que ela também viesse viver com ele, com a Menina do Mar e com o pequeno Ouriço. Mas a Piratinha não podia, porque dificilmente respiraria debaixo de água e assim o mundo da Menina do Mar, do pequeno Ouriço e o da pequena Piratinha eram diferentes um do outro. E quando Harun realizava isso ficava triste, muito triste, e percebia que se tinha tornado numa criatura que não era do mar, nem da terra, nem respirava na água nem no ar. Harun sufocava num mundo e no outro, não era feliz no fundo do mar nem na superfície, porque no mundo da Piratinha lhe faltavam o Ouriço e a Menina do Mar e no mundo da Menina do Mar lhe faltava a Piratinha.
E assim o tempo passava para Harun. Nos dias de tempestade, Harun fugia para o fundo do mar e nos dias de Sol refugiava-se na superfície, perto da Piratinha. Um e outro lugares eram os oásis de Harun, lugares onde o tempo do relógio parava a par do tempo que fazia. Mas fora dos oásis Harun definhava e perguntava-se se a felicidade tinha de ter aquele preço, ou se podia não ser absoluta e inteira. Porque Harun não queria ter de contar duas histórias, a história de Harun e a Menina do Mar e a história de Harun e a Piratinha como fazia habitualmente e como cada vez mais detestava ter de fazer. Isso disse Harun ao pequeno Ouriço, que o ouviu atentamente e, no final, coçando pensativamente os seus picos com a mão direita, respondeu que não o podia ajudar, porque Harun tinha de continuar e encontrar dentro de si as forças que lhe permitissem viver e fazer felizes a Menina do Mar, a Piratinha e o pequeno Ouriço. E Harun sabia que havia de as encontrar, fosse em que oceano fosse, e para isso contava com a ajuda do pequeno Ouriço. Este prometeu que o ajudaria nesta tarefa e despediu-se de Harun com um beijinho de esquimó. Nessa noite todos, a Menina do Mar, a Piratinha, o pequeno Ouriço e Harun dormiram descansados.

quarta-feira, setembro 29, 2004

Grito

Ainda ninguém conseguiu explicar porque razão conseguimos gritar mesmo quando já não temos forças para nada. Eis um dos mistérios da natureza humana.

terça-feira, setembro 28, 2004

Saudade Aguda

Hoje é um dia mau. Péssimo.
Sinto enormemente a tua falta
e sei
que já te não vou ver.
.
Devia estar habituado,
mas dentro de mim sinto que isso nunca acontecerá
e parte de mim morre
.
quando partes.
.
Não sei como dizer isto de outra forma,
mas
é insuportável a tua
distância.
.
Hoje é um dia mau. Péssimo.
e em dias assim,
apetece-me
arrancar as teclas das minhas mãos...

Pátio de teclas

Uma noite e outra. Uma sinfonia inacabada, dedilhada ao extremo da loucura, na pressão de um concerto de última hora. Arpejos e escalas, ritmo marcado por café atrás do outro, impassível, metrónomo em seco, erupção de sentimentos e sentidos. Assim o pianista sentira os seus últimos dias naquela casa, naquela vida, naquela pauta que para si fora reservada. Da janela para o exterior da minúscula habitação no topo do edifício, ocupada na sua maior parte pelo velho piano de cauda herdado do seu avô entoava o seu piano e o seu estado de espírito dias a fio. Euforia, depressão, melancolia, serenidade, tudo era vivido naquele mesmo espaço... Não era um Steinway o seu instrumento, mas era seu, de estimação, como um animal de que não se prescinde. Com vida, respirava por cada um dos seus poros, resfolegava por cordas e teclas escondidas sob o verniz preto. Dias a fio, o pianista dedilhava febrilmente sonatas e sinfonias, partituras e oitavas, escalas acima e escalas abaixo. Mas sem fim e sem sentido - ninguém liga aos velhos pianistas que se curvam sob o peso do talento que a idade lhes traz. E um dia, tudo fez sentido no dia do violino tocado por dedos de mulher, bela, escondida, que com ele voava em oitavas por sobre os telhados da cidade cinzenta, mais depressa que a brisa do fim de tarde. E de repente, tudo desapareceu. Arrancadas as folhas do calendário, sem as folhas que lhe permitissem contar o tempo que passava, ao pianista apenas restava arrancar o que de mais precioso tinha. E assim, uma a uma, as teclas do seu piano foram sendo retiradas, primeiro cuidadosamente e colocadas na gaveta da mesa da cozinha na vã esperança de ainda as voltar a colocar, mas depois, em desespero, arremessadas pela janela, as brancas e as pretas, que faziam um ruído diferente ao partirem-se de encontro às pedras gastas da calçada do pátio. E um dia, quando escasseavam já as teclas, o pianista fechou os olhos, exasperado pela surdina a que votara as suas sinfonias, a sua voz, a sua vida.

sábado, setembro 25, 2004

[Do amor]

Nunca soubemos se é possível no seu voo por um instante as aves mudarem a trajectória se
lhes é possível a escolha se
necessariamente repetem ano após ano esse percurso que as traz de longe ao fundo do vale se
um relâmpago as fende ou ilumina se
estão sujeitas à propagação migratória das frases se
o vento do atlântico as puxa para o centro dos meteoros.
.
Nunca soubemos em que margem se levantam os caules onde os cardumes adormeciam antes das explosões se
as marés alteram a corrente dos lagos da península ou apenas irrompem no abismo das águas e expandem as placas até à desordem das páginas numeradas dos livros se
os peixes do fundo dissipam nas vertentes côncavas o metal incandescente dos processos erosivos se
as argilas do dilúvio precipitam ainda nos leitos de cheia se
a sede é um dos desígnios da abundância.
.
Nunca soubemos se a poderosa evocação do paraíso nos liga às raízes das macieiras ou se
é apenas a memória dos frutos que se expande nas artérias até à deflagração do desejo.
.
Nunca soubemos se o coração e os incêndios são pronomes possessivos inscritos na paisagem se
o fogo irrompe dos alicerces da casa se
a infância deixa na pele as manchas a sépia das constelações se
o movimento de translação da terra aquece a água das vasilhas de zinco que as mulheres deixam ao lume se
é possível as crianças regressarem do passado com seus archotes de granizo e incendiar as planícies.
.
Nunca soubemos
sabemos sempre tão pouco do que respeita ao amor.

sexta-feira, setembro 24, 2004

O impossível paraíso

Não será sempre assim; Um dia
teus lábios serão de outro
e de nada valerão meus suspiros
e palavras em desvario.

De nada valerá o meu silêncio
Nem a minha dor e pesar
quando o teu amor, tão grande
por mim morrer, cessar...

Desviarás de mim os olhos
esses olhos, postos lá longe,
longe, desviados do meu caminho
do meu peito, do meu paraíso

Onde um pássaro perdido,
entoa sozinho o seu canto.

quarta-feira, setembro 22, 2004

Rosas negras

Rosas negras
pejadas de espinhos aguçados
espelho baço da minha alma
turva, revolta e demente,
rasgam minha carne
como facas
.
Incansáveis lágrimas de sangue
verto;
exaspero na dor,
na aflição, no sofrimento,
na perda, na atrocidade
no indescritível desespero

de querer partir ou morrer.

terça-feira, setembro 21, 2004

A alma

A alma, a alma tinhas,
clara e aberta,
e por isso
nunca nela
consegui entrar.

Procurei-a,
mas seguia por caminhos largos
que não me permitiram chegar;
escondia-se,
atrás de altos muros
que nunca consegui escalar.

Fechava-me a porta,
momentaneamente aberta,
quando me aproximava.
Não era franca,
a alma,
que tinhas clara e aberta.

Nunca lhe descobri o início
nem tão pouco o fim,
tão grande era
e assim me fiquei, sentado,
na tua alma clara e aberta.

Contemplando as vagas que a banhavam
à tua alma clara e aberta.

O pescoço II

Da mesma forma, menos apostamos ainda no pescoço de José Peseiro, o qual nada tem de atenuante a seu favor sobretudo depois do Sporting descaracterizado que apresentou ontem em Alvalade. Salvou-se, ao que parece, um golo mal anulado a um avançado do Marítimo, que limitou os gastos à sua expressão mínima.

O pescoço I

Em face da entrevista de ontem à noite da Srª Ministra da Educação e do que se passou esta noite com a disponibilização "on-line" das listas de colocação e professores, e pese embora o facto de esta ministra ser herdeira de uma situação criada anteriormente, caso persista na sua incontinência de abrir a qualquer custo todas as escolas até 23 de Setembro, aqui em Um Pouco Mais de Sul não apostamos um chavo no seu pescoço.

segunda-feira, setembro 20, 2004

O telégrafo platónico

Num dos livros de Gabriel García Marquez - o leitor desculpar-me-á a falta de memória mas não consigo localizar em qual é referido o episódio - no meio da canícula que é constantemente descrita pelo autor e é recorrente em toda a sua obra, a par da pele encharcada dos personagens, do cheiro nauseabundo, da febre, dos sírios mercadores, há uma pérola de paixão platónica personificada pelo telegrafista de Macondo e pela telegrafista de San Bernardo-de-um-lugarejo-qualquer. Com efeito, um e outro entretêm os seus dias a telegrafrar entre si poemas e juras de amor repetidamente e o telegrafista declara a páginas tantas que reconheceria a sua colega em qualquer parte do mundo, pelos saltos nos "iii" que ela perpetra ao dedilhar o telégrafo. Num dos instantes finais da obra, o telegrafista propõe-se mesmo transcrever "Os Miseráveis", de Vítor Hugo, pelo telégrafo, para que ela o possa assim ler e partilhar consigo. Juro que na era do telegráfico-sms, semelhante tarefa não me passaria pela cabeça, a despeito de infinitamente mais fácil de cumprir.

sábado, setembro 18, 2004

Pastelaria Versailles

Somos do campo. Quando nos perdemos nas grandes cidades procuramos sempre o refúgio da primeira árvore que encontrarmos. A sua sombra. Mesmo no Inverno.

Trabalhos manuais (ou A Seita de Fénix)

Borges, nas Ficções, descreve A Seita. A Seita de Fénix não tem Conselho de Administração nem corpos gerentes. É a mais democrática das corporações. Todos os seus elementos contribuem de modo individual, diligentemente, para a granda causa. Não os move um propósito comum. E no entanto há uma espécie de desígnio que os une na sua irredutível individualidade. Eu faço parte da Seita de Fénix. Tu fazes parte da Seita. Mas nunca o haveremos de reconhecer em público.

sexta-feira, setembro 17, 2004

O regresso

Primeiro há a sensação de saudade. Depois há os cheiros, os ventos, o marejar da água, os pescadores, os restos da urze de Verão, a areia, as casas baixas e desordenadas que persistem na memória... A Culatra, a ilha-barreia, a duna, traz-nos ao Algarve esquecido que abandonámos no ano passado e ao qual não mais regressámos. Era tempo de matar saudades, de sentir a areia fina a ranger sob os pés e de preparar o regresso...

quinta-feira, setembro 16, 2004

[O tempo]

As vozes do passado às vezes nos cercam
com inúmeros ferros e seus óxidos,
sua cal de pedra, sua persistente
e subterrânea ondulação.

O metal incandescente da memória
traz à superfície o relógio dos nomes,
os lenços perfumados das frases,
as páginas dos livros.

Quase ninguém sobrevive a
essa estranha caligrafia
onde o arame farpado e a água fresca dos púcaros
se misturam.

O logro

Conheceram tarde o poder das palavras. Ou nem chegaram nunca a conhecê-lo. Eles que conheciam apenas o valor da Palavra.

[Milton (ou Não há regressos)]

Regressávamos a essa liturgia sem
nome e dizíamos por
exemplo "aqui
até mais puro é o
ar que se respira",
ou falávamos com adjectivos e hipérboles
do vento nas encostas da urze
e da neve a descer o labirinto das levadas.
Hoje, quando regressamos,
faz frio substantivo
mesmo sob as imaculadas
colchas de lã com que nos tapamos.

quarta-feira, setembro 15, 2004

Jura de chá

O leitor e a leitora ficam avisados, em desabafo, que odeio computadores, informática, discos rígidos, teclados, chipsets, motherboards e quejandos afins. Uma pessoa bebe um golo de chá, entorna umas gotas no maldito teclado e ala que o pc tem de ir passear à macrocéfala Lisboa.
Enfim, as alergias da informática ao chá de menta provocam-me convulsões, mas levantam-me a dúvida de saber se os teclados só serão alérgicos ao chá de menta ou se, por exemplo, também o serão aos earl grey. Confesso que mal posso esperar pela volta da coisa para a submeter à experiência...
Aqui fica a promessa da partilha da experiência com o leitor atento (e com a leitora também, claro).

Dos incêndios

Às vezes são muito poucas as diferenças entre um lança-chamas e um perfume. Algumas mulheres (com quem nos cruzamos na rua, num estabelecimento comercial, numa repartição da administração pública) bem que podiam ser detidas, sem direito a recurso, a coberto da legislação que pune os incendiários.

Penhascos

Pressinto a tua voz nos cumes altos
o grito asfixiado nas encostas calvas
adivinho-te nos penhascos
e nas veias queima-me o teu calor.
.
Antecipo-te, suspensa no vento
empurrando o arcanjo à tua frente
sobrevoando precipícios e torrentes
onde floresce a seiva que me dá a vida.
.
O corpo que te busca nasce
e desaparece em cada dia, cansado
pesado, faminto, no ocaso
em busca do repouso
.
que trazes dentro de ti.

terça-feira, setembro 14, 2004

O louco

Atravesso a rua sem olhar, indiferente às imprecações dos automobilistas e dos outro peões. Tanto me faz, que é como quem quer dizer "- é-me indiferente!", como me é indiferente se chove ou faz Sol, se é noite ou dia. Utilizo indiferentemente a passadeira e o meio anárquico da via. A indiferença pauta-me a vida sem sobressalto, sem amargura, sem objectividade, sem cumplicidade. Movo-me pelo relógio da imaginação, por vezes da barriga, fiel companheira, que decide do destino de algumas das minhas horas; volto-me de manhã na enxerga para me esconder do nascer do Sol, como se de dia as rugas que tenho na cara se tornassem cicatrizes contundentes aos olhos de quem as contempla. E no fundo consigo sorrir, rir, por vezes gargalhar sem motivo aparente. Por isso me chamam louco, fogem do meu aspecto desgrenhado, sujo, do cheiro nauseabundo que exalo mas que me diverte. A minha loucura é a de ser uma ilha no meio da sociedade e de o ter conseguido atingir sem que fosse contra alguém, sem despertar a inveja, a curiosidade nem a ambição. A nada aspiro, excepto ao verso perfeito, à palavra mágica, ao declinar do verbo. Não me perguntem porquê, já estive louco, agora apenas o sou aos olhos de quem me rodeia.

Inflama

Onde porei doravante meus olhos
que não seja na causa do firmamento,
nas cousas térreas que me levaram
o olhar e me trouxeram a dor
de amar sem descansar,
de quem pende meu desejo.

Onde? tudo e nada, doce contentamento
feroz ferida, insana contradição
pejo em esconder o peito, a alma
e o coração ferido da luz
do Sol, do desalento da lama
do Outono em chama.

Engula-me a terra, pasto de fogo,
transforme-me em cinzas,
brasas de lágrimas salgadas,
crú sentimento calcinado
chamas de incerteza,
ardente piedade finita.

Eu seja chuva, ínfima gota,
efémera, da tua vida.

Olhos

Olho nos teus olhos,
quero a tua alma

Olho nos teus olhos,
quero a tua boca

Olho nos teus olhos,
estão fechados.

[como dizer? sinto-te morta!]

(inspirado em Remansillo, de García Lorca)

Os adultos

O tempo que hei sonhado
anos ininterruptos de vida
De um futuro que imaginei,
de esperança,
iniciada em criança,
.
O tempo que hei sonhado
por uma vida, não horas não dias,
assenta em sonho maduro
alegria, fogo, viva voz
crença
iniciada em criança
.
O tempo que hei sonhado
hoje, apagou-se da memória
antes de existir, escuro
triste, envolto na névoa
da desesperança
iniciada em criança
.
O tempo que hei sonhado,
iniciado em criança,
nunca existirá.

segunda-feira, setembro 13, 2004

Como funciona o mundo

Um amigo meu lamenta-se de muita gente nem saber «como funciona o mundo». Ele sabe. Lê na Scientific American. Cujo último número acabou de comprar pedindo-me emprestados cinco euros.

A normalidade

Na paixão, não havendo irracionalidade, pouco há. O que vale é o amor: que logo há-de vir e apaziguar.

A felicidade e o drama

As revistas de sociedade vivem da felicidade e do drama. A felicidade, as mais das vezes, é relativa: a revista paga a um casal de famosos, por exemplo, e relata em exclusivo os pormenores de um abraço amoroso, cuidadosamente encenado, entre o verde-esmeralda da água e as palmeiras do areal. O drama, pelo contrário, não necessita de produção nem encenação: cru, em carne viva, chega em directo à capa e às páginas centrais. Como na vida real. E portanto está certo: a vida é assim.

Restos

Fresca, a noite esvai-se
já é outra a manhã.
De novo, a mesma
face no espelho,
a barba crepitando insana
sob o arranhar da lâmina.
.
Sangue, a gota ínfima
escorre no lavatório e desfaz-se
na água que a toma.
Não há nada, não és nada
não existes, apenas e só
uma vaga memória de ti,
.
Se apega e apaga, tenuemente,
no espelho embaciado.
Por fim desapareces
na chávena de café
que trago de uma vez só;

respiro, suspiro e
.
Queimo a língua
que, em vão,
te sorveu à exaustão.

Um pequeno desabafo

O leitor (ou a leitora) desculpar-me-á o desabafo e porventura a leveza com que abordo esta questão, mas confesso que a mim me irrita a forma pouco avisada com que neste país se discutem temas essenciais e de interesse nacional. Vem isto a propósito das recentes declarações de Pedro Santana Lopes acerca da criação de uma taxa moderadora que, afinal e ao que parece, é um pagamento diferenciad por utilizador. Trocando por miúdos, o princípio é o de colocar um utilizador do Sistema Nacional de Saúde (SNS) cujos rendimentos lho permitam a pagar mais por um mesmo tratamento que outro utilizador com menor capacidade económica. Tudo certo à partida, ninguém duvida da justiça de tal medida. Mas eis que, aqui d'el Rei, um administrador hospitalar afecto ao PS cujo nome me escapou avisa-nos que o utilizador menos carenciado já pagou os seus impostos e nessa medida estará a pagar duas vezes pelo mesmo serviço. Bem, sem dúvida, então tal medida não será de forma alguma justa? Complicando, o PCP e o BE não deixam de dar o seu contributo para a discussão da questão referindo que quem tem maiores índices de rendimento regra geral foge ao fisco, pelo que o pagamento diferenciado acabará por contribuir para uma maior justiça social. E estamos conversados com esta lógica mesquinha e, porque não dizê-lo? cretina!
Seja como for, é preciso referir que uma das premissas-base da discussão reside no facto de o SNS ser amplamente deficitário em perto de um bilião de euros ano, apenas gerando receita equivalente a cinco por cento da sua despesa. Neste contexto, como qualquer outro governo disso se apercebeu no passado, é preciso inverter esta lógica, aliviando a carga de despesa e gerando maior receita própria.
Nisso há unanimidade partidária, incluindo a própria classe médica. A discussão só se torna pouco clara e transparente, pecando porventura pela inicialmente citada leveza, porque nem o Governo nos explica como pretende compensar quem assim pagaria dulpamente, nem elucida o BE e o PCP acerca dos mecanismos que pretende implantar para combater a fraude e a evasão fiscal em todos, repita-se, todos os extractos da população. Porque praticam o mesmo crime o gestor que não declara todos os proveitos da actividade da sua empresa e a empregada a dias que se recusa a emitir recibo e a inscrever-se na segurança social pela actividade que presta.
Natualmente, sem querer partidariazar nenhum tipo de extracto social, é fácil de verificar que os interesses na boa decisão desta matéria só por mera irracionalidade e desonestidade intelectual se dirá que são divergentes. Em suma, nada se dirá em desabono da medida agora preconizada pelo Governo se nos forem convenientemente explicadas as compensações que terá quem pagar pela prestação de serviços de saúde pelo SNS, depois de pagar os seus impostos, seja tal benefício conferido por intermédio de dedução à colecta, ou à matéria colectável, por exemplo.
Obviamente, último ponto que este governo tarda em compreender, a confusão na terminologia apressadamente empregue (taxa moderadora/pagamento diferenciado) não ajudou PSL e o seu governo. Aguardemos no entanto por próximos capítulos porque, sem margem para dúvidas, "o povo é sereno" e a questão é fulcral.

domingo, setembro 12, 2004

A noite

As moças que vão ao restaurante ou à discoteca de mini-saia muito curta têm aquele tique terrível de levar a mão direita à parte superior da coxa a puxar ligeiramente o tecido em direcção aos joelhos. A saia não desce, claro. Elas sabem. Nós sabemos. O gesto inaugura um jogo de cumplicidades. Depois é a noite. E esse poder, o de uma saia que se puxa, em vão, de forma displicente.

A Pintura

Vivemos no mundo da música. Da ditadura da «música de fundo». Ele é nos elevadores, nos centros comerciais, nos bares, no expresso da rodoviária, nos aeroportos, nas casas de banho, nas salas de espera dos consultórios. A música segue-nos por todo o lado. Hoje, no restaurante, antes mesmo do couvert, um teclista e um saxofonista atacaram-nos com música ao morto. Não há pachorra. A música de fundo mata a música de facto. A proliferação das imagens, pelo contrário, dá uma nova razão de ser à Pintura. A Pintura não é apenas a arte que nos defende da proliferação das imagens. É também a Pintura, hoje por hoje, que nos defende da insuportável ditadura dos sons.

sexta-feira, setembro 10, 2004

Anjo negro

Regresso à origem e ao presente, onde
procuro a verdade do tempo esquecido
e com a ansiedade da memória
vivo a dor da tua chegada.
.
Velo-te na negra noite o sono ,
a amargura febril, a melancolia
e a sombra do anjo negro
de cujas asas te arrancaram.
.
Entro na tua alma sem guarda
procuro os atalhos do caminho
para um céu de pouca dura
que te concebeu na sombra escura.
.
Vem, toma meus braços, meu peito,
meus lábios, meu eu...

Crepúsculo

Confundo a alvorada com as trevas
e o crepúsculo, noite misteriosa
que me trazes o luar dorido
o espírito inquieto, o choro,
as lágrimas e o riso.
.
Menina da noite, da manhã,
do mar, do meu corpo
libertas a perfeição
da saudade, da rudeza
da maldita escravidão
do inferno no paraíso.
.
Homem apenas sou
à procura de dignidade,
minha condição arrefece
no brilho de cada lua,
à espera do que importa:
.
[salve-me a morte]

quinta-feira, setembro 09, 2004

A Queda do Sol

Sem prenúncios ou qualquer espécie de aviso, perdeu-se hoje um bocadinho de Sol.

quarta-feira, setembro 08, 2004

O teu Outono

Gustav Klimt, Bosque de Bétulas, Viena, 1902
...
Desta vez trouxeste contigo não apenas a notícia do Outono, mas o próprio Outono. Cobriste os ombros, os teus ombros lindos, com um fino casaco de malha escura a condizer com a saia de bolas para te protegeres contra o fresco da noite. Vi-te o arrepio do corpo, o estremeção das argolas penduradas em ambos os lados do teu rosto e o rodopiar nos calcanhares com os lábios contraídos. E partiste. O teu rabo de cavalo a saltitar na nuca, o passo apressado embalado pela mesma conspiração da incerteza de sempre contra nós. E eu? Que fiz? Unicamente me sentei a ver as primeiras folhas a cair, como se outra coisa não fizesse sentido sem o amparo do teu tronco forte.

terça-feira, setembro 07, 2004

Invisibilidade

No "Horas Más" de Gabriel García Marquéz relata-se uma história dos primórdios do hotel da cidade de Macondo. Nesse tempo, os hóspedes faziam as suas necessidades num balde colocado à sua disposição num pátio à vista de todos, assegurando a sua privacidade com a utilização de uma máscara que para o efeito estaria pendurada no saguão do hotel. Embora semelhante privacidade possa parecer escassa, quanto não daríamos por uma boa máscara em certos dias da nossa vida, ainda que por necessidades menos prementes?

A fresta

Esgueiras-te como uma gota de água pela fresta de uma porta que deixei apenas entreaberta. Espreitas o interior escuro, em desalinho, como um remoinho de cabelo, entras apenas, olhas em redor e sais, sem te preocupares em apagar os leves vestígios da tua passagem tão inesperada quanto desejada. Nesse dia e nos outros que se lhe seguem não durmo, ou mal durmo, nem sei; certo apenas é que mudas a minha vida ao sétimo dia do mês, como a mudas todos os dias desde então. Bem sei que datas para mim não são tão importantes quanto a tua presença, o que ela me traz e, acima de tudo, os bocadinhos que quero e espero poder trazer-te todos os dias...

segunda-feira, setembro 06, 2004

A poesia

Vejo um pássaro a sobrevoar a península de Cacela (quer dizer, uma ave), e vem-me à memória um poema de João Miguel Fernandes Jorge. Cito de cor: «A poesia é aquilo que distingue/ a palavra ave/ da palavra pássaro».

Segunda-feira

Como se te tivesses evaporado da face da terra... eis porque odeio as segunda-feiras.

sexta-feira, setembro 03, 2004

Despojos

Deixa-me
que apague
a ira em teus olhos,
o furacão em teus lábios

Que procure, sedento,
o bálsamo, o jardim,
o éden, o tormento
a rosa, o jasmim.

Um beijo roube
em desespero, ousadia
ilusão e agonia.
Espuma de mar,

despojos de ti.

[Na 125]

Na 125 vou a dez
à hora. Alguém bateu: nem houve mossas:
um Audi GTI foi de viés
à berma e encalhou num limpa-fossas.

Prossigo e logo abrando: o camião
das obras do aldeamento, com gravilha,
avança lentamente. Até Olhão,
já sei, vai ser a mesma maravilha.

Depois, antes de Faro, é um mentecapto
que ronca em duas rodas seminais
e quase passa a ferro um artefacto
daqueles que sem carta estão legais.

(E agora isto... Bolas... Sim senhor:
o artefacto foi contra um tractor...)

O escorpião da sombra

Os dias vão cinzentos mas não é porque chove, ou porque as nuvens escondem o céu, ou porque a neblina se ergue das águas e se espalha nos campos e nas ruas da cidade.

quinta-feira, setembro 02, 2004

Andaluzia

Se fossemos água,
rumor da madrugada
erva fresca, uma rosa,
jardins ao entardecer,

neve de Inverno
Fogo de Verão,
a negra noite
a pálida estrela

Com que encanto, imaginas?
me lançaria[s] à conquista
da Alpujarra, de Granada
E da formosa Sevilha,

Por mor da desdita moura,
soberana
de coração frágil.

... para lá caminhamos



[Paisagem de Outono ao anoitecer] Vincent van Gogh, 1885

Não é ainda o Outono

Não é ainda o Outono. É um céu de cinza efémero, um leve azul a diluir a linha do horizonte, o verde das folhas do freixo e essa promessa de água a subir, vagarosa, das raízes. Depois, de novo, a luz. Uma luz de Verão: agora intensa, logo apaziguada. Sem pressas. Como se ao mundo, por instantes, fosse possível regressar uma ordem, um equilíbrio, um nome que tropeça ainda nas suas tão difíceis e exasperadas sílabas.

Manflowers


[Manflowers] Steve Oatway, Junk Art

O Pai

Interessante, o artigo de Pedro Strecht no Público de hoje. Para pais, mas obviamente que não apenas para estes.

Praga

Sigo, não persigo, teus passos na praça atulhada de pombos e crianças na cidade que nunca ri. Encharco-me metodicamente nas poças esquecidas pela chuva pesada que caiu toda a noite, na vã esperança que nelas te tenhas diluído e que dessa forma te possa recuperar, talvez ressuscitar naquilo que me é mais essencial. Consumo-me quando me aflora no espírito a ideia que te tenhas fundido noutras águas que te tornaram inacessível aos meus passos mais singelos...
Sobrevivo apenas nesses dias.

quarta-feira, setembro 01, 2004

Finda vida II

E então, subitamente, um dia, uma noite, já nem sei quando, sequer se nesta vida, deixei de sonhar contigo. Deixei de me imaginar nos teus braços, de sonhar os momentos a dois, os passeios na avenida, as leituras partilhadas, o contar das velhas piadas a que só tu achavas graça... Foi-se, tudo se foi. Com pena, refugiei-me dentro de mim mesmo, definhei na vã esperança que o notasses. Mas não, parecias imune ao sofrimento que me consumia as entranhas. Sentia-me capaz de tudo, menos de te dizer isso mesmo, e os anos passaram, ligeiros a princípio e arrastados mais tarde, cada vez mais lentos, insuportavelmente mais lentos.
Um dia tornámo-nos brancos, que é como quem diz translúcidos, sem pinta de sangue nas veias, no coração, no rosto. Foi assim desde que as crianças sairam de casa porque deixaram de ser crianças. Cabelos grisalhos, mãos pálidas, enrugadas, frias... geladas!... Arrepio-me por pensar nas tuas mãos geladas no teu leito de morte. Só então - desculpa-me a franqueza - pela primeira vez senti saudades tuas.