quinta-feira, dezembro 30, 2004

Ainda o velho poema islandês

Como ameaçado ontem, eis-nos com mais uma versão do velho poema islandês (ver post anterior). Trata-se, como seria de esperar, duma versão muito diferente, de entre um conjunto quase infinito de versões possíveis. Servimo-nos, em ambos os casos, de traduções inglesas encontradas aqui e aqui. Não desconhecemos a lição de Jorge Luis Borges sobre as kenningar (v. Obras Completas, Vol. I, pp. 381-395, ed. Teorema) - essas excessivas metáforas, ou «menções enigmáticas» que, no fundo, constituem «o primeiro deliberado gozo verbal de uma literatura instintiva». Nesta nova versão algumas kenningar estão mais à vista: uma delas, inclusivamente, aparece textualmente no índice de Borges incluído na História da Eternidade (op. cit.): «lume do mar», como metáfora de ouro. Não resistimos a uma rima final nem a dois falsos decassílabos nos antepenúltimo e último versos.


O ouro
é o fogo no mar,
o rasto da serpente,
a fonte da discórdia
entre os irmãos de sangue.
O aguaceiro
é o choro das nuvens,
a ruína das colheitas,
o flagelo do pastor.
O Gigante
que habita os penhascos,
amante da Deusa ignóbil,
é o tormento das mulheres.
Odhinn,
o mais velho dos pais
e príncipe de Asgard,
é o Senhor de Vallhalla.
Cavalgar
na célere jornada
é a alegria dos cavaleiros,
o esforço da montada.


[versão de J. C. Barros e Alexandre Domingues]

quarta-feira, dezembro 29, 2004

Fé er frænda róg ok flæðar viti

O Francisco deixou-nos aqui um poema em islandês antigo. E desapareceu. Claro que já começaram as reclamações... Bem: como se trata de um texto belíssimo, e enquanto as prometidas traduções não chegam, permitimo-nos cometer uma versão (muito livre, claro) do poema em causa (aliás: do fragmento, pois o que o Francisco nos deixou foi uma pequena parte dum poema bastante mais extenso). E como uma desgraça nunca vem só - amanhã faremos questão de trazer aqui uma nova versão deste belíssimo texto...

A riqueza
é o relâmpago na água
e o caminho da serpente,
a fonte da discórdia
entre os que se amam.
O aguaceiro
é o choro das nuvens:
dispersa os rebanhos
e arruina os celeiros
onde se guardam os fenos.
O Gigante
atormenta as mulheres
e o espírito dos declives:
a sua ira dirige-se aos seguidores
do Deus das sementeiras.
Mas
a presença poderosa de Odhinn
protege as colheitas: é ele
o Senhor da vastidão.
E cavalgar
é então a alegria dos homens
que fazem a jornada
mais céleres que o vento
a caminho dos campos.


[versão de José Carlos Barros]

[as nascentes]

Entre as árvores de julho e a sua sombra
entre os nenúfares e a torrente irrepetível do inverno de 1996
entre o céu e o mar nas manhãs onde o crepúsculo ousa regressar
à procura das últimas vozes
entre a cegueira e a obscuridade das páginas dos livros de poemas -
procuro-te como quem adormece com medo das aves

Depois do equinócio e das marcas da água no areal deserto
depois do silêncio demolidor das folhas do salgueiro
quando regressas de longe a uma pátria que não reconheces
depois da aluvião e da estranha abundância das bagas vermelhas
nas veredas iluminadas pela memória dos teus nomes
depois da tristeza dos campos lavrados do outro lado do vale
depois da rendição e da luz abandonada nos pátios
depois do amor -
procuro-te como quem sobe às nascentes com medo da água

terça-feira, dezembro 28, 2004

Natal

Um poema de Natal? Com aquele espírito da quadra, a neve, os pinheirinhos e tudo? Muito bem: podem lê-lo aqui, tirado daqui. (Os outros, só para quem comprar «os primeiros anos»...)

segunda-feira, dezembro 27, 2004

Personagem

Chamo-me Luísa. Sou uma personagem de ficção. Devem conhecer-me, pelo menos, do Primo Basílio. Mas sou também a drª Luísa Fragoso duma novela reles do Manuel Arouca, a Maria Luísa dum romance notável e esquecido de José Lins do Rego, a mulher do conto do Onésimo que saiu dos Açores na ilusão de que é possível fugir ao destino que o acaso nos ditou, a personagem obscura ou exaltante de um outro livro cujas páginas nunca te será dado leres. Já fui concubina e princesa, criada de servir, engenheira electrotécnica, assalariada rural no Alentejo. Já vivi no Iémen, numa cidadezinha da Bretanha rodeada por um bosque, em Angra do Heroísmo, em Portimão. Já fiz de tudo. Só nunca fiz de mim mesma. E por isso nunca soube o que era (de facto) acordar ou sentir o cheiro da terra molhada, ter frio, ter medo, amar, ser feliz. É verdade que já caminhei sobre o fogo, que já morri, que já ressuscitei, que já fui condenada ao degredo, que já conheci a glória, que já traí, que já dormi no deserto, que já fui heroína numa batalha em que os guerreiros mais corajosos acabaram por desertar. Mas fui sempre, senti sempre, por interposta pessoa. Por isso chego a pensar que trocaria tudo, sei lá, por um instante em que pudesse (de facto) sentir. Podia ser a dor, tudo bem. A dor que me trouxesse as lágrimas mais concretas. E que essas lágrimas me corressem na cara, sim, mesmo que então me descobrisse a mais desgraçada das mulheres à face da terra.

[EDP]

escrevo-te de novo à luz das velas
e por um instante temo que o nosso amor
não sobreviva a
uma falta de corrente

[Literatura]

O nosso amor, que deve tanto aos livros,
quantas vezes foi mais que um decassílabo?

sexta-feira, dezembro 24, 2004

Fado

Eu quando for grande queria ter assim no sapatinho uma «base política sólida»: 0.23% mais 0.28%. Ou seja: 0% se os manos Câmara Pereira subirem aos palcos.

quinta-feira, dezembro 23, 2004

Auto-estima

Os grandes eventos regressam ao Estádio do Algarve. O Farense e o Beira-Mar de Monte Gordo, no fim de semana passado, entraram em campo no Parque das Cidades não apenas para cumprir mais uma jornada da terceira divisão: também para calar os críticos, as carpideiras, os arautos da desgraça. O jogo foi movimentado, teve o colorido dos grandes eventos, dos grandes e decisivos acontecimentos. E teve golos: Vallone, Constantino, Pintassilgo e Chiquinho não fizeram a coisa por menos. Calem-se, pois, os críticos, as carpideiras, os arautos da desgraça: os grandes eventos regressam ao Estádio do Algarve; o estádio do Europeu aí está de novo, ao serviço da auto-estima, da Região e da Pátria.

terça-feira, dezembro 21, 2004

[Do mundo]

A cidreira adormecida numa cesta, a única, de quatro varas. Desse tempo. Tudo quanto eu conhecia do mundo e de mim.

segunda-feira, dezembro 20, 2004

[O ladrar dos cães]

O ladrar nos cães no meio da noite a caminho do largo. O cântaro na fonte, o bolso da camisa, a esferovite leve do inverno. A eternidade, quase.

Um mail recebido ontem

Vais-me desculpar: um poemazinho ou outro, lá de quando em vez, tudo bem. Mas isto começa a ser insuportável... Tantas coisas a acontecer em Portugal e no mundo, tantas coisas decisivas, fundamentais - e tu a dar-lhe com «os pássaros do outono», «as mãos das mulheres a mexer indiferentes na água fresca dos púcaros», «o silêncio das manhãs crescendo no interior dos retratos antigos»... Desculpa, mas não há pachorra... Não saberás que o sr. Jorge Nuno prepara a candidatura à Câmara do Porto, que Ianukovitch vai à TV expôr os seus argumentos, que a Câmara de Valongo entregou dezenas de diplomas aos frequentadores da acção de formação em Gestão de Tempo e Funções Parentais, que os trabalhadores do casino Estoril continuam em greve, que Santana e Portas assinaram um contrato de não-agressão, que o Benfica regressou às vitórias, que a Grande Área Metropolitana do Algarve abriu um concurso público de concepção do Hino do Algarve, que Sócrates anuncia o regresso da co-incineração, que o presidente da Câmara de Coimbra se manifestou preocupado com o retrocesso, que Bush foi considerado pela Time a personalidade do ano, que afinal os jipes não vão ter descontos nas portagens, que o primeiro ministro garante que não muda de opinião todos os meses? Por favor: regressa ao mundo, Zé Carlos. Dá-nos um sinal do teu regresso e deixa-te de merdas tipo a «ondulação dum sopro repetindo as mãos em cada sílaba» ou o diabo a quatro...

Um abraço, e as melhoras.

domingo, dezembro 19, 2004

[A noite]

Subir os degraus de casa tão devagar que a noite adormeça de pasmo as suas quatro luas.

sábado, dezembro 18, 2004

[Tarde]

A inúmera voz do amor autógrafa na tarde. A gravidade dos teus gestos demorando pura o peso do desejo leve sobre os ombros.

[A sombra]

Para dormir eu peço a paz das tuas mãos. Hábil a sombra desenha os pássaros do outono nos telhados vazios da cidade.

[A paixão]

A violência do encontro e da partida. A sede e o imprevisto, nomes e palavras sem retorno. A paixão e a tragédia, uns lábios claros.

sexta-feira, dezembro 17, 2004

[Nas casas]

Nas casas da encosta findavam pelo fim da manhã
os trabalhos domésticos. O calor poisava
nos armários e nas mesas como se tudo
fosse arder por dentro à visita inesperada
e pendular dum corpo que regressa
para impor no estio a ordem da paixão.
Recordas o rumor no degrau de cima
da escaleira do relógio velho, o esvoaçar
das moscas contra os vidros, um grito
pretérito que descia do cume dos incêndios
a pedir a deus um copo de água ou
uma lâmina nos pulsos. Como tudo
passa e tudo esquece à aproximação da primeira
sombra do freixo na margem do rio, recordas
ainda. Um freixo ou um corpo que retomem
a respiração dos primeiros dias do mundo,
os trabalhos domésticos contra o calor
da tarde, as mãos das mulheres a mexer
indiferentes na água fresca dos púcaros.

quinta-feira, dezembro 16, 2004

[A perfeição]

Eis a perfeição aos nomes só entregue. O verde duma árvore, o rumor da boca, o só vibrante começar do amor. O brilho da manhã poisando no infindável movimento das palavras.

[A terra]

Nada mais denso. A terra projectando a sombra no infinito do olhar. A súbita eclosão das vozes múltiplas do amor.

[O lume]

O lume, a flor da cal. O estranho movimento dos sentidos.

[Sem nome]

Desamparado o fluir das frases, o abandono fulvo das palavras, o silêncio das manhãs crescendo no interior dos retratos antigos. Sem nome é o dia de que falamos nas suas margens perfeitas.

[Migração]

Clandestina quase a migração das aves, é o que regressa às tuas mãos. O rumor de abril.

[A ondulação]

A ondulação dum sopro repetindo as mãos em cada sílaba. Obscuro ardendo no interior da morte o próprio lume liso da memória.

[Um grito]

Um grito em vez do círculo das águas. A memória dum sopro de líquen sobre o ar da pele. A perfumada prometida carta que não chega nunca.

terça-feira, dezembro 14, 2004

O primeiro dia em que se despiu

Uma nuvem de gases e poeira levanta-se na rua, não tarda que poise nos móveis da sala, no chão encerado do átrio, na mobília dos quartos do primeiro andar. Dona Fernanda vem à janela, o doutor Magalhães acaba de subir à varanda da casa do largo, há-de sentar-se na cadeirinha de lona, enfiar os pés descamados na bacia de porcelana com água das caldas santas. A camioneta da carreira sobe vagarosamente a rua cinco de outubro como se chegasse de uma viagem à roda do mundo: que sobressalto acrescentará hoje ao ruído sobressaltado do motor? Fernanda pressente

que será um dia diferente: como se tudo pudesse começar de novo. Levantou-se cedo, a luz ainda indecisa na colina. Desce ao salão, abre o louceiro de castanho, olha com minúcia, uma peça, depois outra, o serviço de jantar. Levantou-se cedo, não há uma nuvem entre a terra e o céu, o espinheiro da virgínia do toural ergue-se contra o céu de fins de setembro como se o mundo começasse a nascer com a manhã ainda indecisa. Olha da janela, desvia as cortinas e suas cornucópias vermelhas e azuis, a luz ainda indecisa. Como se alguém dissesse:

aqui uma árvore, aqui um muro alinhado, aqui o caminho do monte, aqui um tanque, aqui uma casa, aqui uma encosta de carvalhos, aqui um ribeiro e suas águas sesserigas, aqui uma pedra, aqui uma fonte: como se o mundo só então pudesse começar. Como se alguém dissesse: aqui uma pedra, aqui uma fonte, e agora a luz a descer a colina, a derramar-se no vale e na encosta de carvalhos, a descer o ribeiro e suas margens, a descer o caminho do monte. Como se tudo, sendo igual, pudesse ser diferente. Como se o seu próprio destino pudesse ser decidido de um modo diferente. Como se tudo pudesse começar, como se nada existisse entre a terra e o céu. Não há uma nuvem. Dona Fernanda sobe de novo, despe o roupão, a luz do seu corpo ilumina as paredes do quarto, a manhã indecisa a entrar pela janela virada ao nascente. Recorda

o primeiro dia em que se despiu diante de um homem. O engenheiro chegara em mil oitocentos e setenta e nove, passava os dias na serra com a brigada da floresta. À noite, depois do jantar, estendia as cartas topográficas na mesa da sala, os seus dedos finos, os seus modos galantes. Em fins de fevereiro começaram as primeiras plantações: dezenas de homens e mulheres sob as suas ordens, a desmatar a encosta, a abrir covas, os pinheiros minúsculos: nunca por aquelas bandas se vira uma árvore assim: os pinheiros minúsculos a desenhar uma nova paisagem. À noite, depois do jantar, o engenheiro estendia as cartas topográficas na mesa da sala, os seus modos galantes. A taberna fechava cedo, o engenheiro foi o primeiro hóspede da casa de pasto: só alguns anos depois a taberna se transformou em pensão. Dona Fernanda

recorda: nessa noite ficaram sozinhos na sala, as cartas topográficas estendidas na mesa, os seus dedos finos, os modos estrangeiros. Tinha quê? Dezasseis anos? O engenheiro olhou-a nos olhos, tocou-lhe os cabelos, os ombros, o rosto, era como se mais nada existisse no mundo para além dos seus dedos finos, os modos galantes. Recorda o primeiro dia em que se despiu diante de um homem. De súbito, no quarto muito escuro, a luz do seu corpo nu iluminou as paredes, o jarro com água, o livro de botânica, as velas de sebo, o lavatório, a pequena cómoda. De súbito, no quarto muito escuro: um incêndio. A luz do seu corpo. Tinha quê? Dezasseis anos? Hoje

será um dia diferente. Dona Fernanda escolhe um vestido de festa, é como se tudo pudesse começar de novo. Atrás do balcão corrido, arranjando os papéis, o livro de registos,

Luísa tem um sorriso rasgado, a saia quase à altura dos joelhos, um decote de furco, o cabelo apanhado num pregador colorido, vem de calafetar as janelas do primeiro andar com um pano humedecido. Atrás do balcão corrido, à espera,

Fernanda muda de sítio o livro de registos, as mãos nervosas. O desconhecido abre a porta da pensão, diz muito bom dia, poisa no chão encerado uma mala de carneira cheia de pó. É claro que há um quarto vago, claro que há um quarto para o senhor professor. Dona Fernanda recorda

o primeiro dia em que se despiu diante de um homem: a luz do seu corpo a iluminar as paredes do quarto, era impossível olhar de frente esse esplendor: um incêndio. O engenheiro cerrou os olhos, as mãos de súbito pelo corpo todo numa aflição, como se uma doença o atormentasse desde o princípio dos tempos. Gritou, saiu numa corrida, uma dor que se adivinhava à distância no escuro da noite. Nunca mais o viu. Na

manhã seguinte encontraram-no morto, suspenso de uma corda, no carvalho da colina da raia. Enforcado. Dizem que tinha os olhos queimados: a pele arroxeada, escamada, fendida, como se um incêndio houvesse lavrado a noite inteira no interior do seu corpo. Hoje

haveria de ser um dia diferente.

[O próprio corpo]

Só lembro o desencontro. Pouco acrescenta o amor quando a ignomínia, mais tarde, escurece o retrato nas dunas, o livro de botânica nas colinas da urze, as pedras do moinho depois da manhã. Posso chegar a tempo, apertar nas mãos o lume do desejo. Só lembro o desencontro, a neve e o vento a percorrer a casa como se o inverno chegasse e ninguém socorresse os últimos náufragos, os que perderam tudo, o amor, o próprio corpo, a nascente da água.

[O esquecimento (outro poema antigo)]

Os meus amigos que nasceram depois
do vinte e cinco de abril chegam a
pensar que a tortura do sono é não ter pedalada
para ficar na discoteca até às
cinco da manhã por falta
de pastilhas
e que uma falha na corrente
eléctrica a meio da noite é o que
melhor pode definir o
conceito de Sombra.

in A Poesia Está na Rua - 25º Aniversário 25 de Abril, INATEL e Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto

sexta-feira, dezembro 10, 2004

Amparo da memória

Ouve a voz que te ampara
e segura de encontro à parede débil do teu equilíbrio.
Ouve-a, àquela que te leva pela mão
na estrada semeada de poças de lama,
soturna, cabisbaixa, cambaleando
junto aos ciprestes que ladeiam o caminho.
.
Olha-a, não escondas os teus olhos plenos
de lágrimas, nem enxugues as gotas
que te escorrem pelo rosto.
Deixa-a recolher cada uma
e guardá-las num lugar sagrado
onde nem tu as encontrarás.
.
Porque te peço, esquece
as palavras que te disse e deixa
de desejar as que não te disse
para mais depressa banires da memória
cada traço de recordação que teimas
em trazer ainda dentro de ti.

Calar

Calar-te-ás antes do sofrimento chegar, durante o sofrimento e, depois, muito depois de este já ter terminado. Quem sabe, assim se consiga fazer com que nunca tenha existido sofrimento algum.

terça-feira, dezembro 07, 2004

7/12

Menina de Ipanema,
com a pesada pena da tua partida
deixas-me em desassossego.
.
Fecho-me em concha,
no fundo do mar,
até ao teu regresso.
.

resumo expresso...

O Governo caiu, o Sporting aproximou-se do Porto, o Porto perdeu, Pinto da Costa foi constituído arguido, o Porto deve ser eliminado esta noite da Liga dos Campeões e ainda sei fazer peixe ao sal. Se isto não são boas notícias, então não sei o que são.

Distâncias

Não é bem a tristeza por estares longe, mas a ausência de alegria por já teres estado mais perto.

(sem título)

sem assombro, sequer vestígios de remorso,
os teus dedos escorregam na maçaneta da porta e abandonam-na
sem se deter a rodá-la,
não lhe dás sequer tempo para mudar de temperatura.
.
fria,
a manhã cola-se ao vidro embaciado pelo meu respirar ofegante
no lado de fora da janela,
onde um pardal terminou a sua vida
enregelado, esta noite,
como as veias que sinto
dentro de mim.
.
não penso, ou melhor, penso um instante,
já é Dezembro outra vez... as miúdas...
tenho de me levantar,
ir às compras...

A via moderna

Há, na via moderna de acesso à Nova Democracia, apregoada por Jerónimo de Sousa no seu discurso de tomada de posse como secretário-geral do PCP, algo de bafiento e simultaneamente novo: as referências ao operariado, aos assalariados, à exploração dos trabalhadores pelos capitalistas desprovidos de valores em relação à classe operária... O espantoso é que tudo isto ainda foi prontamente aclamado por uma militante das bases que teve o seu momento de glória ao conseguir citar um discurso pronunciado por Álvaro Cunhal, se não me engano, na campanha para as legislativas de 82, que terminava com um redondo "viva o Marxismo, viva o Leninismo!".
Obviamente, tudo isto terá a sua graça se situado num contexto histórico, mas no Portugal e na Europa do séc. XXI representa o canto do cisne do comunismo (na Europa civilizada há muito este deu o seu último suspiro) e a chegada dos problemas que lhe andam associados. É que, esvaziado o lugar que este ocupava, os poucos que ainda com ele se identificam e identificavam ficam vazios de objectivos, à deriva, e facilmente caem nos extremismos de esquerda e de direita porque os opostos, como se sabe, facilmente se atraem. Não são os operários, nem os assalariados que me preocupam, como facilmente se perceberá, esses fizeram a sua transição suave a relativamente esclarecida para o socialismo de mercado e para a social-democracia. São os outros, aqueles a quem estes voltaram costas na sua luta de há vinte e trinta anos em busca da liberdade e que cresceram com as referências que agora encontram moribundas, que me preocupam. São os filhos dos operários, dos lutadores, dos explorados, dos assalariados de primeiro grau, esses, os maiores revoltados da nossa franja social. São esses, os filhos dos "outros" de outrora, que a exemplo do que se passa na Europa, alimentam as fileiras dos movimentos extremistas, quem me preocupa, pelo flagelo que podem representar na construção da - o termo afinal é correcto - nova democracia, naquilo em que este conceito, velho de três mil anos pode ser reinventado.

Tens dúvidas?

É claro que te amo; se não fosse assim, porque motivo ficaria abraçado a ti mais de dez minutos de cada vez que fazemos amor?

segunda-feira, dezembro 06, 2004

2-much

Quem Fá Lá Si Noé Gago.

domingo, dezembro 05, 2004

O céu

O inverno, nestas noites frias, com o céu de um azul muito escuro, carregado, livre, é como se nos aproximasse de nós próprios e nos confrontasse com as nossas dúvidas e indecisões, com as nossas perplexidades, com as nossas mais antigas e dolorosas incertezas.

Eleições

Cinha Jardim abandonou a Quinta das Celebridades antes do escrutínio. Mas garante que «não foi por temer as eleições». Sócrates que se cuide...

Gripe

Sou dum tempo em que a Pharmacia era uma instituição respeitável (e a gripe...). Hoje em dia a gente vai comprar uma aspirina e tropeça em cartazes de papelão com a Cinha Jardim a publicitar um anti-gripal...

sábado, dezembro 04, 2004

A lentidão

Tínhamos marcado um último encontro. Haveríamos de nos saber despedir de forma civilizada. Mas a coisa correu mal. Quer dizer: passámos duas horas sem trocar praticamente uma palavra. Com vagarosas lágrimas nos olhos. Desajeitados. Esboçando gestos lentos, cansados, magoados, tão próximos e já tão distantes um do outro no restaurante quase deserto. Despedimo-nos, enfim, sem saber muito bem que palavras se podem dizer quando, de súbito, nenhuma palavra do mundo parece fazer sentido.

E só então compreendi que o senhor sentado na mesa ao lado (esse que tinha chegado antes de nós e o empregado tratara cerimoniosamente por «mestre») era Manoel de Oliveira.

Fiquei em pânico. Temi que a nossa despedida, feita de momentos desconexos, de uma lentidão exasperante, pudesse ser aproveitada como material narrativo na sua cinematografia futura (não esqueço aquele sorriso enigmático quando cruzámos o olhar por um breve instante). E isso era o pior, depois de um tão desolado adeus, que eu imaginava que me pudesse acontecer.

sexta-feira, dezembro 03, 2004

Dois poemas de Jorge Sousa Braga

A sanguinária

Não foi por causa dela
que cercaram o jardim
de muros, com ameias.
Ela chama-se assim
porque a seiva é vermelha,
vermelha como o sangue
que corre nas tuas veias.


A espada de S. Jorge

Se porventura, um dia,
eu tivesse que me armar,
era esta, e só esta,
a espada que eu seria
capaz de empunhar.

in «Herbário», poemas de Jorge Sousa Braga
com desenhos de Cristina Valadas.
(Assírio & Alvim, col. Assirinha, 1999)

Uma carta antiga

Caro Zé Carlos: conforme combinado na gloriosa noite passada, envio-te o Herbário do Jorge. (...) Para mim fica já o prazer de dar-te a ler, em primeiríssima mão, este "horto deleitoso".
Um abraço do
Manuel Hermínio Monteiro

quinta-feira, dezembro 02, 2004

Parques, 1

Não parece má ideia começar a tratar da criação de áreas protegidas em Marte. Entretanto, talvez não fosse pior ver o que era possível ir fazendo com as nossas.

Parques, 2

Prevendo-se que as áreas protegidas a criar em Marte venham a ter «uma regulamentação semelhante à dos parques protegidos da Terra», há razões objectivas para temer o pior no planeta vermelho.

Despojamento

Andei em vários cercados recolhido,
dos crispados olhares do mundo
do ouro e das tiaras
do brilho dos diamantes
da riqueza das nações
.
Vibrei no esplendor dos versos
da poesia, dos campos, do trato
soberano dos sentimentos puros
que me incendiaram a alma
em demanda da harmonia que busco.
.
Não me queiram mal por isso,
o despojamento e o rigor do desapego
são a última coisa que me resta
depois do convencimento
de que o amor, essa luz,
.
não existe já no teu semblante
e é uma quimera que apenas
perdura na minha memória
como uma doce e gentil
promessa de glória.

Silêncio

Não te saberia dizer tudo o que me apetece. Nem porventura o que não me apetece. Não esta noite, não hoje Por vezes, como em várias ocasiões te referi, só devemos proferir palavras que consegam ser tão doces como o seria o próprio silêncio. Bem sei que não é isso que nos dizem normalmente os psicólogos e os técnicos da psique, mas o silêncio, até prova em contrário, não será igualmente o pior dos caminhos. Por isso, o desvalor ou o seu contrário, a valoração da conduta que cada uma das nossas atitudes assume face ao outro não pode ser hiperbolizada como por vezes o fazemos.
Já te referi bastas vezes aquela entrevista de Gabriel García Marquez, não aquela em que faz a apologia de Fidel Castro; refiro-me antes à outra onde menciona que não se devem pronunciar palavras, sejam elas quais forem, de raiva, de confronto, de discussão, sobretudo a quente. Se possível, devemos mesmo guardá-las dentro de nós e nunca as devemos pronunciar seja em que contexto for. Bem sei quão difícil isso é, e quão errado isso pode parecer à primeira vista. Bem sei que nem sempre foi assim entre nós. Mas hoje, e depois de hoje, amanhã, podemos ao menos tentar que assim seja? Tentar, apenas tentar...perceber que o outro entende e aceita.

O bombeiro de Londres

Por onde andará Peter, o bombeiro de Londres, que, sozinho e sem quaisquer conhecimentos extraordinários, reconstruiu completamente sozinho durante dois anos um Colin Archer e com ele navegou em solitário para Portugal? Já em Portugal, Peter conheceu uma sua conterrânea por quem se apaixonou e ela pelo seu modo de vida. Verificando que o mar a deixava infeliz, Peter decidiu vender a embarcação, sedentarizar-se, e seis meses depois constatou que não encontrara aquilo que buscara; uma não era já irremediavelmente sua e o coração da outra nunca fora.
Aceitando o seu destino, na última vez em que vi Peter, este tinha terminado de reconstruir o Stella Maris, um ketch em aço que foi recuperado das areias da Ria do Alvor e tinha de regressar a Inglaterra para resolver um problema de família. Saúde Peter, brave heart!

Amnésia

Nas minhas noites
há duas luas
não me digas que estou louco,
porque as vejo perfeitamente da janela
donde te escrevo, ou penso que escrevo, porque
me induzem a pensar assim as dezenas de folhas rasgadas,
em branco,
que todas as manhãs apanho debaixo do parapeito,
no canteiro das rosas secas.
Não é loucura, é amnésia...
como é boa esta amnésia de ti.

Talvez seja tarde

O vento de novembro deixa nos telhados uma espécie de magoada incerteza.

O desejo

Não voltarás a dividir com o medo essa estranha forma de júbilo, esse inesperado ardor que regressa de onde nem suspeitavas que alguém se recolhesse do frio ou afastasse com as mãos a tempestade.

quarta-feira, dezembro 01, 2004

Política

Estávamos quê? Em finais dos anos setenta, inícios dos anos oitenta. O congresso da JSD haveria necessariamente de ficar marcado para sempre nas nossas vidas: porque todos os nossos sonhos têm um começo, e este começava nesse dia: em Montechoro, no Algarve (num hotel cuja envolvente - anárquica, de estaleiro de obras -, enfim, não condizia muito com a nossa ideia de futuro; mas também isso, claro, haveríamos de mudar).

Logo no balcão das inscrições, nas conversas de circunstância antes ainda do começo dos trabalhos, alguma coisa nos aproximou: e no intervalo para o café, ao fim da manhã, eu e C. M. discutíamos já as teses, os princípios de actuação, as propostas de orientação política. Abdicámos do almoço. A uma mesa baixa do átrio do segundo piso, junto aos elevadores, esboçámos a moção de estratégia. E lembro-me de, entusiasmado, a meio da redacção, dizer ao C. M. que os nossos sonhos não tinham limite no horizonte visível (nessa altura usávamos expressões grandiloquentes: «quando formos escolhidos para servir o País...»).

Concluímos a moção de estratégia muito tarde da noite, depois de vários percalços (a discordância, por exemplo, de um companheiro do Porto cujo nome, desde que o autocarro nos levara ao hotel e fomos apresentados, me fascinara pelo equilíbrio e por um marcado rigor: duas palavras, ambas começadas por R, ambas com três letras e uma ténue, fascinante aliteração).

A nossa moção foi indecentemente chumbada em escrutínio secreto. Custou-nos, é óbvio. Mas nós estávamos do lado do sonho. Era, portanto, uma questão de tempo. E o tempo jogava a nosso favor.

A verdade é que nunca mais nos encontrámos.. Nunca mais ouvi o seu nome. Nunca mais. Penso muitas vezes nele. Na sua alegria. No seu entusiasmo. Na sua disponibilidade. No destino que nos estava destinado. Nos sonhos que, por um momento, desenhámos juntos: num tempo em que nos defendíamos na certeza de que o futuro estava do lado dos sonhos que sonhávamos.

Às vezes penso que C. M. talvez tenha comprado a quinta no Alentejo ou a casa em Trás-os-Montes, junto ao rio, de que falava tantas vezes. E fico feliz. Mas o mais certo é que continue ainda enredado nesse labirinto de sonhos e que, como eu, seja agora um triste e desiludido técnico superior com requerimentos a pedir licença sem vencimento, perdido na ilusão de que é possível afastar-se do mundo, e ficar assim, fora do mundo, a tratar das amendoeiras, do escarificador, da tijoleira das açoteias, dos albricoques, dos pomares de citrinos...