domingo, fevereiro 29, 2004

Os amigos

Os amigos é no Inverno que regressam. Para partilhar o lume e ajudar a cortar a lenha e a arrumá-la no telheiro. Para afastar o vento e a tempestade. Para garantir que a noite não desce sobre os pátios mais que a sua própria sombra.

sexta-feira, fevereiro 27, 2004

Nada de novo

Hoje de manhã, na Assembleia da República, repetiram-se os argumentos que, adivinha-se, continuarão a ser repisados até à exaustão: o PS responsabiliza o Governo pela recessão económica do país; o Governo responsabiliza o PS pelo estado calamitoso em que deixou as finanças públicas.
Apresentam argumentos tão convincentes que há quem comece a acreditar que ambos têm razão.

quinta-feira, fevereiro 26, 2004

Um congresso no Barroso

[a visita de campo]

O congressista de Santo Tirso não resiste a
insurgir-se contra a ignorância e a falta de cultura
de um povo que substitui o castanho por caixilhos
de alumínio e o colmo por telha marselhesa.
Fala em voz alta erguendo as golas do sobretudo e
quase tropeçando na calçada irregular: um destes
dias não há especificidade que nos valha, tradição
que permaneça. O vigário João Dias de Moura terá
pisado estas mesmas pedras com motivações
diversas a caminho da casa paroquial nos primeiros
dias de Março de 1758. Satisfazendo a ordem
da Corte do munto Reverendo Senhor Doutor Bento
de Carvalho e Faria, Vigário Geral no espiritual e
temporal, juiz dos residuos e casamentos,
recolhe-se à tábua do escano a responder
ao inquérito. Como é possível que alguém possa
querer saber deste fim do mundo, e incomodá-lo
com despropositadas indagações sobre o
orago e as irmandades, e se tem conventos e
hospital, e se a feira é franca ou cativa, e se tem ou
teve cousas ou pessoas dignas de memória?
Contendo-se, apurando a caligrafia, sempre dirá
que a freguesia se localiza em setio munto alto e de
todas as mais partes cercada de montes ásperos
em os quais assiste neve munta parte do anno.
Que a terra hé pobre e que vivem os avitadores
della bastantemente vexados por causa do pouco
rendimento e rigorosos frios. E que da cidade de
Lisboa («ouço dizer, mas nunca aí passei e nem sei
de certo») dista sessenta e seis legoas.
Isto conta o dr. Magalhães aos que resistem
ao frio que começa a cortar como facas no
descampado do largo do meio da aldeia.
Mas o congressista de Santo Tirso, fechado
no autocarro e esfregando desesperadamente
as mãos, já não ouve a prédica e está cheio de
pressa de arrancar dali e beber um chá de cidreira
no bar da estalagem de Carvalhelhos.

quarta-feira, fevereiro 25, 2004

As águas

As águas, o seu rumor durante a noite. As águas do Verão e as águas do Inverno. A água da nascente da mina, a água dos canais dos campos das Trindades, a água das levadas, a água das presas, a água das tornas, as águas de lima, as águas sesserigas, a água de herdeiros, a água do povo.

segunda-feira, fevereiro 23, 2004

Os milagres

No fim da manhã, quando a névoa sobe a encosta e começa a erguer-se nas cumeadas, antes do cinzento do inverno se espalhar de novo de um a outro lado do vale, há um instante breve em que o céu se descobre e o azul e o verde quase se confundem.

A noite

Como numa corrida de estafetas, a manhã começa com os testemunhos que a noite lhe transmite: com as suas águas e as suas sombras, com as suas luzes e os seus rumores.

domingo, fevereiro 22, 2004

O frio e as palavras que o definem

umpoucomaisdesul partiu em direcção ao Norte. Oitocentos quilómetros mais tarde parou em Terras do Barroso. Depois do jantar, o pára-brisas do carro tinha dois centímetros de gelo. De manhã não havia água: a água, durante a noite, congelou nos canos. Agora começou a nevar e as mãos permanecem engaranhadas. E ter as mãos engaranhadas é uma justificação tão boa como qualquer outra para não actualizar o blogue.

sexta-feira, fevereiro 20, 2004

Antes de partir

Sem lua, a copa das árvores mal se recorta contra o céu. É preciso habituar o olhar, não ter pressa, ficar durante muito tempo a olhá-las até a sombra ser quase diáfana. E então, aos poucos, identificar uma árvore de entre o conjunto do pomar, e depois um tronco, e depois um ramo, e depois uma folha, e depois uma flor. Do outro lado, subindo à varanda, adivinha-se o mar. Nenhuma luz, nenhum espelho nos devolve essas águas, esse sobressalto sem nome do levante. Mas o rumor do sudeste nasce do fundo da terra e propaga-se em ondas que é possí­vel recolher deixando as mãos assim por instantes, abertas em concha, à espera das coisas que a noite reconhece como suas.

Quando em Circe

Quando em Circe de súbito encontraste
Essa baía meiga onde aportar
Tu, ulisses, urdidor de ventos e caminhos,
Que ilha por ilha em vão buscaste
Ítaca, a misteriosa, sobre o mar,
Festejaste com mel, canções e vinhos
Essas luas altas que beijaram o teu navio;
E a brisa difluindo veio ver
A flor estranha dos deuses em cuja haste
Cresceste para o sol, por esse rio
Que navegaste ao doce anoitecer
Quando Circe de súbito encontraste.

[Fernando Cabrita: O Sul - poemas algarvios]

quarta-feira, fevereiro 18, 2004

A lentidão

Vai assim o Inverno: sem vento, sem chuva, sem frio, como se fosse uma espécie de Primavera precária e envergonhada. Mas o pior é esta luz sem contrastes. Uma luz que obscurece ligeiramente a cal e não chega a marcar no chão a sombra dos muros. Que quase não separa o céu e a linha do horizonte. Que poisa indiferentemente sobre as coisas e as dilui numa espécie de névoa onde a nenhuma delas é permitido um nome ou uma identidade. Que deixa as pessoas ausentes de si mesmas, como se estivessem doentes sem o saberem, ou como se estivessem adormecidas mesmo quando correm na rua atrás do autocarro.

terça-feira, fevereiro 17, 2004

Riscos

Há quem falte aos treinos. E há quem corra tanto nos treinos que se arrisca a cair desamparado junto à linha de partida antes mesmo de verdadeiramente a corrida começar.

É a vida

O julgamento de Aveiro terminou com a absolvição dos arguidos no processo de aborto clandestino. O líder parlamentar do PSD, partido que votará contra os projectos da oposição que visam a alteração da lei que criminaliza o aborto, disse ter recebido a decisão judicial «com satisfação», acrescentando que «ninguém é insensível ao risco de aplicar uma pena de privação de liberdade por uma situação que é em si mesma penalizadora».

Notícias

O Pedro Lomba deixa a blogosfera. O Pedro Mexia passará a actualizar o blogue de 15 em 15 dias.
Não são boas notícias.

segunda-feira, fevereiro 16, 2004

O índice ETM

António Cartaxo, presidente do Sindicato dos Profissionais de Polícia, manifesta-se a favor de alguma tolerância para com situações de infracção de trânsito, que de resto «é comum em muitas localidades».
Ora eu pensava que aos agentes da autoridade não competia ser tolerante nem intolerante, mas muito simplesmente fazer cumprir a lei. Por isso nunca discuti com um polícia nas quatro ou cinco vezes em que fui autuado.
Pois fico agora a saber que a polícia tem poder discricionário, e que ser multado pode ter mais a ver com o Estado de Tolerância Momentâneo do agente do que propriamente com as normas legais.
Talvez não fosse mau rever os manuais do código da estrada. Sobre estacionamento, por exemplo, proponho a seguinte redacção: «estacionar em cima do passeio é proibido, desde que a autoridade não esteja disponível para manifestar alguma tolerância».

domingo, fevereiro 15, 2004

A vida toda

nada mais procuro: o lugar
no escano em redor do fogo
as bagas do lódão
a flor da urze

Fevereiro

a meio da tarde
a flor da amendoeira cai
mais devagar
que a tarde

Depois do levante

em fevereiro
a luz e o lume
acordam
de mãos dadas

Memória do deserto

se ao menos
pudéssemos
morrer de sede

O Inverno

a casa
é também o lume
onde o inverno tropeça
ao subir os degraus
com medo
do escuro

Poema

eu dava tudo
por um
decassílabo

É assim que se começa

A Luís Delgado (cf. DN, 6ª feira) não basta que uma lei proíba os condutores de conduzir sob o efeito do álcool. Não basta, sequer, que a venda de bebidas alcoólicas nas auto-estradas seja proibida. É preciso que exista «uma punição acrescida para quem tenha bebidas alcoólicas nas viaturas». Porquê? «Para se evitar a esperteza nacional dos que se abastecem antes de entrar numa auto-estrada»...
Ora Luís Delgado não está a ver bem a coisa. É que, seguindo o raciocínio, é necessário proibir igualmente a venda de bebidas alcoólicas nos restaurantes das estradas nacionais: exactamente para se evitar «a esperteza nacional» dos que saem da auto-estrada nas imediações da Mealhada, pedem uma dose de leitão e dois litros de vinho, e regressam meia hora depois.
E, já agora, é necessária também «uma punição acrescida» para quem tenha bebidas em casa: exactamente para se evitar «a esperteza nacional» dos que bebem em casa antes de se meterem à auto-estrada.
Isto, claro, anda tudo ligado: o sr. primeiro-ministro já anunciou a possibilidade de legislar no sentido de responsabilizar quem adoece. O discurso sobre os toxicodependentes que não seguiram os bons conselhos da família e dos amigos, e que portanto deverão perder direitos no acesso aos cuidados públicos de saúde, inscreve-se no mesmo ímpeto de retrocesso civilizacional que devia deixar-nos preocupados.

Mosaicos a um lado, rodapés a outro

Eu devo ser proibido de fumar num espaço fechado em que incomode o sr. Luís Delgado ou qualquer outro não-fumador. Eu devo ser proibido de conduzir alcoolizado, colocando em risco a vida de terceiros. O sr. Luís Delgado, no entanto, não deve poder proibir-me de fumar. O sr. Luís Delgado, no entanto, não deve poder proibir-me de levar uma garrafa de medronho de Monchique dentro do carro, no próximo fim de semana, quando entrar na auto-estrada do Sul a caminho de Trás-os-Montes.

Os albricoques

Não deixa de ser curioso que venha exactamente da esquerda este incómodo pelos que resistem a um programa de proibições que vai acabar, não tarda, na impossibilidade de se comer um albricoque colhido directamente da árvore sem a supervisão da Comunidade Europeia ou sem o carimbo de visto prévio de um qualquer organismo presidido pelo sr. Luís Delgado...

sábado, fevereiro 14, 2004

A partida

[Granja, 1970]

São poucas as palavras

no mapa da europa não cabem os
lugares da infância
não tarda que a luz amanheça e se
aproxime do pátio

As mulheres da casa acendem o
lume sem o peso das lágrimas
enchem os cântaros com
água de nascente
misturam nos púcaros o
sobressaltado aroma da urze

Um homem afasta-se
nunca os caminhos do largo
foram tão difíceis
uma fronteira é o lugar que separa a
fidelidade da
sua própria sombra

não tarda que a luz amanheça
mais pobre

sexta-feira, fevereiro 13, 2004

Última estação

De que lado vem a tempestade
quando as folhas do negrilho
uma a uma
se desprendem dos seus ramos velhos
e o escorpião do medo se
acolhe em segredo ao
que ficar da luz de setembro
para prolongar
a sede

quinta-feira, fevereiro 12, 2004

As plantas de interior

Regressou tarde e compreendeu que nada já podia
pertencer-lhe: a abóbada do vale, a linha
sinuosa do talvegue, os campos alagados
de novembro, os amieiros a estender pelo fim da
tarde a sua inúmera sombra nas encostas
da umbria. Por isso mesmo, para que o fio do
horizonte ou um negrilho não pudessem
conceder-lhe, chegando-se ao alpendre ou à
pedra da escaleira, inadvertidamente,
nenhuma das imagens desse tempo, fechou um dia
a cancela do pátio e mandou subir os seus muros.
Que às águas do universo não seja dado
agora moverem-se para além dos pequenos
vasos e dos indecisos caules
das plantas amestradas: as arálias, a flor
de inverno das azáleas, o veneno dissimulado
do loendro, as araucárias de Norfolk sem a
memória do vento ou da estação das chuvas.

Anti-americanismo quê?

Ó Francisco, por amor de Deus: se, suponhamos, a Ruth Marlene mostrasse a mamoca no intervalo da final da Taça, achas que alguém ia pedir à Assembleia da República para abrir um inquérito?

quarta-feira, fevereiro 11, 2004

Pois não parece

João Soares considera que «a questão da liderança do PS deve colocar-se no final deste ano, após o PS sair vitorioso das eleições europeias e regionais». Divulgada no mesmo dia, quase encadeada, há qualquer coisa de estranho na notícia de que «os portugueses são os mais pessimistas da União Europeia»...

Também não exageremos

Na convenção do Compromisso Portugal, António Borges explicou que «o problema número um da produtividade em Portugal reside no nível de gestão», enquanto que Jorge Armindo, presidente da Portucel, sublinhou a necessidade de empresários e gestores assumirem as suas responsabilidades, até porque «a ineficiência do Estado serve muitas vezes para justificar a ineficiência dos gestores». Tudo muito bem. Mas neste contexto parece claramente excessiva a posição do presidente do BPI ao defender a liberalização total do despedimento colectivo e individual. Que diabo: a possibilidade de despedimento de gestores e empresários está dependente de alterações assim tão radicais das leis laborais?...

terça-feira, fevereiro 10, 2004

Tinham saído todos

Não perguntas nem respondes. Tinham saído
todos, levavam para sempre os livros
e os discos como quem partilha o espólio
dum naufrágio, garrafas vazias, cartas
de jogar. Um deles olhou ainda por instantes
o que ficava no espelho de sombra
da parede. É tão difícil a renúncia, o logro,
o exílio. Lá fora a noite convidava
ao delírio, não custa inventar
motivos que justifiquem a traição.

O desenho da paisagem

De muito longe vem este desenho, esta caligrafia de pequenos nomes quase adormecidos no pátio: da agra fora das argilas, do moinho da margem, dos lugares do negrilho e do choupo, dos muros, dos canais de rega, do regadio conforme a aluvião. Como em casa os lugares da mesa, da cama, do cântaro com água.

A memória dos amigos que morreram

É então que o inverno se afasta da própria sombra. Como se a fidelidade fosse o contrário da tristeza e o inverno se afastasse vagarosamente, antes da neve, da própria sombra.

Tudo o que se perde

Os amigos dividiam com a noite esse excesso de peso que o coração, de outro modo, abandonaria ao sobressalto da idade, ao medo de morrer afogado nos pátios interiores. Como se a luz sobreviesse aos meses mais frios.

A morte

Descer a pique até ao torpor e à ignomínia. Nos dias tocados de silêncio. Onde a morte e o que se move em gestos e música tropeça, por igual, num rosto de criança imprevisível.

Província

O enxofre dos pinheiros, os negrilhos em abril a recortar as suas folhas minúsculas para os cadernos de campo dos botânicos, as cartas do estrangeiro a traduzir a luz em caligrafias difíceis. Anoitece. Os automóveis repetem no asfalto o óleo das fábricas longínquas.

O futuro

Deixavam cedo as últimas casas e metiam-se
aos atalhos, às veredas do campo antes
do sol. Quase em segredo, quem os via da janela
corria à varanda, dava-lhes cigarros
e água, lenços bordados. Era já tarde que
paravam e finalmente se olhavam
nos olhos frios. Apertavam as mãos. Dividiam
saudações autógrafas como se o futuro
pudesse ruir a qualquer
instante, definitivo e sem aviso.

segunda-feira, fevereiro 09, 2004

Pelo sonho é que vamos

Não é ilegítimo sonhar: não é ilegítimo pensar que poderemos vir a ter Santana Lopes a presidir à República, Alberto João Jardim à Assembleia da República, Jorge Coelho ao Governo, Manuel Maria Carrilho à Câmara Municipal de Lisboa, Valentim Loureiro à Liga de Clubes (cargo vitalício) e Gilberto Madaíl à Federação Portuguesa de Futebol (idem). Mais afastada parece a hipótese de Avelino Ferreira Torres presidir à Associação Nacional de Municípios Portugueses. Mas nunca se sabe. Não é ilegítimo sonhar.

domingo, fevereiro 08, 2004

[Declaração de amor dum congressista americano]

se me mostrares o teu seio
eu mudo
a legislação

[Fragmento de uma versão rasurada (c. 1578)]

amor
é fogo que não tarda há-de esmorecer

[Sexo e iconografia]

o capuchinho vermelho
já deu o
que tinha a dar

sexta-feira, fevereiro 06, 2004

Histórias da vida moderna (2)

O mundo rural: O finalista de antropologia, fascinado com as imagens de uma ruralidade intacta, saiu do autocarro e aproximou-se logo da senhora que fazia malha num banco de pedra junto ao tanque do meio da aldeia. Puxou do caderno de campo e perguntou se aquilo era um ponto antigo; e se estava a começar um xaile ou algum traje tradicional. A velha olhou-o devagar, como se não compreendesse bem, e respondeu que nem uma coisa nem outra. Que o neto tinha comprado um computador e que lhe estava apenas a fazer «uma capinha para o rato».

quinta-feira, fevereiro 05, 2004

É pra que saibam

O senhor Presidente da República portuguesa discursou na Universidade de Alesund no encerramento de um seminário empresarial. E explicou aos noruegueses, roídos de inveja e muito lestos a tirar notas do ensinamento, que «uma economia competitiva não é a que se baseia em baixos salários mas sim a que dispõe de um sistema produtivo moderno, inovador e tecnologicamente avançado, capaz de produzir bens e serviços de qualidade e valorizados nos mercados internacionais».

Histórias da vida moderna

1. O médico olhou o monitor com desalento e telefonou para o departamento de informática, já levemente irritado, a perguntar quando é que lhe vinham resolver os problemas do vírus.

2. A senhora desistiu a meio da primeira lição do curso de introdução aos computadores realizado no âmbito do processo de modernização da administração pública. De nada valeram os apelos e as palavras de incentivo do responsável técnico. Ela insistia que já não tinha cabeça nem mão para estas coisas. Que era do tempo em que só havia dois ratos: o rato da cidade e o rato do campo.

3. Era uma declaração de amor. Do João para a Fernanda. Enviada por mail. Mas o João, com as tremuras da paixão, enganou-se no endereço e a mensagem foi parar ao computador do Fernando. Fernando, felicíssimo, respondeu-lhe de imediato, a dizer que sentia o mesmo por ele, embora lhe tivesse sempre faltado coragem para o confessar.

quarta-feira, fevereiro 04, 2004

Ainda o futebol

Talvez alguém ainda se recorde do velho Norte Desportivo. Era um fascínio. Saíamos dum jogo de futebol e pouco tempo depois o jornal já estava à venda em quiosques, cafés, cervejarias, com os resultados e os comentários da jornada que mal findara. Era difícil compreender aquela eficácia, sobretudo num tempo em que não havia telemóveis nem computadores, quanto mais internet... O tio do meu amigo JP era redactor do Norte Desportivo. Certo dia foi-lhe distribuído o relato de um jogo do Farense, no S. Luís. Claro que não vinha de escantilhão por aí abaixo para fazer a crónica da partida... Tinha um contacto no Algarve. E aos cinco minutos de jogo lá estava ele a telefonar dum café nas imediações do estádio a dar a constituição das equipas e as primeiras impressões tácticas. Ao intervalo telefonava-lhe de novo. E no fim do jogo, ou com a partida quase no fim, corria mais uma vez ao café a ditar-lhe o resultado pela rede fixa dos CTT, quando o texto já estava quase pronto a entrar nas rotativas... Nessa tarde, no Porto, fazia um calor de rachar. Na redacção do jornal, o tio do meu amigo JP, sentado em frente à máquina de escrever, suava a maldizer a soalheira e a hora de fecho do Norte Desportivo, imaginando a leve brisa das praias algarvias nesse domingo escaldante de Junho. Mas a crónica saiu limpinha. Começava assim: «No Estádio de S. Luís, em Faro, numa tarde de intensa canícula, sob um sol escaldante...» Acontece que choveu do princípio ao fim do jogo. Uma daquelas trovoadas de Verão que acabou por se constituir como nota principal duma partida disputada num rectângulo de lama e relva levantada, e que o seu colaborador, no vórtice de relatar desmarcações e atitudes defensivas, se esqueceu de referenciar. Claro que o tio do meu amigo JP só soube disso mais tarde, já depois de a edição do Norte Desportivo estar impressa e milhares de pessoas terem lido a crónica de um jogo disputado num suposto dia de sol na cidade de Faro em que choveu como não há memória desde Noé.

terça-feira, fevereiro 03, 2004

O cerne da questão

O problema, diz um alto dirigente de um dos clubes em confronto no domingo à noite, é que «o fole não estava montado». Se estivesse, algumas das cadeiras arremessadas da bancada sobre a zona de acesso aos balneários não teriam acertado na cabeça do árbitro auxiliar nem colocado em risco a integridade física de outros intervenientes. Sempre protegia.
Ora este, bem vistas as coisas, é o cerne da questão: o fole...

Faca na Liga

A propósito das ocorrências no final do Guimarães-Boavista, um alto dirigente da Liga de Clubes explicou que não se passou nada de especialmente grave; que, enfim, aquilo foi lamentável «sobretudo pela imagem que deu».
Ora nem mais...

domingo, fevereiro 01, 2004

O deserto; a noite

Maior que o medo de nos perdermos
é o medo
de nos encontrarmos.

Uma mente brilhante

O futebol português é um universo demasiado pequeno para o génio de José Mourinho. O futebol português não merece José Mourinho. José Mourinho não cabe nas fronteiras estreitas e asfixiantes de um país onde teve a desdita de nascer. Portugal não merece José Mourinho. Os jogadores do F. C. Porto não merecem José Mourinho. José Mourinho, estrela de outra constelação, foi concebido para projectos mais grandiosos e horizontes mais vastos. Há-de haver um tempo em que o dez de Junho seja o «Dia de Camões, de Mourinho e das Comunidades Portuguesas». Se Camões ainda for lembrado e a Pátria não ensandecer.