quinta-feira, fevereiro 26, 2004

Um congresso no Barroso

[a visita de campo]

O congressista de Santo Tirso não resiste a
insurgir-se contra a ignorância e a falta de cultura
de um povo que substitui o castanho por caixilhos
de alumínio e o colmo por telha marselhesa.
Fala em voz alta erguendo as golas do sobretudo e
quase tropeçando na calçada irregular: um destes
dias não há especificidade que nos valha, tradição
que permaneça. O vigário João Dias de Moura terá
pisado estas mesmas pedras com motivações
diversas a caminho da casa paroquial nos primeiros
dias de Março de 1758. Satisfazendo a ordem
da Corte do munto Reverendo Senhor Doutor Bento
de Carvalho e Faria, Vigário Geral no espiritual e
temporal, juiz dos residuos e casamentos,
recolhe-se à tábua do escano a responder
ao inquérito. Como é possível que alguém possa
querer saber deste fim do mundo, e incomodá-lo
com despropositadas indagações sobre o
orago e as irmandades, e se tem conventos e
hospital, e se a feira é franca ou cativa, e se tem ou
teve cousas ou pessoas dignas de memória?
Contendo-se, apurando a caligrafia, sempre dirá
que a freguesia se localiza em setio munto alto e de
todas as mais partes cercada de montes ásperos
em os quais assiste neve munta parte do anno.
Que a terra hé pobre e que vivem os avitadores
della bastantemente vexados por causa do pouco
rendimento e rigorosos frios. E que da cidade de
Lisboa («ouço dizer, mas nunca aí passei e nem sei
de certo») dista sessenta e seis legoas.
Isto conta o dr. Magalhães aos que resistem
ao frio que começa a cortar como facas no
descampado do largo do meio da aldeia.
Mas o congressista de Santo Tirso, fechado
no autocarro e esfregando desesperadamente
as mãos, já não ouve a prédica e está cheio de
pressa de arrancar dali e beber um chá de cidreira
no bar da estalagem de Carvalhelhos.