quinta-feira, junho 30, 2005

Mar Adentro II

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Y en la ingravidez del fondo
donde se cumplen los sueños
se juntan dos voluntades
para cumplir un deseo.
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Ramón Sampedro, Cartas desde el Infierno
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Mar Adentro

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Después de tres meses de deambular [...], buscando el equilibrio perdido, pasa el tiempo y tomas conciencia de que no puedes encontrarlo. Nunca jamás. Ni puedes morirte, ni volver atrás".
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Ramón Sampedro, Cartas desde el Infierno
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terça-feira, junho 28, 2005

(De)composição 24/7

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Do alto.
A estridência de um grito
o som de um animal ferido
o ensurdecedor silêncio do sal
uma mulher de joelhos
com o rosto escondido nas mãos
os fragmentos do coração
espalhados
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um farrapo
em decomposição na terra quente
de Junho
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sexta-feira, junho 24, 2005

O Decano

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Este ano decidi cortar com o futebol. Todo!? - perguntará o leitor - não acreditando nesta minha boa intenção, no que fará, obviamente, muito bem. Claro que não. O futebol é daquelas disciplinas que nos está no sangue, excepção e honra seja feita àqueles que por razões hormonais são imunes ao fenómeno. Mas dizia, decidi cortar com o futebol porque me fartei dos apitos dourados, dos campeonatos sem mérito, da trama, da artimanha e da pouca clareza da definição do mérito ou honra desportiva.
Então, em absoluto desespero de causa, virei-me para o campeonato espanhol e comecei a acompanhar com alguma regularidade o percurso das equipas de Sevilha, na primeira divisão, e do Recreativo de Huelva na segunda divisão, acalentando relativamente a este último a secreta esperança que regressasse ao convívio dos grandes, permitindo-me assim ver bom futebol de quinze em quinze dias, a apenas cem quilómetros de casa, sem portagens e sem filas de trânsito de permeio, por uns meros duzentos euros anuais.
E assim foi, ao longo de 40 jornadas, todas as segundas-feiras era dia de ver as incidências da jornada no As e no Marca, mas na ponta final do campeonato, o Recreativo (treinado pelo veterano da selecção espanhola e do Atlético de Madrid - Quique) escorregou e concedeu dois empates fatais que o atiraram para a quinta posição, permitindo o triunfo no campeonato ao rival Cádiz, que assim ascende à primeira divisão acompanhado do Celta de Vigo e do Alavés. Uma pena, mas foi justo, segundo relatou a imprensa. Valha-nos isso, que não é pouco. Enfim, para o ano há mais.
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Tempo IV

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No inferno dos minutos passados
falta-nos o tempo
para recuperar o tempo perdido
e tranquilizar os ossos

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quinta-feira, junho 23, 2005

Longe demais

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Sei que estou fodido
quando nada do que me rodeia
é já meu
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Logicamente...

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Como esperado, a Comissão Europeia votou a adopção do mecanismo de procedimento por défice excessivo contra Portugal. Tal visa directamente condenar as medidas inapropriadas adoptadas pelos Governos PSD/PP para combater o défice ao longo dos últimos três anos. Tal seria normal e razoável, não se desse a pequena coincidência de um desses governos ter sido chefiado pelo actual presidente da Comissão Europeia...
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terça-feira, junho 21, 2005

Equinócio


E.
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A tua casa astrológica
movida pelo fogo
energia oculta
no firmamento
onde rodopio
em redor do teu calor
truculento
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O princípio


E.
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Ouvir
o silêncio
no meio da multidão
enraivecida pelo sangue
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Escutar
o crepitar das labaredas
no meio da canícula estival
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Devagar,
divagar sobre a criação do mundo
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segunda-feira, junho 20, 2005

Pétalas da cidade sonhada


E.
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Atravessar o amor
na translúcida visão violeta
de uma palavra
dita com violência
junto ao núcleo
queimado da alma
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Citizen Kane


Orson Wells
in O Terceiro Homen,
Mark Weinberg, acrílico sobre lona
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E há, finalmente, a presença do Terceiro Homem na Andaluzia. Aquele que igualmente se apaixonou por Espanha, que, como Hemingway, amou os touros e as touradas, se fez amigo pessoal de um dos maiores matadores do país vizinho - António Ordoñez - aquele que, depois de morrer, pediu para que as suas cinzas fossem espalhadas em terras andaluzas, perto de Ronda, na finca de seu amigo. Porque um homem não é de onde nasce mas de onde as suas cinzas permanecem, o Citizen Kane, a despeito da sua obra universal, é Andaluz.
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O homem de cabeça entre os joelhos

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o tempo
tem a especial peri
gosidade
de apagar palavras
e
fazer mor
rer quem ama co
mo se o fa
tal Sul fos
se um caminho de resignação
para trás
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Álvaro Cunhal

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Morreu Álvaro Cunhal, outro ícone da revolução. E da resistência. E do PREC. Morreu Cunhal, e com ele um partido que há muito agonizava, desapareceu enfim uma imagem, uma utopia que se queria cada vez menos reinante. Com Cunhal morreu igualmente um período de afirmação do comunismo em que já poucos acreditavam e acreditam, pelo menos no estado puro em que o líder histórico ainda o defendia. Morreu a capacidade de renovar onde a renovação das ideias já era impossível e os ventos da história tinham tornado despropositada a sobrevivência de uma ideologia que a queda do muro e o desmoronar da União Soviética apenas confirmaram. Morreu, porque os homens são efémeros, e o pai, o líder, o guia espiritual era, ao fim e ao cabo, apenas um homem. Morreu o artista, o escritor, o poeta, o artista plástico. Aquele que sabia manobrar a realidade, recolocar-se na liderança da corrida, mesmo quando estava dela afastado, aquele que sabia transformar as derrotas copiosas em vitórias estrondosas, aquele de quem nunca se esperava que atirasse a toalha ao tapete, mesmo quando o último estertor parecia evidente e iminente.
E que mais morreu com Cunhal? - cabe agora perguntar. Que mais morreu que justifique as exéquias que lhe foram feitas? As homenagens. Os tributos. As manifestações de apreço. As condecorações que por certo aí virão. Será a resistência? Os anos de cadeia? Sem dúvida que sim, até ao momento em que foi derrubado um regime e implantada a democracia em Portugal. Mas nisso Cunhal não foi diferente de tantos e de tantas gerações. Foi mais um, um dos portugueses que por dever de patriotismo e espírito democrático sacrificaram anos da sua vida em prol de Portugal. Como o fizeram gente da direita e da esquerda, militares, mães, mulheres e filhos órfãos de soldados que nunca regressaram do ultramar, trabalhadores, empresários, políticos, gente anónima de quem a história nunca escreverá uma linha. O PCP e Álvaro Cunhal não fizeram mais pela queda do regime que o próprio regime . A estúpida manutenção de uma guerra sem convicção da sua bondade ou utilidade, o fechamento e alheamento à sociedade e ao mundo fizeram mais pelo 25 de Abril que o PCP ou Cunhal. Cunhal não pode ser considerado o ícone da revolução, nem o seu pai, nem pode ser alcandorado a seu mentor, pelo menos não a um nível superior a qualquer português que tenha sofrido tanto ou mais que ele a tirania do regime.
Pior, depois do 25 de Abril, como justificar a apologia do Império Soviético, a invasão de Praga, do Afeganistão e os direitos cerceados dos cubanos? Como ainda assim justificar a defesa da implantação de uma ditadura, conhecidas as experiências Estalinista (20 milhões de mortos) e Leninista? Como esquecer que só na União Soviética se matou mais gente que em todos os regimes ditatoriais de direita no Séc. XX se somados? E contudo, importa não esquecer, era esse o projecto de Cunhal para Portugal, a substituição de uma ditadura por outra, substituir o fascismo pelo comunismo. Foi isso o PREC, foi isso que Cunhal tentou, aproveitar um vazio de poder para de forma mais facilitada permitir-se a implantação de um regime ditatorial abjecto e intolerável como o foram o fascismo, o nazismo ou o comunismo sob qualquer das suas formas. É isso que ainda hoje pagamos caro, com o atraso económico, as nacionalizações, a estagnação ideológica e a falência da reforma agrária.
Não entendo por isso as cerimónias, as exéquias, as medalhas, o enaltecimento do "democrata" que odiou a democracia portuguesa do pós 25 de Abril. É intolerável que se ceda à tentação de elogiar o líder político, o dirigente Álvaro Cunhal. Sem embargo, quanto ao homem e às suas virtudes, nada a dizer, evidentemente, mas até nisto, Portugal mostra quão baixa anda a sua auto-estima e quão necessitada anda a procura de valores e referências. Enfim...
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sexta-feira, junho 17, 2005

Hemingway na Andaluzia


Ernest Hemingway com Antonio Ordóñez e El Niño de la Palma na
Goyesca de Ronda, em 1959, visto por Idígoras y Pachi
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"Bien, tráigame un jerez". Assim se lia em Fiesta. É conhecida a admiração de Ernest Hemingway por Espanha e as touradas, a pontos que o seu principal romance, Fiesta, passado nas Sanferminas de Pamplona imortaliza as largadas de touros que ainda hoje se fazem naquela localidade. O que menos se conhece, contudo, é que, sendo naturalmente aficionado, o prémio Nobel procurou sempre nas suas visitas ao país vizinho aprofundar cada vez de forma mais requintada o seu culto pessoal pela afición tauromáquica, e fê-lo naturalmente nos lugares onde ela mais se cultivava no seu estado puro. Assim, encontramos Hemingway nas arenas de Jerez, Sevilha, Córdoba e Ronda, sendo que esta última o encantava particularmente por ser a mais antiga e bonita de Espanha, enquanto a cidade lhe agradava pela monumentalidade das suas escarpas e magnitude dos seus monumentos, porquanto está escondida e preservada pelas serranias que a cercam. Hemingway adorava ainda o estilo goyesco das touradas rondinas, desenroladas com grande dramatismo a três actos, por contraposição ao rigor e folclore da escola sevilhana, bastante mais espartana. Hemingway apreciava sem limites a perícia do matador Antonio Ordoñez, grande amigo pessoal de Orson Wells, também um visitante habitual. Acerca do hotel onde costumava alojar-se - o Enfrente Arte de Ronda - o qual ainda existe, Hemingway dizia ser o lugar ideal para uma lua-de-mel de qualquer jovem casal.
Ali perto, em Jerez de la Frontera, Hemingway apreciava de forma especial o licor de Jerez, as bodegas e a visita às fincas criadoras dos magníficos exemplares de alta escola. É possível traçar um roteiro das suas sucessivas visitas aos mais recônditos lugares da Andaluzia com alguma facilidade, as quais se prolongavam por diversas temporadas, durante as quais satisfazia a sua bonomia e buscava inspiração para os seus livros. Desiludido com Espanha, onde prometeu não voltar enquanto não libertassem um seu amigo preso por motivos políticos, 1959 foi o último ano de visita de Hemingway, após o que se refugiou em La Havana, de onde regressou mais tarde aos Estados Unidos, onde se suicidou em casa com um tiro de carabina.
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Visitando Rilke


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Habitar o menos possível este corpo.
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terça-feira, junho 14, 2005

Vasco, por Eugénio de Andrade

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Nesses dias era sílaba a sílaba que chegavas.
Quem conheça o sul e a sua transparência
também sabe que no verão pelas veredas
da cal a crispação da sombra caminha devagar.
De tanta palavra que disseste algumas
se perdiam, outras duram ainda, são lume
breve arado ceia de pobre roupa remendada.
Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão
era morada e instrumento de alegria.
Esse eras tu: inclinação da água. Ma margem
vento areias mastros lábios, tudo ardia.
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EUGÉNIO DE ANDRADE
in
"12 Poemas para Vasco Gonçalves", Porto, 1977
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Companheiro Vasco

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Escrever sobre Vasco Gonçalves. Tinha pensado até em nada dizer, como nada disse aquando do óbito de João Paulo II. E no entanto, é alguém a que não consigo ficar indiferente. Obviamente, escrever sobre alguém implica uma pesquisa, saber-se algo sobre a pessoa em causa, descobrir um pouco mais que aquilo que se ouve na rua ou que nos é trazido pelo vento da memória. De Vasco Gonçalves vêm-me à memória as nacionalizações, a chefia dos sucessivos governos provisórios com presença de todos os partidos, em condições inimagináveis nos dias de hoje, os militares na rua, tudo isto numa idade em que os meus sentidos estavam mais despertos para as brincadeiras de rua que para os ares da governação.
Mas dizia, o tempo - outra vez ele - encarregou-se de me pregar uma partida e proporcionou-me um encontro com o General. E assim - surreal - no dia 28 de Maio de 2005, do outro lado da linha telefónica, um amigo comum perguntou-me se queria acompanhá-lo numa visita e conhecer Vasco Gonçalves. Irresistivelmente, despi-me de todos os preconceitos e, momentos depois, acompanhado pela minha filha mais nova, ainda criança de colo, encontrei-me cara-a-cara com um dos arquétipos da revolução dos cravos. Fui recebido de forma exemplar pelo General e por sua esposa - Dª Aida - na casa onde há dias faleceu. Quando entrei, o General lia um livro sobre história das relações diplomáticas, de um autor francês cujo nome me falha. O porte do militar, alterado pelos anos, era diferente de tudo quanto a memória me permitia evocar, ainda que o tivesse visto a discursar uma vez na Assembleia da República, creio que na cerimónia comemorativa dos 25 anos do 25 de Abril. Mas o tempo não perdoa aos homens.
Eis-me, pois, a apertar a mão do Companheiro Vasco. Olhos nos olhos, um olhar embaciado que continuava a acusar sagacidade e profundidade. E uma profunda humildade do gesto e das palavras, alicerçada na crença da bondade das suas convicções. Se era comunista? Confessou que nunca foi filiado. Acompanhava e gostava de se manter informado do que se passava no interior do partido, mas é sabido que entre si e Álvaro Cunhal não havia um entendimento perfeito. Um homem de esquerda, sem dúvida, que defendia a nacionalização da banca e dos sectores estratégicos da economia.
Vi-lhe permanentemente um carácter e um semblante serenos e sem o mais pequeno índice de revolta ao longo das quase duas horas durante as quais se prolongou a visita. Abordaram-se assuntos vários e o tempo voou. Quase no fim da conversa, Vasco Gonçalves, que por diversas vezes olhou para a minha filha nos momentos em que a tive ao colo, perguntou-me se lhe permitia que lhe pegasse. Impossível recusar-lhe esse momento. Visivelmente emocionado, o General pegou-lhe com todo o cuidado, olhou-a de frente, chamou-a pelo nome e sorriu-lhe. Ela retribuiu-lhe o sorriso franco, na inocência dos seus cinco meses. "Tens uns olhos que apetece mergulhar neles", murmurou. "Sabe? só tive um neto" - disse - "já tinha saudades". "Tome, mime-a". Despedimo-nos, acompanhou-nos à porta e acenou-nos da entrada, agradecendo a visita.
Mimá-la-ei General, mimá-la-ei.
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Adeus

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[...]
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Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...
já não se passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

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Não temos nada que dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

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Adeus.

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Eugénio de Andrade, Adeus
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segunda-feira, junho 13, 2005

Tempo III


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Ouve o tempo a assobiar nas vielas
e não deixes que se perca.
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Um fim de semana "pas comme les autres"

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De como se seguiram os passos de Orson Wells, Ernest Hemingway e do poeta Rainer-Maria Rilke, se diagnosticou um Sindroma de Hamlet, se festejaram os golos do Recreativo de Huelva e se constatou o desaparecimento de Vasco Gonçalves, Eugénio de Andrade e Álvaro Cunhal. Voltaremos a estes assuntos, quando o tempo que se conta em gotas e segundos o permitir.
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quarta-feira, junho 08, 2005

Vidas

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é este
o tempo em que nenhuma palavra pode ser escrita
e os sentimentos se tornaram áridos
como rochas milenares
em faldas de granito
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é este
o tempo da peste do verbo
e dos afectos desiludidos onde as palavras adiadas
se calarão para sempre
e já não nos pertencem
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é este
o tempo do desmoronamento,
dos barcos afundados no lodo junto ao cais
onde uma vida se perdeu
ao som de uma canção
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é este,
o tempo da eterna esperança sem lágrimas
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O alfaiate e as moscas

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Era uma vez um pobre alfaiate remendão cuja oficina, localizada numa zona menos nobre da cidade, por trás dos estábulos da coudelaria real, era muitas vezes invadida por enxames de moscas, atraídas pelos equídeos dejectos, as quais muito maçavam o alfaiate. Por essa altura, havia no reino um gigante que causava os maiores estragos a pessoas e bens, e ao mesmo tempo que comia animais, a tal ponto que o rei mandou diversos cavaleiros e os seus melhores exércitos combater a horrenda criatura, infelizmente sem grande sucesso.
Estava o rei prostrado pelo desespero, quando teve a luminosa ideia de oferecer uma recompensa e a mão da filha àquele que conseguisse aprisionar o gigante, livrando o reino da sua ameaça. Para isso, enviou arautos por todos os cantos e terras, a fim de anunciar aquela oferta.
Entretanto, o alfaiate ruminava em mezinhas e remédios para conseguir livrar-se das moscas, experimentando tudo o que lhe viesse à cabeça para se livras delas. Um dia, tendo conseguido fazer sete moscas poisar numa folha de papel colocada em cima da mesa de trabalho, conseguiu acertar em todas de uma só vez com o mata-moscas. Ficou felicíssimo e, não resistindo, foi à janela anunciar a todos os que passavam na rua que "matei sete! sete de uma vez!"
Dava-se nessa altura a coincidência de ter sido feito o anúncio real, e discutia-se quem seria capaz daquela façanha, pelo que de imediato, inevitavelmente, o pobre alfaiate foi levado à presença do rei.
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O resto da história será de todos conhecida certamente, e nem é das histórias mais significativas em termos de signficado, ou moral. Ou será? Por certo que sim, se nos abstrairmos de tudo o que se seguiria na história e nos centrarmos no método empregue pelo alfaiate para capturar as moscas. Não, não se tratava de um mata-moscas especial, nem de nada significativo. Reza a lenda que o alfaiate se limitou a colocar umas gotas de mel numa folha de papel, o qual atraiu e colou as moscas que assim não puderam levantar voo. Inequivocamente, a moral desta história é a de que as moscas apanham-se com mel e não com vinagre. Ou não será assim?
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segunda-feira, junho 06, 2005

Perto do fim

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A força invencível que impulsiona o mundo não são os amores felizes, mas os contrariados, que sobrevivem às dificuldades.
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sexta-feira, junho 03, 2005

Maria Luísa



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Na madrugada da noite de vinte e três para vinte e quatro de Junho de mil oitocentos e trinta e três Harun pescava junto do penhasco habitual, numa praia perto de Cacela. Sob o luar intenso vislumbrou, ao largo no mar, uma mancha negra de um vapor que estacionara ao largo. Movido pelo temor, Harun refugiou-se numa escarpa do penhasco, a espreitar o que dali vinha. Do seu esconderijo vislumbrou centenas de soldados a desembarcar na praia, conduzidos em chalupas a remos, fardados e armados de lanças, espadas e arcabuzes. O desembarque, rápido, às primeiras horas da manhã surpreendeu o sono dos habitantes da aldeia. Já o sol ia alto quando Harun teve a coragem de abandonar o seu esconderijo, com a temeridade que os seus vinte e sete anos e ser órfão de pai e mãe desde os cinco, lhe permitiam. No caminho do regresso a casa, Harun sentia o temor a percorrer-lhe as entranhas, mas sossegava-o a companhia de Ibn, o seu fiel cão pescador de pêlo cor de fuligem enrolado, que tinha trocado por uma cana a um pescador da praia de Vila Real de Santo António, meses atrás.
Chegado à aldeia ocupada, Harun ficou siderado com a opulência dos soldados, os quais foram bem recebidos pela população local, que lhes deu de comer, beber e bem tratou a fim de recuperarem dos três dias de mar desde o embarque no Porto.
Horas depois do desembarque, um oficial veio a terra – “um Conde” – comentou-se mais tarde na vila. E de facto assim era, uma vez que se tratava de António José de Sousa Manuel de Meneses Severim de Noronha, 7.º conde e 1.º marquês de Vila Flor e 1.º duque da Terceira, o qual na altura detinha a patente de Major de Infantaria. Acompanhava o Conde a Condessa Maria Luísa de Espanha, senhora com quem o Conde casara no Brasil há anos atrás em segundas núpcias, depois do falecimento prematuro da sua primeira esposa, com apenas vinte e cinco anos. Maria Luísa tinha à data do seu casamento apenas treze anos, mas depressa ganhou a maturidade suficiente para acompanhar o marido nas suas andanças desde o Brasil até Portugal, juntando-se-lhe na luta pela defesa intransigente dos valores liberais defendidos pelos partidários de D. Pedro IV e de sua filha D. Maria.
O Conde desembarcava agora no Algarve e predispunha-se a reconquistar toda esta província que se encontrava nas mãos das tropas absolutistas fiéis a D. Miguel, o que fez com um êxito estrondoso, pois reconquistou Olhão, Faro e Lagos, antes de regressar a Lisboa, onde foi nomeado Tenente-Coronel e mais tarde Coronel pelos seus feitos.
Harun nunca tinha visto uma senhora e muito menos uma com o porte de Maria Luísa e por isso quando os seus olhos se cruzaram com os dela, então na formosura dos seus vinte e cinco anos, o pescador de Cacela não resistiu aos apelos dos militares junto da população para se alistar no exército liberal a troco de um soldo pouco menos que digno, ele que não sabia ler e muito menos escrever, e que desde sempre andara somente na vida do mar, como os seus antepassados que centenas de anos antes haviam fugido da vizinha Granada após o fim da dominação moura na Península Ibérica.
E assim Harun seguiu as tropas liberais que marcharam sobre Olhão e Faro, sempre na esperança de conseguir trocar um novo olhar com Maria Luísa. Os dias de marcha seguiram-se, um após o outro, Beja, Évora, Santarém, até que no repente de um fim de tarde, Lisboa surgiu à sua frente, em todo o seu esplendor branco. Maria Luísa havia deixado há muito a coluna militar com o marido, sentida que estava a confiança dos militares liberais na reconquista do Sul do país. À chegada a Lisboa, os militares recolheram ao quartel, a Harun foi atribuída uma enxerga na camarata mais distante da entrada dos mancebos, e por lá ficou durante vários meses sem ter ouvido falar de Maria Luísa. Ibn desaparecera entretanto, perdido numa das vielas da Ajuda, numa noite de fado. Provavelmente recolhera a casa de uma prostituta do bairro, que lhe terá dado melhor acolhimento que o improvisado canil junto à cozinha da cantina.
Um dia, Harun ouviu alguém dizer que o Conde partira com Maria Luísa para os Açores. Falava-se de dificuldades financeiras do casal, a quem uma comenda atribuíra uma concessão de privilégios na Ilha Terceira. Uma ilha - disseram-lhe – no meio do oceano, para Ocidente. Sem se questionar, Harun partiu para o Sul – o seu Sul – a toda a pressa. Desertou, mas ninguém no quartel deu pela sua falta. Sentia-se novamente animado, intrépido e corajoso, como os príncipes de Granada. Agora, ele, Harun, chegava ao seu Algarve e partiria em busca de algo que só existia dentro de si. A coberto da noite, atravessou a nado o canal que o levou de Olhão à Ilha da Culatra, onde um pescador amigo lhe arranjou uma pequena embarcação. Uma pequena mas sólida chalupa, com uma vela triangular usada, peixe seco, um farnel de pão ázimo e um barril de água potável eram todo o seu inventário.
Não obstante a fragilidade dos seus haveres, olhando o céu, a Harun pareceu-lhe distinguir a face de Maria Luísa na lua cheia da noite de vinte e três de Junho de mil oitocentos e trinta e seis e por isso fez-se ao mar. À Terceira nunca chegou. No Algarve nunca mais se ouviu falar de si a não ser quando, anos mais tarde, um mercador do Norte de África que passou por Cacela trouxe notícias de um pequeno califado onde pernoitara na casa de um armador de pesca que dedicou a vida e as suas economias a construir um pequeno palácio junto a um soukh a que deu o nome de Casa de Maria Luísa.
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Junho de 2005
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quinta-feira, junho 02, 2005

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Dizes-me qualquer coisa? Perfeita. Ainda hoje.
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quarta-feira, junho 01, 2005

Um de Junho

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Como calar o vil veneno
e a tristeza da dor
com que nos vergasta a saudade
de cada arco-íris, alimentado
por explosões de cor?
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Como fechar os olhos
ao querer providencial do amor,
ao recordar de cada estrela
e à espuma que abraça cada onda
desde a cava até à crista
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Como, cem vezes, como
desmoronar e violentar
a branca curvatura dos sonhos
da criança que dentro vive
e nos alimenta, ainda hoje
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Como, secar um mar e olhar o espelho,
fazer renascer o universo,
sem desafiar o abandono de Deus?
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