sexta-feira, junho 03, 2005

Maria Luísa



.
Na madrugada da noite de vinte e três para vinte e quatro de Junho de mil oitocentos e trinta e três Harun pescava junto do penhasco habitual, numa praia perto de Cacela. Sob o luar intenso vislumbrou, ao largo no mar, uma mancha negra de um vapor que estacionara ao largo. Movido pelo temor, Harun refugiou-se numa escarpa do penhasco, a espreitar o que dali vinha. Do seu esconderijo vislumbrou centenas de soldados a desembarcar na praia, conduzidos em chalupas a remos, fardados e armados de lanças, espadas e arcabuzes. O desembarque, rápido, às primeiras horas da manhã surpreendeu o sono dos habitantes da aldeia. Já o sol ia alto quando Harun teve a coragem de abandonar o seu esconderijo, com a temeridade que os seus vinte e sete anos e ser órfão de pai e mãe desde os cinco, lhe permitiam. No caminho do regresso a casa, Harun sentia o temor a percorrer-lhe as entranhas, mas sossegava-o a companhia de Ibn, o seu fiel cão pescador de pêlo cor de fuligem enrolado, que tinha trocado por uma cana a um pescador da praia de Vila Real de Santo António, meses atrás.
Chegado à aldeia ocupada, Harun ficou siderado com a opulência dos soldados, os quais foram bem recebidos pela população local, que lhes deu de comer, beber e bem tratou a fim de recuperarem dos três dias de mar desde o embarque no Porto.
Horas depois do desembarque, um oficial veio a terra – “um Conde” – comentou-se mais tarde na vila. E de facto assim era, uma vez que se tratava de António José de Sousa Manuel de Meneses Severim de Noronha, 7.º conde e 1.º marquês de Vila Flor e 1.º duque da Terceira, o qual na altura detinha a patente de Major de Infantaria. Acompanhava o Conde a Condessa Maria Luísa de Espanha, senhora com quem o Conde casara no Brasil há anos atrás em segundas núpcias, depois do falecimento prematuro da sua primeira esposa, com apenas vinte e cinco anos. Maria Luísa tinha à data do seu casamento apenas treze anos, mas depressa ganhou a maturidade suficiente para acompanhar o marido nas suas andanças desde o Brasil até Portugal, juntando-se-lhe na luta pela defesa intransigente dos valores liberais defendidos pelos partidários de D. Pedro IV e de sua filha D. Maria.
O Conde desembarcava agora no Algarve e predispunha-se a reconquistar toda esta província que se encontrava nas mãos das tropas absolutistas fiéis a D. Miguel, o que fez com um êxito estrondoso, pois reconquistou Olhão, Faro e Lagos, antes de regressar a Lisboa, onde foi nomeado Tenente-Coronel e mais tarde Coronel pelos seus feitos.
Harun nunca tinha visto uma senhora e muito menos uma com o porte de Maria Luísa e por isso quando os seus olhos se cruzaram com os dela, então na formosura dos seus vinte e cinco anos, o pescador de Cacela não resistiu aos apelos dos militares junto da população para se alistar no exército liberal a troco de um soldo pouco menos que digno, ele que não sabia ler e muito menos escrever, e que desde sempre andara somente na vida do mar, como os seus antepassados que centenas de anos antes haviam fugido da vizinha Granada após o fim da dominação moura na Península Ibérica.
E assim Harun seguiu as tropas liberais que marcharam sobre Olhão e Faro, sempre na esperança de conseguir trocar um novo olhar com Maria Luísa. Os dias de marcha seguiram-se, um após o outro, Beja, Évora, Santarém, até que no repente de um fim de tarde, Lisboa surgiu à sua frente, em todo o seu esplendor branco. Maria Luísa havia deixado há muito a coluna militar com o marido, sentida que estava a confiança dos militares liberais na reconquista do Sul do país. À chegada a Lisboa, os militares recolheram ao quartel, a Harun foi atribuída uma enxerga na camarata mais distante da entrada dos mancebos, e por lá ficou durante vários meses sem ter ouvido falar de Maria Luísa. Ibn desaparecera entretanto, perdido numa das vielas da Ajuda, numa noite de fado. Provavelmente recolhera a casa de uma prostituta do bairro, que lhe terá dado melhor acolhimento que o improvisado canil junto à cozinha da cantina.
Um dia, Harun ouviu alguém dizer que o Conde partira com Maria Luísa para os Açores. Falava-se de dificuldades financeiras do casal, a quem uma comenda atribuíra uma concessão de privilégios na Ilha Terceira. Uma ilha - disseram-lhe – no meio do oceano, para Ocidente. Sem se questionar, Harun partiu para o Sul – o seu Sul – a toda a pressa. Desertou, mas ninguém no quartel deu pela sua falta. Sentia-se novamente animado, intrépido e corajoso, como os príncipes de Granada. Agora, ele, Harun, chegava ao seu Algarve e partiria em busca de algo que só existia dentro de si. A coberto da noite, atravessou a nado o canal que o levou de Olhão à Ilha da Culatra, onde um pescador amigo lhe arranjou uma pequena embarcação. Uma pequena mas sólida chalupa, com uma vela triangular usada, peixe seco, um farnel de pão ázimo e um barril de água potável eram todo o seu inventário.
Não obstante a fragilidade dos seus haveres, olhando o céu, a Harun pareceu-lhe distinguir a face de Maria Luísa na lua cheia da noite de vinte e três de Junho de mil oitocentos e trinta e seis e por isso fez-se ao mar. À Terceira nunca chegou. No Algarve nunca mais se ouviu falar de si a não ser quando, anos mais tarde, um mercador do Norte de África que passou por Cacela trouxe notícias de um pequeno califado onde pernoitara na casa de um armador de pesca que dedicou a vida e as suas economias a construir um pequeno palácio junto a um soukh a que deu o nome de Casa de Maria Luísa.
.
Junho de 2005
.