quinta-feira, dezembro 30, 2004

Ainda o velho poema islandês

Como ameaçado ontem, eis-nos com mais uma versão do velho poema islandês (ver post anterior). Trata-se, como seria de esperar, duma versão muito diferente, de entre um conjunto quase infinito de versões possíveis. Servimo-nos, em ambos os casos, de traduções inglesas encontradas aqui e aqui. Não desconhecemos a lição de Jorge Luis Borges sobre as kenningar (v. Obras Completas, Vol. I, pp. 381-395, ed. Teorema) - essas excessivas metáforas, ou «menções enigmáticas» que, no fundo, constituem «o primeiro deliberado gozo verbal de uma literatura instintiva». Nesta nova versão algumas kenningar estão mais à vista: uma delas, inclusivamente, aparece textualmente no índice de Borges incluído na História da Eternidade (op. cit.): «lume do mar», como metáfora de ouro. Não resistimos a uma rima final nem a dois falsos decassílabos nos antepenúltimo e último versos.


O ouro
é o fogo no mar,
o rasto da serpente,
a fonte da discórdia
entre os irmãos de sangue.
O aguaceiro
é o choro das nuvens,
a ruína das colheitas,
o flagelo do pastor.
O Gigante
que habita os penhascos,
amante da Deusa ignóbil,
é o tormento das mulheres.
Odhinn,
o mais velho dos pais
e príncipe de Asgard,
é o Senhor de Vallhalla.
Cavalgar
na célere jornada
é a alegria dos cavaleiros,
o esforço da montada.


[versão de J. C. Barros e Alexandre Domingues]

quarta-feira, dezembro 29, 2004

Fé er frænda róg ok flæðar viti

O Francisco deixou-nos aqui um poema em islandês antigo. E desapareceu. Claro que já começaram as reclamações... Bem: como se trata de um texto belíssimo, e enquanto as prometidas traduções não chegam, permitimo-nos cometer uma versão (muito livre, claro) do poema em causa (aliás: do fragmento, pois o que o Francisco nos deixou foi uma pequena parte dum poema bastante mais extenso). E como uma desgraça nunca vem só - amanhã faremos questão de trazer aqui uma nova versão deste belíssimo texto...

A riqueza
é o relâmpago na água
e o caminho da serpente,
a fonte da discórdia
entre os que se amam.
O aguaceiro
é o choro das nuvens:
dispersa os rebanhos
e arruina os celeiros
onde se guardam os fenos.
O Gigante
atormenta as mulheres
e o espírito dos declives:
a sua ira dirige-se aos seguidores
do Deus das sementeiras.
Mas
a presença poderosa de Odhinn
protege as colheitas: é ele
o Senhor da vastidão.
E cavalgar
é então a alegria dos homens
que fazem a jornada
mais céleres que o vento
a caminho dos campos.


[versão de José Carlos Barros]

[as nascentes]

Entre as árvores de julho e a sua sombra
entre os nenúfares e a torrente irrepetível do inverno de 1996
entre o céu e o mar nas manhãs onde o crepúsculo ousa regressar
à procura das últimas vozes
entre a cegueira e a obscuridade das páginas dos livros de poemas -
procuro-te como quem adormece com medo das aves

Depois do equinócio e das marcas da água no areal deserto
depois do silêncio demolidor das folhas do salgueiro
quando regressas de longe a uma pátria que não reconheces
depois da aluvião e da estranha abundância das bagas vermelhas
nas veredas iluminadas pela memória dos teus nomes
depois da tristeza dos campos lavrados do outro lado do vale
depois da rendição e da luz abandonada nos pátios
depois do amor -
procuro-te como quem sobe às nascentes com medo da água

terça-feira, dezembro 28, 2004

Natal

Um poema de Natal? Com aquele espírito da quadra, a neve, os pinheirinhos e tudo? Muito bem: podem lê-lo aqui, tirado daqui. (Os outros, só para quem comprar «os primeiros anos»...)

segunda-feira, dezembro 27, 2004

Personagem

Chamo-me Luísa. Sou uma personagem de ficção. Devem conhecer-me, pelo menos, do Primo Basílio. Mas sou também a drª Luísa Fragoso duma novela reles do Manuel Arouca, a Maria Luísa dum romance notável e esquecido de José Lins do Rego, a mulher do conto do Onésimo que saiu dos Açores na ilusão de que é possível fugir ao destino que o acaso nos ditou, a personagem obscura ou exaltante de um outro livro cujas páginas nunca te será dado leres. Já fui concubina e princesa, criada de servir, engenheira electrotécnica, assalariada rural no Alentejo. Já vivi no Iémen, numa cidadezinha da Bretanha rodeada por um bosque, em Angra do Heroísmo, em Portimão. Já fiz de tudo. Só nunca fiz de mim mesma. E por isso nunca soube o que era (de facto) acordar ou sentir o cheiro da terra molhada, ter frio, ter medo, amar, ser feliz. É verdade que já caminhei sobre o fogo, que já morri, que já ressuscitei, que já fui condenada ao degredo, que já conheci a glória, que já traí, que já dormi no deserto, que já fui heroína numa batalha em que os guerreiros mais corajosos acabaram por desertar. Mas fui sempre, senti sempre, por interposta pessoa. Por isso chego a pensar que trocaria tudo, sei lá, por um instante em que pudesse (de facto) sentir. Podia ser a dor, tudo bem. A dor que me trouxesse as lágrimas mais concretas. E que essas lágrimas me corressem na cara, sim, mesmo que então me descobrisse a mais desgraçada das mulheres à face da terra.

[EDP]

escrevo-te de novo à luz das velas
e por um instante temo que o nosso amor
não sobreviva a
uma falta de corrente

[Literatura]

O nosso amor, que deve tanto aos livros,
quantas vezes foi mais que um decassílabo?

sexta-feira, dezembro 24, 2004

Fado

Eu quando for grande queria ter assim no sapatinho uma «base política sólida»: 0.23% mais 0.28%. Ou seja: 0% se os manos Câmara Pereira subirem aos palcos.

quinta-feira, dezembro 23, 2004

Auto-estima

Os grandes eventos regressam ao Estádio do Algarve. O Farense e o Beira-Mar de Monte Gordo, no fim de semana passado, entraram em campo no Parque das Cidades não apenas para cumprir mais uma jornada da terceira divisão: também para calar os críticos, as carpideiras, os arautos da desgraça. O jogo foi movimentado, teve o colorido dos grandes eventos, dos grandes e decisivos acontecimentos. E teve golos: Vallone, Constantino, Pintassilgo e Chiquinho não fizeram a coisa por menos. Calem-se, pois, os críticos, as carpideiras, os arautos da desgraça: os grandes eventos regressam ao Estádio do Algarve; o estádio do Europeu aí está de novo, ao serviço da auto-estima, da Região e da Pátria.

terça-feira, dezembro 21, 2004

[Do mundo]

A cidreira adormecida numa cesta, a única, de quatro varas. Desse tempo. Tudo quanto eu conhecia do mundo e de mim.

segunda-feira, dezembro 20, 2004

[O ladrar dos cães]

O ladrar nos cães no meio da noite a caminho do largo. O cântaro na fonte, o bolso da camisa, a esferovite leve do inverno. A eternidade, quase.

Um mail recebido ontem

Vais-me desculpar: um poemazinho ou outro, lá de quando em vez, tudo bem. Mas isto começa a ser insuportável... Tantas coisas a acontecer em Portugal e no mundo, tantas coisas decisivas, fundamentais - e tu a dar-lhe com «os pássaros do outono», «as mãos das mulheres a mexer indiferentes na água fresca dos púcaros», «o silêncio das manhãs crescendo no interior dos retratos antigos»... Desculpa, mas não há pachorra... Não saberás que o sr. Jorge Nuno prepara a candidatura à Câmara do Porto, que Ianukovitch vai à TV expôr os seus argumentos, que a Câmara de Valongo entregou dezenas de diplomas aos frequentadores da acção de formação em Gestão de Tempo e Funções Parentais, que os trabalhadores do casino Estoril continuam em greve, que Santana e Portas assinaram um contrato de não-agressão, que o Benfica regressou às vitórias, que a Grande Área Metropolitana do Algarve abriu um concurso público de concepção do Hino do Algarve, que Sócrates anuncia o regresso da co-incineração, que o presidente da Câmara de Coimbra se manifestou preocupado com o retrocesso, que Bush foi considerado pela Time a personalidade do ano, que afinal os jipes não vão ter descontos nas portagens, que o primeiro ministro garante que não muda de opinião todos os meses? Por favor: regressa ao mundo, Zé Carlos. Dá-nos um sinal do teu regresso e deixa-te de merdas tipo a «ondulação dum sopro repetindo as mãos em cada sílaba» ou o diabo a quatro...

Um abraço, e as melhoras.

domingo, dezembro 19, 2004

[A noite]

Subir os degraus de casa tão devagar que a noite adormeça de pasmo as suas quatro luas.

sábado, dezembro 18, 2004

[Tarde]

A inúmera voz do amor autógrafa na tarde. A gravidade dos teus gestos demorando pura o peso do desejo leve sobre os ombros.

[A sombra]

Para dormir eu peço a paz das tuas mãos. Hábil a sombra desenha os pássaros do outono nos telhados vazios da cidade.

[A paixão]

A violência do encontro e da partida. A sede e o imprevisto, nomes e palavras sem retorno. A paixão e a tragédia, uns lábios claros.

sexta-feira, dezembro 17, 2004

[Nas casas]

Nas casas da encosta findavam pelo fim da manhã
os trabalhos domésticos. O calor poisava
nos armários e nas mesas como se tudo
fosse arder por dentro à visita inesperada
e pendular dum corpo que regressa
para impor no estio a ordem da paixão.
Recordas o rumor no degrau de cima
da escaleira do relógio velho, o esvoaçar
das moscas contra os vidros, um grito
pretérito que descia do cume dos incêndios
a pedir a deus um copo de água ou
uma lâmina nos pulsos. Como tudo
passa e tudo esquece à aproximação da primeira
sombra do freixo na margem do rio, recordas
ainda. Um freixo ou um corpo que retomem
a respiração dos primeiros dias do mundo,
os trabalhos domésticos contra o calor
da tarde, as mãos das mulheres a mexer
indiferentes na água fresca dos púcaros.

quinta-feira, dezembro 16, 2004

[A perfeição]

Eis a perfeição aos nomes só entregue. O verde duma árvore, o rumor da boca, o só vibrante começar do amor. O brilho da manhã poisando no infindável movimento das palavras.

[A terra]

Nada mais denso. A terra projectando a sombra no infinito do olhar. A súbita eclosão das vozes múltiplas do amor.

[O lume]

O lume, a flor da cal. O estranho movimento dos sentidos.

[Sem nome]

Desamparado o fluir das frases, o abandono fulvo das palavras, o silêncio das manhãs crescendo no interior dos retratos antigos. Sem nome é o dia de que falamos nas suas margens perfeitas.

[Migração]

Clandestina quase a migração das aves, é o que regressa às tuas mãos. O rumor de abril.

[A ondulação]

A ondulação dum sopro repetindo as mãos em cada sílaba. Obscuro ardendo no interior da morte o próprio lume liso da memória.

[Um grito]

Um grito em vez do círculo das águas. A memória dum sopro de líquen sobre o ar da pele. A perfumada prometida carta que não chega nunca.

terça-feira, dezembro 14, 2004

O primeiro dia em que se despiu

Uma nuvem de gases e poeira levanta-se na rua, não tarda que poise nos móveis da sala, no chão encerado do átrio, na mobília dos quartos do primeiro andar. Dona Fernanda vem à janela, o doutor Magalhães acaba de subir à varanda da casa do largo, há-de sentar-se na cadeirinha de lona, enfiar os pés descamados na bacia de porcelana com água das caldas santas. A camioneta da carreira sobe vagarosamente a rua cinco de outubro como se chegasse de uma viagem à roda do mundo: que sobressalto acrescentará hoje ao ruído sobressaltado do motor? Fernanda pressente

que será um dia diferente: como se tudo pudesse começar de novo. Levantou-se cedo, a luz ainda indecisa na colina. Desce ao salão, abre o louceiro de castanho, olha com minúcia, uma peça, depois outra, o serviço de jantar. Levantou-se cedo, não há uma nuvem entre a terra e o céu, o espinheiro da virgínia do toural ergue-se contra o céu de fins de setembro como se o mundo começasse a nascer com a manhã ainda indecisa. Olha da janela, desvia as cortinas e suas cornucópias vermelhas e azuis, a luz ainda indecisa. Como se alguém dissesse:

aqui uma árvore, aqui um muro alinhado, aqui o caminho do monte, aqui um tanque, aqui uma casa, aqui uma encosta de carvalhos, aqui um ribeiro e suas águas sesserigas, aqui uma pedra, aqui uma fonte: como se o mundo só então pudesse começar. Como se alguém dissesse: aqui uma pedra, aqui uma fonte, e agora a luz a descer a colina, a derramar-se no vale e na encosta de carvalhos, a descer o ribeiro e suas margens, a descer o caminho do monte. Como se tudo, sendo igual, pudesse ser diferente. Como se o seu próprio destino pudesse ser decidido de um modo diferente. Como se tudo pudesse começar, como se nada existisse entre a terra e o céu. Não há uma nuvem. Dona Fernanda sobe de novo, despe o roupão, a luz do seu corpo ilumina as paredes do quarto, a manhã indecisa a entrar pela janela virada ao nascente. Recorda

o primeiro dia em que se despiu diante de um homem. O engenheiro chegara em mil oitocentos e setenta e nove, passava os dias na serra com a brigada da floresta. À noite, depois do jantar, estendia as cartas topográficas na mesa da sala, os seus dedos finos, os seus modos galantes. Em fins de fevereiro começaram as primeiras plantações: dezenas de homens e mulheres sob as suas ordens, a desmatar a encosta, a abrir covas, os pinheiros minúsculos: nunca por aquelas bandas se vira uma árvore assim: os pinheiros minúsculos a desenhar uma nova paisagem. À noite, depois do jantar, o engenheiro estendia as cartas topográficas na mesa da sala, os seus modos galantes. A taberna fechava cedo, o engenheiro foi o primeiro hóspede da casa de pasto: só alguns anos depois a taberna se transformou em pensão. Dona Fernanda

recorda: nessa noite ficaram sozinhos na sala, as cartas topográficas estendidas na mesa, os seus dedos finos, os modos estrangeiros. Tinha quê? Dezasseis anos? O engenheiro olhou-a nos olhos, tocou-lhe os cabelos, os ombros, o rosto, era como se mais nada existisse no mundo para além dos seus dedos finos, os modos galantes. Recorda o primeiro dia em que se despiu diante de um homem. De súbito, no quarto muito escuro, a luz do seu corpo nu iluminou as paredes, o jarro com água, o livro de botânica, as velas de sebo, o lavatório, a pequena cómoda. De súbito, no quarto muito escuro: um incêndio. A luz do seu corpo. Tinha quê? Dezasseis anos? Hoje

será um dia diferente. Dona Fernanda escolhe um vestido de festa, é como se tudo pudesse começar de novo. Atrás do balcão corrido, arranjando os papéis, o livro de registos,

Luísa tem um sorriso rasgado, a saia quase à altura dos joelhos, um decote de furco, o cabelo apanhado num pregador colorido, vem de calafetar as janelas do primeiro andar com um pano humedecido. Atrás do balcão corrido, à espera,

Fernanda muda de sítio o livro de registos, as mãos nervosas. O desconhecido abre a porta da pensão, diz muito bom dia, poisa no chão encerado uma mala de carneira cheia de pó. É claro que há um quarto vago, claro que há um quarto para o senhor professor. Dona Fernanda recorda

o primeiro dia em que se despiu diante de um homem: a luz do seu corpo a iluminar as paredes do quarto, era impossível olhar de frente esse esplendor: um incêndio. O engenheiro cerrou os olhos, as mãos de súbito pelo corpo todo numa aflição, como se uma doença o atormentasse desde o princípio dos tempos. Gritou, saiu numa corrida, uma dor que se adivinhava à distância no escuro da noite. Nunca mais o viu. Na

manhã seguinte encontraram-no morto, suspenso de uma corda, no carvalho da colina da raia. Enforcado. Dizem que tinha os olhos queimados: a pele arroxeada, escamada, fendida, como se um incêndio houvesse lavrado a noite inteira no interior do seu corpo. Hoje

haveria de ser um dia diferente.

[O próprio corpo]

Só lembro o desencontro. Pouco acrescenta o amor quando a ignomínia, mais tarde, escurece o retrato nas dunas, o livro de botânica nas colinas da urze, as pedras do moinho depois da manhã. Posso chegar a tempo, apertar nas mãos o lume do desejo. Só lembro o desencontro, a neve e o vento a percorrer a casa como se o inverno chegasse e ninguém socorresse os últimos náufragos, os que perderam tudo, o amor, o próprio corpo, a nascente da água.

[O esquecimento (outro poema antigo)]

Os meus amigos que nasceram depois
do vinte e cinco de abril chegam a
pensar que a tortura do sono é não ter pedalada
para ficar na discoteca até às
cinco da manhã por falta
de pastilhas
e que uma falha na corrente
eléctrica a meio da noite é o que
melhor pode definir o
conceito de Sombra.

in A Poesia Está na Rua - 25º Aniversário 25 de Abril, INATEL e Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto

sexta-feira, dezembro 10, 2004

Amparo da memória

Ouve a voz que te ampara
e segura de encontro à parede débil do teu equilíbrio.
Ouve-a, àquela que te leva pela mão
na estrada semeada de poças de lama,
soturna, cabisbaixa, cambaleando
junto aos ciprestes que ladeiam o caminho.
.
Olha-a, não escondas os teus olhos plenos
de lágrimas, nem enxugues as gotas
que te escorrem pelo rosto.
Deixa-a recolher cada uma
e guardá-las num lugar sagrado
onde nem tu as encontrarás.
.
Porque te peço, esquece
as palavras que te disse e deixa
de desejar as que não te disse
para mais depressa banires da memória
cada traço de recordação que teimas
em trazer ainda dentro de ti.

Calar

Calar-te-ás antes do sofrimento chegar, durante o sofrimento e, depois, muito depois de este já ter terminado. Quem sabe, assim se consiga fazer com que nunca tenha existido sofrimento algum.

terça-feira, dezembro 07, 2004

7/12

Menina de Ipanema,
com a pesada pena da tua partida
deixas-me em desassossego.
.
Fecho-me em concha,
no fundo do mar,
até ao teu regresso.
.

resumo expresso...

O Governo caiu, o Sporting aproximou-se do Porto, o Porto perdeu, Pinto da Costa foi constituído arguido, o Porto deve ser eliminado esta noite da Liga dos Campeões e ainda sei fazer peixe ao sal. Se isto não são boas notícias, então não sei o que são.

Distâncias

Não é bem a tristeza por estares longe, mas a ausência de alegria por já teres estado mais perto.

(sem título)

sem assombro, sequer vestígios de remorso,
os teus dedos escorregam na maçaneta da porta e abandonam-na
sem se deter a rodá-la,
não lhe dás sequer tempo para mudar de temperatura.
.
fria,
a manhã cola-se ao vidro embaciado pelo meu respirar ofegante
no lado de fora da janela,
onde um pardal terminou a sua vida
enregelado, esta noite,
como as veias que sinto
dentro de mim.
.
não penso, ou melhor, penso um instante,
já é Dezembro outra vez... as miúdas...
tenho de me levantar,
ir às compras...

A via moderna

Há, na via moderna de acesso à Nova Democracia, apregoada por Jerónimo de Sousa no seu discurso de tomada de posse como secretário-geral do PCP, algo de bafiento e simultaneamente novo: as referências ao operariado, aos assalariados, à exploração dos trabalhadores pelos capitalistas desprovidos de valores em relação à classe operária... O espantoso é que tudo isto ainda foi prontamente aclamado por uma militante das bases que teve o seu momento de glória ao conseguir citar um discurso pronunciado por Álvaro Cunhal, se não me engano, na campanha para as legislativas de 82, que terminava com um redondo "viva o Marxismo, viva o Leninismo!".
Obviamente, tudo isto terá a sua graça se situado num contexto histórico, mas no Portugal e na Europa do séc. XXI representa o canto do cisne do comunismo (na Europa civilizada há muito este deu o seu último suspiro) e a chegada dos problemas que lhe andam associados. É que, esvaziado o lugar que este ocupava, os poucos que ainda com ele se identificam e identificavam ficam vazios de objectivos, à deriva, e facilmente caem nos extremismos de esquerda e de direita porque os opostos, como se sabe, facilmente se atraem. Não são os operários, nem os assalariados que me preocupam, como facilmente se perceberá, esses fizeram a sua transição suave a relativamente esclarecida para o socialismo de mercado e para a social-democracia. São os outros, aqueles a quem estes voltaram costas na sua luta de há vinte e trinta anos em busca da liberdade e que cresceram com as referências que agora encontram moribundas, que me preocupam. São os filhos dos operários, dos lutadores, dos explorados, dos assalariados de primeiro grau, esses, os maiores revoltados da nossa franja social. São esses, os filhos dos "outros" de outrora, que a exemplo do que se passa na Europa, alimentam as fileiras dos movimentos extremistas, quem me preocupa, pelo flagelo que podem representar na construção da - o termo afinal é correcto - nova democracia, naquilo em que este conceito, velho de três mil anos pode ser reinventado.

Tens dúvidas?

É claro que te amo; se não fosse assim, porque motivo ficaria abraçado a ti mais de dez minutos de cada vez que fazemos amor?

segunda-feira, dezembro 06, 2004

2-much

Quem Fá Lá Si Noé Gago.

domingo, dezembro 05, 2004

O céu

O inverno, nestas noites frias, com o céu de um azul muito escuro, carregado, livre, é como se nos aproximasse de nós próprios e nos confrontasse com as nossas dúvidas e indecisões, com as nossas perplexidades, com as nossas mais antigas e dolorosas incertezas.

Eleições

Cinha Jardim abandonou a Quinta das Celebridades antes do escrutínio. Mas garante que «não foi por temer as eleições». Sócrates que se cuide...

Gripe

Sou dum tempo em que a Pharmacia era uma instituição respeitável (e a gripe...). Hoje em dia a gente vai comprar uma aspirina e tropeça em cartazes de papelão com a Cinha Jardim a publicitar um anti-gripal...

sábado, dezembro 04, 2004

A lentidão

Tínhamos marcado um último encontro. Haveríamos de nos saber despedir de forma civilizada. Mas a coisa correu mal. Quer dizer: passámos duas horas sem trocar praticamente uma palavra. Com vagarosas lágrimas nos olhos. Desajeitados. Esboçando gestos lentos, cansados, magoados, tão próximos e já tão distantes um do outro no restaurante quase deserto. Despedimo-nos, enfim, sem saber muito bem que palavras se podem dizer quando, de súbito, nenhuma palavra do mundo parece fazer sentido.

E só então compreendi que o senhor sentado na mesa ao lado (esse que tinha chegado antes de nós e o empregado tratara cerimoniosamente por «mestre») era Manoel de Oliveira.

Fiquei em pânico. Temi que a nossa despedida, feita de momentos desconexos, de uma lentidão exasperante, pudesse ser aproveitada como material narrativo na sua cinematografia futura (não esqueço aquele sorriso enigmático quando cruzámos o olhar por um breve instante). E isso era o pior, depois de um tão desolado adeus, que eu imaginava que me pudesse acontecer.

sexta-feira, dezembro 03, 2004

Dois poemas de Jorge Sousa Braga

A sanguinária

Não foi por causa dela
que cercaram o jardim
de muros, com ameias.
Ela chama-se assim
porque a seiva é vermelha,
vermelha como o sangue
que corre nas tuas veias.


A espada de S. Jorge

Se porventura, um dia,
eu tivesse que me armar,
era esta, e só esta,
a espada que eu seria
capaz de empunhar.

in «Herbário», poemas de Jorge Sousa Braga
com desenhos de Cristina Valadas.
(Assírio & Alvim, col. Assirinha, 1999)

Uma carta antiga

Caro Zé Carlos: conforme combinado na gloriosa noite passada, envio-te o Herbário do Jorge. (...) Para mim fica já o prazer de dar-te a ler, em primeiríssima mão, este "horto deleitoso".
Um abraço do
Manuel Hermínio Monteiro

quinta-feira, dezembro 02, 2004

Parques, 1

Não parece má ideia começar a tratar da criação de áreas protegidas em Marte. Entretanto, talvez não fosse pior ver o que era possível ir fazendo com as nossas.

Parques, 2

Prevendo-se que as áreas protegidas a criar em Marte venham a ter «uma regulamentação semelhante à dos parques protegidos da Terra», há razões objectivas para temer o pior no planeta vermelho.

Despojamento

Andei em vários cercados recolhido,
dos crispados olhares do mundo
do ouro e das tiaras
do brilho dos diamantes
da riqueza das nações
.
Vibrei no esplendor dos versos
da poesia, dos campos, do trato
soberano dos sentimentos puros
que me incendiaram a alma
em demanda da harmonia que busco.
.
Não me queiram mal por isso,
o despojamento e o rigor do desapego
são a última coisa que me resta
depois do convencimento
de que o amor, essa luz,
.
não existe já no teu semblante
e é uma quimera que apenas
perdura na minha memória
como uma doce e gentil
promessa de glória.

Silêncio

Não te saberia dizer tudo o que me apetece. Nem porventura o que não me apetece. Não esta noite, não hoje Por vezes, como em várias ocasiões te referi, só devemos proferir palavras que consegam ser tão doces como o seria o próprio silêncio. Bem sei que não é isso que nos dizem normalmente os psicólogos e os técnicos da psique, mas o silêncio, até prova em contrário, não será igualmente o pior dos caminhos. Por isso, o desvalor ou o seu contrário, a valoração da conduta que cada uma das nossas atitudes assume face ao outro não pode ser hiperbolizada como por vezes o fazemos.
Já te referi bastas vezes aquela entrevista de Gabriel García Marquez, não aquela em que faz a apologia de Fidel Castro; refiro-me antes à outra onde menciona que não se devem pronunciar palavras, sejam elas quais forem, de raiva, de confronto, de discussão, sobretudo a quente. Se possível, devemos mesmo guardá-las dentro de nós e nunca as devemos pronunciar seja em que contexto for. Bem sei quão difícil isso é, e quão errado isso pode parecer à primeira vista. Bem sei que nem sempre foi assim entre nós. Mas hoje, e depois de hoje, amanhã, podemos ao menos tentar que assim seja? Tentar, apenas tentar...perceber que o outro entende e aceita.

O bombeiro de Londres

Por onde andará Peter, o bombeiro de Londres, que, sozinho e sem quaisquer conhecimentos extraordinários, reconstruiu completamente sozinho durante dois anos um Colin Archer e com ele navegou em solitário para Portugal? Já em Portugal, Peter conheceu uma sua conterrânea por quem se apaixonou e ela pelo seu modo de vida. Verificando que o mar a deixava infeliz, Peter decidiu vender a embarcação, sedentarizar-se, e seis meses depois constatou que não encontrara aquilo que buscara; uma não era já irremediavelmente sua e o coração da outra nunca fora.
Aceitando o seu destino, na última vez em que vi Peter, este tinha terminado de reconstruir o Stella Maris, um ketch em aço que foi recuperado das areias da Ria do Alvor e tinha de regressar a Inglaterra para resolver um problema de família. Saúde Peter, brave heart!

Amnésia

Nas minhas noites
há duas luas
não me digas que estou louco,
porque as vejo perfeitamente da janela
donde te escrevo, ou penso que escrevo, porque
me induzem a pensar assim as dezenas de folhas rasgadas,
em branco,
que todas as manhãs apanho debaixo do parapeito,
no canteiro das rosas secas.
Não é loucura, é amnésia...
como é boa esta amnésia de ti.

Talvez seja tarde

O vento de novembro deixa nos telhados uma espécie de magoada incerteza.

O desejo

Não voltarás a dividir com o medo essa estranha forma de júbilo, esse inesperado ardor que regressa de onde nem suspeitavas que alguém se recolhesse do frio ou afastasse com as mãos a tempestade.

quarta-feira, dezembro 01, 2004

Política

Estávamos quê? Em finais dos anos setenta, inícios dos anos oitenta. O congresso da JSD haveria necessariamente de ficar marcado para sempre nas nossas vidas: porque todos os nossos sonhos têm um começo, e este começava nesse dia: em Montechoro, no Algarve (num hotel cuja envolvente - anárquica, de estaleiro de obras -, enfim, não condizia muito com a nossa ideia de futuro; mas também isso, claro, haveríamos de mudar).

Logo no balcão das inscrições, nas conversas de circunstância antes ainda do começo dos trabalhos, alguma coisa nos aproximou: e no intervalo para o café, ao fim da manhã, eu e C. M. discutíamos já as teses, os princípios de actuação, as propostas de orientação política. Abdicámos do almoço. A uma mesa baixa do átrio do segundo piso, junto aos elevadores, esboçámos a moção de estratégia. E lembro-me de, entusiasmado, a meio da redacção, dizer ao C. M. que os nossos sonhos não tinham limite no horizonte visível (nessa altura usávamos expressões grandiloquentes: «quando formos escolhidos para servir o País...»).

Concluímos a moção de estratégia muito tarde da noite, depois de vários percalços (a discordância, por exemplo, de um companheiro do Porto cujo nome, desde que o autocarro nos levara ao hotel e fomos apresentados, me fascinara pelo equilíbrio e por um marcado rigor: duas palavras, ambas começadas por R, ambas com três letras e uma ténue, fascinante aliteração).

A nossa moção foi indecentemente chumbada em escrutínio secreto. Custou-nos, é óbvio. Mas nós estávamos do lado do sonho. Era, portanto, uma questão de tempo. E o tempo jogava a nosso favor.

A verdade é que nunca mais nos encontrámos.. Nunca mais ouvi o seu nome. Nunca mais. Penso muitas vezes nele. Na sua alegria. No seu entusiasmo. Na sua disponibilidade. No destino que nos estava destinado. Nos sonhos que, por um momento, desenhámos juntos: num tempo em que nos defendíamos na certeza de que o futuro estava do lado dos sonhos que sonhávamos.

Às vezes penso que C. M. talvez tenha comprado a quinta no Alentejo ou a casa em Trás-os-Montes, junto ao rio, de que falava tantas vezes. E fico feliz. Mas o mais certo é que continue ainda enredado nesse labirinto de sonhos e que, como eu, seja agora um triste e desiludido técnico superior com requerimentos a pedir licença sem vencimento, perdido na ilusão de que é possível afastar-se do mundo, e ficar assim, fora do mundo, a tratar das amendoeiras, do escarificador, da tijoleira das açoteias, dos albricoques, dos pomares de citrinos...

terça-feira, novembro 30, 2004

Cruzamentos

Por vezes, quando menos esperamos, recordações de um passado distante acometem-nos pelo espaço de horas, ou de dias. Pessoas, lugares, acontecimentos... coisas que fazem parte de nós, de um passado que teimamos em preservar, como às ruínas de um templo. Por onde andará Carlitos, o colega de carteira que tive nos primeiros anos e que um dia soube, tinha levado um tiro de um vizinho? Que é feito de Jack, o velejador solitário que, acabado de atravessar o Atlântico no seu veleiro de 7,80 m, partilhou comigo a sua última cerveja de bordo à chegada a Faro e um dia, cansado das avarias do seu sistema de quilha retráctil, fixou-a definitivamente ao casco da sua embarcação. Quando lhe observei que dificilmente conseguiria bolinar assim, disse que isso não era problema, porque tinha decidido transformar-se num gentleman e os gentlemen não navegam contra o vento. Ignoro se regressou à sua Escócia natal, ou se errará pelo mundo. São cruzamentos, não etapas, nem marcos, mas que rasgam e marcam. Saúde Carlitos. Saúde Jack.

Fronteira

Sim: não desconhecia que às vezes é muito estreita a fronteira que separa as muralhas e as ruínas.

segunda-feira, novembro 29, 2004

Laura

Era quase uma doença: chegava a casa e corria para o computador à espera de encontrar um novo post. Começava a acreditar que aqueles textos eram escritos para mim. Como se nos conhecêssemos. Como se nos conhecêssemos desde sempre.Como se não houvesse segredos entre nós. Como se os meus próprios pensamentos fossem nascendo das frases que ela escrevia em http://lauravaz.blogspot.com - ou seja, como se o futuro só existisse porque alguém acreditava num futuro onde haveriam de caber os nossos sonhos e as nossas vidas.

Começámos a comunicar por mail. Compreendemos que o mundo estava à nossa espera. Não tardou que marcássemos um encontro. Em Évora. No dia 27 de Novembro. Às 16.00 horas. Na Residencial Riviera. («O primeiro a chegar fica sentado no maple castanho do átrio.»)

Cheguei cedo: eram 15.42. Ela tinha chegado ainda mais cedo. Levantou-se (só pode ser ela, pensei; só pode ser ele, terá ela pensado...), ficámos interditos por um instante, dissemos apenas: «olá». Subimos ao quarto 209. Quase não falámos: não saímos do quarto: o amor protegia-nos do mundo.

No dia seguinte, ao fim da manhã, depois de termos marcado um novo encontro, despedimo-nos com lágrimas nos olhos. Pediu-me que não descêssemos juntos: «não suportaria olhar contigo a luz intensa das ruas da cidade».

Desci, portanto, alguns minutos depois e vi uma mulher sentada no maple castanho do átrio: vestida de azul; lindíssima; triste; uns olhos ausentes.

O empregado da recepção estendeu-me o recibo e disse-me (piscando o olho esquerdo, baixando a voz até ao cicio) que «a marmanja» estava ali desde o dia anterior; que, curiosamente, tinha chegado alguns minutos depois de mim; que, desde então, não dissera uma palavra; que passara ali a noite; que era como se estivesse à espera de alguém a quem quisesse muito; alguém a quem quisesse tudo.

Fiquei sem um pingo de sangue. Senti-me o mais desgraçado dos seres à face da terra (só então me ocorreu que nem sequer perguntara o nome da mulher de quem acabara de despedir-me; que o seu nome, provavelmente, não era o nome que me levara ao encontro do amor).

Aproximei-me da jovem vestida de azul. Ela ergueu os olhos (húmidos, vermelhos de sangue) à altura dos meus olhos. Disse-lhe (em desespero, muito a medo): «Laura?...» E ela (a voz cansada, trémula, já quase indiferente, arrastando-se; a voz de quem desistiu): «Zé Carlos Barros?...»

domingo, novembro 28, 2004

Os nossos nomes

Encontrámo-nos muitos anos depois. Eu continuava a amá-la como nesse tempo. E ela (pressentia-o) continuava a amar-me como nesse tempo. Quase não trocámos uma palavra. Sabíamos que tudo o que disséssemos haveria de virar-se contra nós - quando a água da chuva escorresse nas ruas, quando a luz do trovão iluminasse o pátio, quando o calor de Julho arrastasse pelas veredas a memória dos troncos dos vidoeiros onde gravámos, a ponta de navalha, os nossos nomes.

sexta-feira, novembro 26, 2004

A confiança

Deposito nas tuas mãos
o que nem às sombras
e aos vultos furtivos
da minha imaginação
ouso confiar,
.
para que saibas,
se a loucura me atingir
e a demência me diminuir,
que houve dentro de mim
um amor
.
como nunca houve,
que nunca morrerá
e assim permanece
como o fim último
do meu viver.
.
Guarda, meu amigo
este segredo,
como se fosse o teu bem
o teu bem mais precioso
como foi meu
.
É o que te peço,
Meu amigo
de todas as horas.

Os anúncios de convívio

Os espelhos, não raro, devolvem-nos imagens de uma realidade que supúnhamos distante. É o caso das imagens que nos são devolvidas pelos textos dos anúncios «de convívio» que os jornais inserem abundantemente. E aqui não se diga que as leis de mercado são distorcidas por factores exteriores ao fenómeno - subsídios, intervenção estatal desajustada, interferências editoriais: ou seja, em poucas situações haverá uma tão estreita ligação entre o que o mercado oferece e o que o mercado procura. E é esse o abalo... Vejamos, então:

Quanto à idade, as propostas polarizam-se claramente em dois grupos: o das meninas (dos 18 aos 23 anos) e o das senhoras maduras («quarentona»; «cinquentona»), sendo evidente o vazio no escalão que vai dos 23 aos quarenta e tais.

O critério profissão/habilitações literárias não parece ser relevante. Ainda assim, há referências várias a professoras, universitárias e licenciadas. Num anúncio, a proponente garante que é «univercitária» (e se calhar é).

Abundam as viúvas, as divorciadas e as casadas infiéis, não se encontrando referências a meninas (ou senhoras) celibatárias. A virgindade também não parece ser propriamente um valor, embora haja o caso surpreendente de uma jovem que garante ser a «1ª vez» (presume-se que este anúncio, por óbvia impossibilidade material, não apareça em futuras edições do periódico).

Em alguns casos (raros) faz-se referência a um «corpo bem torneado». Mas as preocupações parecem caminhar num outro sentido: «gordinha», «muito gordinha», «rechonchuda», «perna grossa», «tornozelos fortes», «anca larga»... Nada de magreza, nada de regime alimentar light (enfim, isto também não é propriamente publicidade televisiva aos iogurtes)...

Desiluda-se quem pensar que abundam seiozinhos que não encham mais que a mão. Aqui é só de 40 para cima: «busto XXL», «busto grande», «seios 50», «peitão», «seios fartos». Curiosamente, o tamanho não é o critério mais relevante no que respeita ao bumbum (sem prejuízo de algumas «bumbumzudas»). Veja-se: «bumbumzinho ladrão», «bumbum comilão», «bumbum apertadinho», «bumbum maroto». Mas quanto a isto (e quanto à «chupadora», ao «chupa-chupa», à «boquinha gulosa», à «chupadora gulosa») - sei lá... Não estaríamos era à espera de assistir a tanto orgulho na exposição de alguns outros atributos: «peludinha», «peluda» e «peludíssima» parecem ser relevantes exemplos...

Há jornais que enchem diariamente quatro páginas de anúncios de convívio.

Celebridades

«Betty Grafstein não vai estar hoje com Guilherme, o filho de José Castelo Branco, que faz dezasseis anos. Mas não se esqueceu do aniversário do rapaz. "Já mandei o motorista deixar-lhe um cheque", conta a joalheira».

[Jornal 24 Horas]

Im-prensa

Arguido, à saída do tribunal: "Não presto mais declarações."
Jornalista: "Por que razão não presta mais declarações?"

quarta-feira, novembro 24, 2004

A força do destino

um barco, o "forza del destino" rasga a vaga rebelde que açoita a costa à força do braço dos seus tripulantes, uma e outra vez, desliza na orla e na cava. vem carregado de peixe nas entranhas, a faina da noite foi proveitosa, os homens rejubilam, a semana está ganha à chegada. O mar dá, o mar tira, a vaga que desce também sobe. há homens na água agarrados a nada, roupas ensopadas de água gelada, o barco desapareceu, engolido pela força do seu destino. pela manhã haverá viúvas e órfãos na praia, funerais sem corpos, missas prolongadas em memória das almas que nunca temeram a deus, mas souberam comer o pão que o diabo amassou.

terça-feira, novembro 23, 2004

Fio

Algumas pessoas, por um acaso que não é costume repetir-se em muitos lugares e em muitas épocas, são um dia tocadas por um Fogo que apaga, à excepção de uma única, todas as imagens do mundo. Então é provável que se percam num labirinto onde só uma coisa, obsessivamente, os interessa. Há quem tenha sido tocado pela ideia do Império, do País, da Árvore, do Jardim, da Cidade, do Jogo, do Ódio, da Pátria... Todos, menos os que foram tocados pelo fogo incombustível do Amor, dispõem de uma espécie de fio de Ariadne que lhes permite guiarem-se pelos infinitos corredores do labirinto. Ajudados por esse fio, é possível que alguns acabem por encontrar o caminho de regresso (conhecem-se relatos a confirmar essa rara possibilidade) e lhes seja concedido o dom da restituição integral das imagens do mundo.

segunda-feira, novembro 22, 2004

Quase tudo

Meu Deus: eu, quanto ao ténis, é como diz o outro: mas que saudades do resto (que é quase tudo)...

domingo, novembro 21, 2004

[Quase o universo]

Quase o universo
nestas cinco sílabas.
Um fechar de pálpebras.
O primeiro verso.

As frases mais íntimas
de todas as páginas.
O rumor das aves
descendo a península.

Os ramos das bétulas.
Os caules do trigo.
As cartas inéditas.
Um amor antigo.

Mas falta o retrato
na sombra das tílias:
o mundo separa-nos
só por cinco sílabas.

sábado, novembro 20, 2004

Neve

Os troncos erguidos das bétulas.

Antes da água

As raízes dos amieiros nos taludes da margem.

Tarde

As folhas dos olmos quase incendiadas.

Do amor

Os ramos azuis, inúmeros, leves, das amendoeiras jovens.

O medo

A tristeza, a tristeza adolescente, a tristeza sem outro nome, procura refúgio na sombra iridiscente das oliveiras do inverno.

[as palavras]

O que me preocupação
as palavras. Não o que signi
ficam
ou partem.

sexta-feira, novembro 19, 2004

nicotina sob os lençóis

alta noite. horas sem fim mergulho no pesadelo da falta de cigarros, sufoco por falta de nicotina. e tu, submersa no lençol de seda negro que a tua mãe nos deu, prenda de casamento, nem te moves, um gesto que seja, por compaixão. como te odeio e à tua insensibilidade imaterial. talvez um dia fumes e eu não. mas amo-te, já nem me lembro, que imbecil sou, porquê. tu e os teus, os da foto que insistes em abandonar todos os dias na tua mesa-de-cabeceira. como odeio tudo isto, mas não saberia viver sem ti. deve ser isto o amor, porque sei que amanhã sorrirei quando abrir o primeiro olho da manhã e te vir ao meu lado ou sentirei tristeza se já estiveres na tua rotina de casa-de-banho. merda de vício, que me consome. como te odeio por não me conseguires fazer abandonar o SG.

Agonia

A agonia de ler as tuas palavras, o desespero que está latente em cada uma delas, a forma como encarnas isto... não saberia escolher nunca as palavras certas para to dizer, nem que pensasse um milhão de anos e não tinhamos tanto tempo. Percebes?

Algarve...

Eu vivia no Paraíso e um dia descobri que mo roubaram.


quinta-feira, novembro 18, 2004

Medo

Tínhamos medo de tantas coisas. Tínhamos medo de tudo. Medo de termos medo, medo de sermos demasiado corajosos, medo da humildade, da obscuridade, dos agentes da autoridade, da petulância, dos políticos, da literatura, da sobranceria, do desdém. Por isso passávamos dias inteiros na cama, longe de tudo, longe do mundo. Não era isso o amor?

Filmes

Passámos uma tarde a escolher os vídeos, combinámos o dinheiro que nos era possível gastar (nesse tempo precisávamos de tão pouco para sobreviver ao mundo...) e depois ficámos dias inteiros sem sair de casa, fechados em casa, deitados, a ver os filmes e a rever as cenas em que, por um instante, depois das ravinas, o mundo regressava a um intenso (quase inverosímil) apaziguamento. Só desejávamos isso: passar por todos os perigos, sobreviver a todos os perigos e continuarmos a acreditar no amor.

Cuidado

Hoje lanço um livro.
Desculpa se te magoar a cabeça, meu amor.

quarta-feira, novembro 17, 2004

Ar

Gosto do desejo
mas afogo-me
na vã esperança de te encontrar.




[A Arte]

Tenho um amigo que pintava, indiferente
mente, por encomenda: paredes
das fábricas, gradeamentos
metálicos, quadros a óleo.

Vou quase por caminho
igual: escrevo, com emoção
igual, minutas de ofício, textos
literários, versos a metro para antologias
poéticas de circunstância.
E já nem se me dava, por convite,
alinhavar um soneto com as
sílabas contadas pelos dedos dos pés.

Ah! Se eu pudesse suicidar-me por seis meses
e recomeçar depois,/ achando tudo
mais novo.
Olhar de novo, pela primeira
vez, a cal dos muros, a flor
inúmera da urze, a água
da penumbra nas encostas frias.
As manhãs de junho vagarosa
mente.

Um dia, por cansaço, descobrimos
que a arte é mentira.
Que/ o sol é sempre o mesmo e o céu azul.
Que tanto
faz como fez.
Que o sorriso da Gioconda ou um
romance de Conrad
podem não valer a porosidade de
um tecto pintado a tinta de areia
ou a sombra dos guindastes
no cimento das zonas portuárias.


publicado em Junho de 2000 no volume colectivo «Recomeço Límpido- No Centenário de José Gomes Ferreira»

terça-feira, novembro 16, 2004

Lembras-te?

Namoravamos por baixo das laranjeiras
enfeitando os cabelos com as flores
enquanto o perfume dos caules arrancados
e a seiva escassa
se nos impregnava na roupa
e na pele

À tardinha, a inocência tolhia-nos os movimentos
e levava-nos de regresso à infância
onde a ausência de pudor
e o simples desejo imberbe
nos salvava do irresistível pecado
da carne

Nesses dias, em que o Sol
se escondia por trás dos galhos
mais baixos e as nuvens não apareciam no céu,
ficavamos a ouvir a nossa respiração compassada
com os murmúrios do riacho
que por ali errava, serpenteando

Aí, distraidamente, enrolava
os teus cabelos nos meus dedos
e conspiravamos que o mundo acabaria
assim para que tudo fosse perfeito
e tu e eu ffizessemos sentido
Como se apenas isso fosse possível.

segunda-feira, novembro 15, 2004

Mãos

Queima-me teu rosto ao tocar-me nas mãos
e ofuscam-me teus olhos
tamanha luz não é, contudo, suficiente
para alumiar as minhas trevas
nem secar as coroas de flores.

Ostra

Cresceu-me uma pérola no coração
consequência
da concha em que o encerrei.

Hesito,

entre deitá-la ao mar
ou conservá-la dentro de mim enquanto
aprendo a viver

novamente.

A aventura

São um punhado de homens e mulheres e encenam uma das maiores aventuras da Era Moderna, comparável à subida do Evereste em solitário e sem oxigénio, à ida a um dos pólos da Terra ou a uma descida em apneia no mar abaixo dos cem metros de profundidade. Alguns não voltaram da viagem, mas mesmo assim há quem esteja disposto a arriscá-la. Por prazer, ou apenas para se superar a si próprio. Poucos dos que a disputaram voltaram an disputá-la e sobretudo nenhum dos precedentes vencedores regressou, a não ser para alcançar a vitória que por qualquer razão escapou numa tentativa anterior. A Vendée Globe é uma regata disputada à volta do mundo em veleiros de 60 pés (18,58 metros) tripulados apenas por uma pessoa, sem assistência e sem escalas sob pena de desqualificação . A largada foi no passado dia 7 de Novembro, de Les Sables d'Olonne (França) e aí deverão regressar os concorrentes dentro de aproximadamente 90 dias, depois de terem circum-navegado o mundo passando pelos mais inóspitos mares. Os concurrentes estão actualmente a descer a costa atlântica de África, em seguida dobrarão o Cabo da Boa Esperança, percorrerão todo o Índico Sul, dobrarão o Cabo Leewin no extremo Sul da Tasmânia, entrarão no Pacífico para saírem deste inferno no Sul pela porta do Cabo Horn, à máxima latitude da América Latina, de onde subirão novamente pelo Atlântico, passando ao largo dos Açores e retornando ao ponto de partida.
Nesse percurso, estes aventureiros terão percorrido perto de 23.000 milhas (43.000 kms)dobrado os três mais perigosos cabos do mundo, enfrentando vagas de cerca de 20 metros no Pacífico Sul à aproximação do Cabo Horn e ventos com cerca de 60 nós (perto de 110 kms/h) de força.
O comum dos mortais pode acompanhar hora a hora a posição dos concorrentes, as condições meteorológicas e do mar encontradas, bem como algo mais no que toca a relatos, experiências, imagens em directo e em diferido no site da organização cujo link é fornecido acima. Recomenda-se, até porque só se disputa de quatro em quatro anos.

Limites

Podes molhar a terra com a água das nascentes, com as águas superficiais das albufeiras, com a água dos canais dos perímetros de rega: em vão. A terra só cheira a terra molhada quando chove.

domingo, novembro 14, 2004

O amor é

não gostares de futebol e ires comigo ver o Olhanense.

Quase o Inverno

As folhas das árvores mudam de cor enquanto os nossos olhos se movem.

Pleonasmo

O nosso amor é antigo. Começou nessa terça-feira de Carnaval em que, mascarados, longe do mundo, cúmplices, as nossas mãos, por um instante breve, se tocaram; e, quando a tarde começou a cair, nos olhámos, olhos nos olhos, por um instante breve. A vida separou-nos. Separou-nos sempre. Continua a separar-nos. Nunca falámos disso. E isso é o menos. Amo-te como no dia em que as nossas mãos, em segredo, longe do mundo, por um instante breve, se tocaram.

sexta-feira, novembro 12, 2004

Inverno

Vivíamos na ilusão de que o amor permanece contra as filas de trânsito e os horários de trabalho, contra o preço dos iogurtes e as revisões do carro, contra os prazos dos empréstimos, as avarias do vídeo, as portagens criminosas na Via do Infante. Vivíamos na ilusão de que o amor era um território imune à erosão do quotidiano. Hoje sabemos que não é assim. Mas sabemos também que sem o amor até o rumor da tempestade (meu amor) nos deixa frágeis, alarmados, sobressaltados, desprotegidos.

quinta-feira, novembro 11, 2004

Pintura

Nessa altura julgávamos que o amor era um dado adquirido. Por isso deixávamos só o tempo passar. Por isso não reparámos logo que aos poucos íamos ficando menos próximos, menos cúmplices, mais desatentos das coisas do amor. Um dia encontrámo-nos no museu por acaso e estranhámos - nós que andávamos sempre juntos - não ter combinado a visita à exposição do Palolo. Olhávamos os quadros e surpreendeu-nos não coincidirmos nas escolhas. De súbito, pela primeira vez, era como se cada um de nós tivesse que percorrer o seu próprio caminho. De súbito, pela primeira vez, era como se o amor não nos pudesse socorrer. E saímos da exposição com a nítida sensação de que já não havia mais nada que valesse a pena dizer um ao outro.

quarta-feira, novembro 10, 2004

[O lume]

Pequenos triângulos te cercam dum e outro
lado, para além das janelas e dos quartos
fechados por dentro, para além dos vastos
campos onde a madrugada poisa

junto ao rio. Para além de ti e do passado, é
um triângulo ainda o que te leva longe
e perto, ao brilho das nogueiras contra
os panos das saias e a roupa

escondida, ao encontro que demora o
tempo que demora o riso nas pálpebras, que
devora o tempo entre dois nomes fáceis.

É um jogo antigo a que não sabes fugir,
tão próximo do fogo, do lume e
das mais fundas e secretas confidências.

[O Futuro, ou A Cidade dos Prodígios]

Era assim o futuro nas nove cartas em círculo:
três mulheres e um fim trágico.
Mas antes a fortuna, a glória, a morte e
um lugar (Sant Climent) onde regressaria

tantas vezes quantas as moradas do sangue,
os seus caminhos na neve. De pouco servem
as palavras, as decisões difíceis, uma pistola
escondida no bolso das calças, de pouco

serve a paixão contra o destino: todos os
nossos sonhos, diria mais tarde, foram escritos
antes. Escrito estava ainda que voasse
sobre as ruas e as casas de Barcelona com María

Belltall, que perdesse a rota de Montjuich
e finalmente se despenhasse num mar parado
e luminoso, longe da costa, como se a paz
e o amor só assim pudessem coincidir

terça-feira, novembro 09, 2004

Berlim

No instante preciso em que comemoramos a queda do muro de Berlim, num outro lugar do mundo alguém continua, pedra sobre pedra, diligentemente, a erguer um novo muro. Daqui a alguns anos também esse muro será derrubado, enquanto, simultaneamente, num outro lugar do mundo, alguém, pedra sobre pedra, continua, ou começa, a erguer um novo muro. Etc.

segunda-feira, novembro 08, 2004

Perda

Porque o tempo que passou não volta
Nem voltará no futuro
E já não será possível voltarmos
A caminhar pelas mesmas pegadas
Que até aqui nos trouxeram
E que o mar apagou na preia-mar
.
Temos de nos conformar com a ideia
Que te perdi e tu me perdeste
Algures na linha onde a areia
Se separa das vagas que morrem
Na praia, todos os dias,
Também como nós

.
A pouco e pouco...
.
E no entanto só me restam
na memória
os bons momentos porque
todo o negrume se apagou.


[A ordem do mundo]

A luz começava nas manhãs de junho
a meio da encosta
para que a ordem do mundo pudesse pressentir-se
no pátio
vagarosamente
subindo os degraus.

É a vida

Os sonhadores temem, como ninguém, as insónias.

sexta-feira, novembro 05, 2004

As provas

Uma vez, há muitos anos, mergulhámos as mãos num tanque de pedra. Já esquecemos quase tudo. Foi há muito tempo. Às vezes suspeitamos que esse tempo não existiu, que o tanque não existiu. E no entanto as nossas mãos não chegaram nunca a secar. Essa água escorre-nos ainda dos dedos.

quinta-feira, novembro 04, 2004

Finados

Lembro-me da cor baça dos teus olhos, da névoa que os cobriu, da distância do teu olhar, da indiferença dos teus últimos dias face à doença que te levou. Lembro-me das brincadeiras que tivemos na minha infância, da tua infinita paciência, das aulas de vida que me deste, tu, que nem sabias ler e muito menos escrever. Lembro-me das histórias de mar, das tragédias humanas que contavas sem agrura, das semente da minha paixão, do incitamente à aventura num elementos que me ensinaste a amar e a respeitar. Lembro-me quando lançaram o teu ataúde à terra e as primeiras pazadas de areia que o cobriram. O menino que fui e preservo apenas dentro de mim jamais esquecerá isso, nem o lais de guia, o nó direito ou a volta de fiel. E as histórias que quero trazer sempre comigo a modos de te fazer perdurar pelo menos no tempo que o destino me permitir cumprir. E já passaram vinte e um anos, avô...

quarta-feira, novembro 03, 2004

Georges de la Tour

Tarde cinzenta. Chove. E no entanto as folhas dos jacarandás do jardim da Alameda brilham ainda. Como se houvesse uma luz específica, uma luz própria, no interior de todas as coisas que recusam a sombra do inverno.

[os valores]

A crueldade tem a sua pátria.
A rapariga olha da janela o dia a crescer
e é como se o medo sobreviesse
à idade: a memória acende no quarto
as suas lâmpadas de água.

Não tarda o inverno.
Não tarda a sementeira do trigo.
As crianças regressam a casa
e abandonam os muros do largo, a pedra do tanque.

É como se tudo estivesse certo.

sexta-feira, outubro 29, 2004

Alegoria breve, 4

Aprende com as crianças: desenha remoinhos nas águas paradas, quase apodrecidas, do tanque.

Alegoria breve, 5

Deixa que uma única palavra regresse às páginas do teu livro em branco.

Alegoria breve, 6

Atravessa a rua como a luz de novembro adormece nos ramos azuis das figueiras.

quinta-feira, outubro 28, 2004

O fauno

Um fauno peludo dança
Na tua direcção,
odiosa criatura
cuspindo viscosas palavras,
imprecações sanguinárias
que ferem como ferro
e fogo, a carne desfeita
de cada sílaba que oiço.

O vómito sulca as minhas entranhas
ao mesmo tempo que o céu que se abre
para permitir a passagem de um arco-iris
que o crepúsculo anuncia
sob o milagre
dos últimos raios de Sol
que por engano
julgamos serem os últimos da eternidade.


Erro,
porque os faunos não são eternos.

Os líderes

É interessante constatar que os dois mais recentes líderes do PSD acabam de sofrer duas pequenas derrotas que têm por cerne, precisamente, o triunfo da democracia. Um, Santana Lopes, envolve-se num mini-escândalo do qual sai beliscado devido à tentativa de controlo dos media. Outro, Durão Barroso, devido ao reforço de poder do Parlamento Europeu. Num e noutro casos, goste-se ou não, o contraditório e o livre direito à opinião prevaleceram sobre a vontade desses líderes. E é este auto-controlo da democracia, este sistema de contrapoderes que faz da democracia o mais equilibrado dos sistemas de governo à face da Terra que deve ser ressaltado e ressalvado. É ainda, por outro lado, esta divisão em que assentam a maioria dos sistemas parlamentares ou semi-presidenciais europeus que constitui o último reduto defensivo da constelação de direitos, liberdades e garantias fundamentais que tão arduamente foi conquistada ao longo de todo o séc. XX que urge consciencializar e, sobretudo, fortificar para melhor defesa.

Incêndio

Consumam-me as chamas
para que no fim desse incêndio,
nada de mim reste que não
apenas
palavras queimadas.


quarta-feira, outubro 27, 2004

Sinto
a fé
que apodrece no meu coração,
.
obra de um Deus que não escolhi.

terça-feira, outubro 26, 2004

Ah, se é por uma questão de pedagogia

Um professor do primeiro ciclo é acusado pelos encarregados de educação de gritar, ameaçar, usar linguagem imprópria e arrear forte e feio nos alunos. A presidente do conselho directivo optou por manter o professor em funções até à conclusão do processo, garantindo que o mesmo será sempre acompanhado por uma outra docente, de vigia. Mais adianta que se poderia ter optado pela expulsão, mas que «essa não seria a medida mais correcta, uma vez que aqueles alunos já tinham mudado uma vez de professor e estas trocas constantes não são pedagógicas».

Pois bem certo é que estamos sempre a aprender com quem sabe.

Eu é que sou o porsidente da junta

O líder político duma distrital lamenta-se de a sua Região não ter no Governo a representatividade que devia. E portanto essa determinada Região não é tão bem defendida em Conselho de Ministros como outra Região numericamente melhor representada. Ora a gente pensava que aos senhores ministros competiria a salvaguarda do interesse nacional, e não tanto os interesses do bairro fiscal, da freguesia ou da comunidade urbana onde nasceram.

Pois bem certo é que estamos sempre a aprender com quem sabe.

segunda-feira, outubro 25, 2004

Frio

Cala-se o riso
e o ruído das correrias
das crianças.
A água gela
no lago do velho moinho
em cada manhã de névoa

E o espesso manto do velho
que dorme sozinho no jardim
desfaz-se sob a geada
que sobre si se abate,
como uma terrível
maldição indesejada.

Sob o frio cortante,
estão imóveis os lábios
e as crianças já não riem
como prisioneiras
de uma felicidade
que apenas se evaporou

e já não transpira
pelas margens verdes nem
por sobre as folhas dos plátanos.




Os agaves

O outono demora a trazer-nos a luz tão breve de novembro: perde-se nos poentes, nos ramos quase secos das amendoeiras, na faixa de névoa que se espalha sobre os campos lavrados das fazendas onde não avançou o betão dos loteamentos. Mas a meio da tarde, por instantes, chegamos a pressentir que essa luz nos vem poisar nas mãos e que o inverno, finalmente, pode começar: no odor do café, nos trabalhos domésticos, no azul dos agaves que não iniciaram ainda a derradeira (e única...) floração.

sexta-feira, outubro 22, 2004

Três dias apenas

Sangue,
sob o Sol
frio de Outubro,
negro dilúvio
derramado
em pétalas
de rosa carmim,
é esta a cor da
tua ausência.

Volta depressa,
mata-me a saudade,
tira-me de cima
este peso brutal.

[Três poemas]

Constantino Paustovski

Uma e outra palavra se perdem no decurso
das viagens, um e outro nome, o fluir
monótono de rumores indecifráveis,
águas onde nunca mais virá o sonho

usar as suas frases, um e outro modo
de lembrar as coisas, mínimos sinais
dum amor que raramente demorou os lábios
nesta margem, litorais por onde

o próprio aroma do desejo se perdeu.
Falo da tua voz tranquila, da mata de
bétulas e do caminho de casa, do medo
de esquecer a cor do teu vestido azul,

a caligrafia inúmera das tuas cartas e dos
teus postais. Mas quase sempre é tarde,
quase sempre me demoro para lá da viagem
onde mesmo a morte vem para morrer.


Heinrich von Kleist

A morte nos dirá enfim o nosso nome
verdadeiro, os nossos modos de lembrar as
coisas, o desejo dum lugar onde a verdade
e o amor aproximem a luz do primeiro ao

lume do segundo, talvez o inamissível
sortilégio de por uma vez nos termos
encontrado. Nada sabemos de quanto nos
ensinaram, nada sabemos para lá do que

soubermos descobrir errando a alma em
recônditos lugares, inatingíveis latitudes.
Caiando de sombra a transparência não
oblíqua sobre os muros das cidades,

a ignomínia reina como se tudo fosse um
reflexo dos seus gestos e nada mais
restasse, amiga, que trocar de roupa e
procurar um mapa de silêncio para morrer.


Mário

Se te conheci foi numa página ímpar dum livro
de poemas e não, como dirão talvez para tornar
verosímil uma história que nunca o poderá
ser, em montmartre ou nas folies bergère.

Se te conheci tinhas o cabelo curto e um anel de
prata, nenhum outro adorno ou adjectivo, e
pouco valor tudo quanto me dissesses ou
levasses a dizer. Se te conheci foi para

fingir ter dado importância às tuas palavras,
no fundo para que em ti e no mundo, num
qualquer instante sem poesia ou outro
fingimento, houvesse de novo alguma importância,

um pouco de mistério. Sejamos claros: o desejo
é sempre singular e cruel: se te conheci
foi apenas para que me fosse mais custoso
olhar o passado ao preparar-me para morrer.

Inquietude

Ao romper da primeira luz,
na penumbra da alvorada clara,
enquanto embalas o sono profundo,
revejo tantas vezes, incansavelmente,
o teu rosto de menina
acabada de nascer.
.
Nesses preciosos momentos,
desesperadamente efémeros
Abandono-me à saudade
dos nossos primeiros dias,
as noites em desassossego,
o teu choro de criança
.
que não quero perder.

[Bernardo Soares]

Nenhuma fotografia fará subir a chama
da paisagem acima da janela do terceiro
andar deste prédio. O real é uma abstracção
inútil, uma eternidade a que tivessem

cortado a sua face de sonho, um coração
onde nada pesa que não seja o peso leve
dos sentidos. A vida toda é este mover
das coisas mais próximas, os ombros,

a bússola de viagem, o desenho a tinta da
china de pequenos barcos coloridos,
algumas vozes longínquas que logo fazem
viver as suas formas substantivas: pobre

de quem vê o que seus olhos vêem. Às vezes
é como se tudo tivesse uma alma, um
destino superior às vogais do seu nome,
um espaço onde a eternidade vem para morrer.

quinta-feira, outubro 21, 2004

Dar aulas

Ora aí está uma boa notícia: se os professores com horário zero vão assessorar os juízes, os novos magistrados iam fazer o quê? Dar aulas de Física?

quarta-feira, outubro 20, 2004

O tempo

No tempo em que os boletins meteorológicos eram apresentados por meteorologistas, mesmo que o termómetro subisse aos quarenta e seis graus ou a chuva caísse dias a fio ficávamos sempre com a sensação de que «está tudo controlado».

terça-feira, outubro 19, 2004

[as sílabas dos seus nomes]

no ano em que as crianças
deixaram
nas açoteias
os seus nomes

a sombra demorou a subir os degraus
e o inverno tropeçou
na luz das romãs
incendiadas ainda
por essas tão escassas
e decisivas sílabas

Metamorfose

Agora que o azul se transformou em cinzento, saberemos apreciar devidamente o azul quando o cinzento voltar a ser azul?

segunda-feira, outubro 18, 2004

[literatura]

escrevo
meu amor
para te dizer
a verdade
a mentir

Anatomia de uma ressaca

A dor invade-me. E o delírio, a enxaqueca, as pontadas no ventre, os membros mortiços, pálpebras palpitantes, olhos vermelhos, exangues. Não me mexo, nem ouso fazê-lo, pensar sequer nisso violenta-me as entranhas. Só mais uma vez, tem de ser só mais uma vez. Não! Acabou, é horrível a dor, revolvo-me em convulsão pelo chão, não me suporto e renuncio a cada instante passado da minha existência. As doses, as depressões, cada saída e cada entrada em mim... Eu já não sou eu e preciso de o ser. As dores provam-me que estou vivo, e estarei. Se a isto sobreviver...

[do nosso tempo]

antes o ruído
que o silêncio vigiado

[levante]

as ondas sucedem-se
nenhuma pergunta a outra
se pode
avançar

sexta-feira, outubro 15, 2004

Adeus

Não digas a ninguém
que esta noite partirei.
Não tenho receio,
o medo é de quem fica.

Um desejo

Que esta noite seja clara
e em cada estrela possa recolher
a ínfima partícula de luz
que ilumine o [meu] fim.

O rio

Emudecido,
o chamamento da outra margem
impele o poeta a avançar
pela corrente fria
e turbulenta.
.
Nús, seus membros
agarram a rocha lisa
e escorregadia
enquanto se entregam
à difícil tarefa
.
de o manter
à superfície.
É engano,
só pode ser engano
o que o traz ali.
.
Deixa-te ir, poeta,
deixa que as águas
ditem as rimas
dos teus versos
silenciados.

Quantos são?

Há coisas que são do futebol e há coisas que são dos tribunais. E estas notícias só por muito adormecimento são inseridas na secção de Desporto.

Isso sim

Estes senhores (e mais uns quantos que se sabe) são as vedetas do jogo da bola. Certo que asneiam durinho, mas são as vedetas. E protagonistas recorrentes. Eles é que deviam jogar dentro das quatro linhas. Com este cavalheiro a arbitrar. Para que houvesse garantias de fair-play, isenção, sentido de responsabilidade. Isso sim, era outra limpeza.

Instantâneos

Sob o olhar e o sorriso complacentes da mãe, uma criança pequena ri chapinhando com os pés descalços na água fria que desliza a partir de uma jarra de lírios posta sobre a fria laje de mármore da campa de seu avô. Um pianista virtuoso.

[o mundo]

da tua vida
que parcela
ainda
te pertence?

quinta-feira, outubro 14, 2004

Alegoria breve, 3

A função pública não anda grande coisa. Isto só não está pior porque os dirigentes máximos dos serviços têm vindo a ser escolhidos num rigoroso quadro de competência técnica e de gestão, imune a tendências políticas ou filiações partidárias.

As repetições da história

A propensão de Alvalade para as goleadas históricas, a propensão para sete a um...

quarta-feira, outubro 13, 2004

Crime

Assim não,
quem dera me estrangulasses
apagasses os meus versos
e me pousasses as mãos na cabeça
perguntando-te porquê
.
assim existes.

terça-feira, outubro 12, 2004

Tareja

Ao imprevisto Deus que te fadou,
peço que trace,
na pedra, a cal, o meu e o teu
destinos de forma indelével
como
.
sangue numa arena.


segunda-feira, outubro 11, 2004

Ficções, 1


«Picasso visita Van Gogh em Saint-Remy, 1889».
J. C. Barros, acrílico sobre tela.


Alegoria breve, 2

Amo-te. Desejo-te tanto. O teu cabelo é tão macio. Bem certo é que os champôs da Garnier estão cada vez melhores e fazem milagres.

domingo, outubro 10, 2004

Escolhos

Não foi o Outono mas o Inverno
Que esta noite entrou pela fresta
da janela aberta, em torrentes diluvianas
de gelada amargura e névoa ferida.

Fúria agreste, o mar em desconcerto,
Tudo nela foi naufrágio, buque desfeito
Em escolhos de pesadelo que
um pirata prostrado na proa descurou

Turva embriaguez, negros pássaros
Desejo infinito, calado, em húmida hora
Escombros destacam na noite
o pálido rosto e o grito reprimido

Lábios de sangue silenciam
o grito perdido. Que importa,
Ao longe uma voz, alguém canta
E abandona a sua voz na noite

Versos tristes, plenos de amargura,
Que não oiço, não quero ouvir
Caem como a alma de um pássaro
morrendo em voo, picando nas ondas.

Sonho desfeito, assim é, que importa
Não podia guardá-la para sempre,
Por uma noite mais que fosse,
de nuvens ou estrelas. Tempo,

que faz ou futuro. Não a tenho,
não está comigo, partiu, para longe
e receio que para sempre
É tudo. Já não sei quem é.

sábado, outubro 09, 2004

[outubro, 1]

as primeiras chuvas
e o teu rosto
dividem agora
as lágrimas
do outono

[outubro, 2]

se chovesse
quando as lágrimas
descem
os degraus
de casa

[outubro, 3]

sim
o amor
e no entanto chove
como na rua

sexta-feira, outubro 08, 2004

Alegoria breve, 1

Voemos, então, rasteiro. Tocando apenas a flor das águas. Levemente. Tocando as águas menos que o vento de março quando vai abrindo pequenos círculos à superfície e essa leve ondulação bate nas margens e desgasta os taludes.

quinta-feira, outubro 07, 2004

Pensamentos dispersos

Terra ferida,
noite e dia,
destino cravado a fogo
na estrela solitária,
rosas conduzidas ao destino

de uma cruz iluminada
pela última luz

de um ano.


Opressão

Há dias em que num abraço nos assalta a ideia de sermos pedra que oprime uma escultura...

Senhor do Tempo

Se eu pudesse
por um instante só
que fosse,
cuidas que o não faria?

Se eu pudesse,
se tu soubesses [como]
o tempo que faz,
sem contradições,

Fosse igual
ao tempo que passa,
os minutos se contassem
por gotas de orvalho,

as lágrimas por segundos,
as batidas do coração
por raios de sol,
e as horas por suspiros...

Se eu pudesse, acredita,
se eu pudesse,
cuidarias
que não seria Senhor do Tempo?

De conselhos

Não é grande remédio ouvir
o nosso super-ego nestes dias;

São contraditórios
os conselhos dos mortos.

segunda-feira, outubro 04, 2004

Passagem

Gostei da ponte. O país, o funcionário e o outro, adorou a ponte. Nas praias, na montanha, entregou-se, displicente, ao exercício de lançar o boomerang.

domingo, outubro 03, 2004

[Da manhã]

E no entanto
às vezes as mulheres riscavam os alicerces
dispondo os púcaros na mesa.
E se afastavam as mãos por um instante do fogo
a humidade entrava nas divisórias
dos quartos.
E sabiam que se adormecessem
ou movessem os ramos da oliveira
um relâmpago cortaria em metades
os meses.
E por isso se estendiam de memória no arame das vinhas
até que o rumor dos bosques iluminados pelas aves
batesse nas paredes da casa
e amanhecesse.
.
E no entanto
às vezes as mulheres enchiam os cântaros
com o lume evaporado das presas.
E as crianças calavam-se à entrada dos astros
a olhar a nuvem de silêncio
poisada nos tanques.
E então anoitecia como se a sombra não tivesse peso
e as candeias trouxessem ao pátio
a pausada respiração dos fenos.
.
E no entanto
às vezes as mulheres saíam durante a noite
e recolhiam nos lenços
as primeiras sementes
aladas
do ácer.
E atavam aos fios de lã humedecidos nas pontas
as suas vagarosas hélices
puxando-as para o centro dos rastilhos
acesos.
E só então o rumor dos bosques iluminados pelas aves
batia nas paredes da casa
e amanhecia.

sexta-feira, outubro 01, 2004

[Da casa]

1.
Mas nesse tempo os homens avançavam contra a desordem.
E abriam fendas na encosta. E depois
desfaziam as pedras. E depois traziam esse
pó quase roubado ao fogo
de modo a juntar à escassa aluvião
as luzes acesas de março. E depois entravam nas minas
e bombeavam a água do subsolo
e saíam de novo a caminho das agras.
E só depois lançavam as sementes à terra.
.
E no domingo rezavam como se a litologia os ouvisse.
.
2.
Mas nesse tempo os homens respiravam pelos juncos
dos pauis enquanto espalhavam os drenos.
E aplanavam o granito das plataformas
atando à nuca as
máscaras de caulino.
E mediam as curvas de nível aspirando a água.
E deixavam no vale os pulmões submersos.
E traziam depois as pedras dos terraços
e erguiam barragens
onde a enchente
haveria de subir
até ao limite
da casa.
.
E adormeciam no pesadelo de imaginar os panos dos linhares
a tapar-lhes o rosto
quando já não houvesse mais nada.
.
3.
Mas nesse tempo os homens acreditavam
que os ferros se dobravam sustendo a respiração.
E se acendiam fornalhas
receavam a repercussão dos desastres.
E não sopravam as canas nem erguiam pilares
de tijolo junto ao fogo refractário.
E desviavam-se da lava incandescente
e da diástole dos foles.
E só de noite ousavam descer aos algares
e bater numa forja
com os pulsos.
.
E só então a casa e a claridade e um fio de água.

quinta-feira, setembro 30, 2004

Uma história de adormecer

História de Harun, da Menina do Mar, da Piratinha e de um pequeno Ouriço

“Sorte?” – perguntou Harun, admirado com o desplante com que a sua conquista fora apontada pelo amigo. Harun era um rapaz do fundo do mar, um pequeno nómada que gostava de passear pelas correntes, pelas ondas, saltar pelos abismos abissais e brincar às escondidas com as tartaruguinhas. E agora o seu pequeno amigo, um Ouriço do mar, dizia que essa liberdade era a sua sorte. Ao contário de Harun, o pequeno Ouriço estava preso à sua cova no rochedo do Penedo da Moreia e não se arriscava a sair de lá de dentro por um instante que fosse, sequer para comer, com receio de ser devorado por um grande peixe.
Harun era livre e valente, cavalgava as vagas das tempestades no dorso dos golfinhos, nadava no meio dos tubarões, media forças com eles, gostava de lhes agarrar no focinho e beliscá-lo com força, porque sabia que assim os irritaria.
E assim o pequeno Ouriço confessava ao seu amigo que gostaria de ser como ele. Mas Harun tinha uma fraqueza, ou melhor, duas: a primeira delas, Harun gostava perdidamente da Menina do Mar. Sentia muitas saudades quando não estava junto dela e passava os dias a imaginar o seu sorriso franco, aberto, muito branco e alinhado. Gostava de recordar os seus dedos a passar pelo cabelo da Menina do Mar, de sentir o carinho da testa dela na sua e sentia falta dos seus beijos de esquimó. Ninguém dava beijos de esquimó como a Menina do Mar. Harun gostava muito do nariz arrebitado da Menina do Mar e queria muito que ele e ela fossem um só e vivessem na mesma casa no Mar da Felicidade. Harun gostava também muito do pequeno Ouriço e por isso prometeu-lhe que se um dia assim fosse, o convidaria a viver com eles para que nunca tivesse medo, porque Harun e a Menina do Mar lhe dariam toda a protecção. A segunda fraqueza de Harun era a Piratinha. Harun gostava muito da Piratinha, que era um menina que percorria todos os oceanos do mundo à procura de tesouros e navios encalhados para neles entrar e explorar o que tinham lá dentro, coisa que Harun também gostava de fazer na companhia da Piratinha.
Ao contrário da Menina do Mar, a Piratinha vivia à superfície do oceano, gostava de histórias para adormecer que Harun gostava de contar e ouvir e por isso Harun gostaria que ela também viesse viver com ele, com a Menina do Mar e com o pequeno Ouriço. Mas a Piratinha não podia, porque dificilmente respiraria debaixo de água e assim o mundo da Menina do Mar, do pequeno Ouriço e o da pequena Piratinha eram diferentes um do outro. E quando Harun realizava isso ficava triste, muito triste, e percebia que se tinha tornado numa criatura que não era do mar, nem da terra, nem respirava na água nem no ar. Harun sufocava num mundo e no outro, não era feliz no fundo do mar nem na superfície, porque no mundo da Piratinha lhe faltavam o Ouriço e a Menina do Mar e no mundo da Menina do Mar lhe faltava a Piratinha.
E assim o tempo passava para Harun. Nos dias de tempestade, Harun fugia para o fundo do mar e nos dias de Sol refugiava-se na superfície, perto da Piratinha. Um e outro lugares eram os oásis de Harun, lugares onde o tempo do relógio parava a par do tempo que fazia. Mas fora dos oásis Harun definhava e perguntava-se se a felicidade tinha de ter aquele preço, ou se podia não ser absoluta e inteira. Porque Harun não queria ter de contar duas histórias, a história de Harun e a Menina do Mar e a história de Harun e a Piratinha como fazia habitualmente e como cada vez mais detestava ter de fazer. Isso disse Harun ao pequeno Ouriço, que o ouviu atentamente e, no final, coçando pensativamente os seus picos com a mão direita, respondeu que não o podia ajudar, porque Harun tinha de continuar e encontrar dentro de si as forças que lhe permitissem viver e fazer felizes a Menina do Mar, a Piratinha e o pequeno Ouriço. E Harun sabia que havia de as encontrar, fosse em que oceano fosse, e para isso contava com a ajuda do pequeno Ouriço. Este prometeu que o ajudaria nesta tarefa e despediu-se de Harun com um beijinho de esquimó. Nessa noite todos, a Menina do Mar, a Piratinha, o pequeno Ouriço e Harun dormiram descansados.