Tenho um amigo que pintava, indiferente
mente, por encomenda: paredes
das fábricas, gradeamentos
metálicos, quadros a óleo.
Vou quase por caminho
igual: escrevo, com emoção
igual, minutas de ofício, textos
literários, versos a metro para antologias
poéticas de circunstância.
E já nem se me dava, por convite,
alinhavar um soneto com as
sílabas contadas pelos dedos dos pés.
Ah! Se eu pudesse suicidar-me por seis meses
e recomeçar depois,/ achando tudo
mais novo. Olhar de novo, pela primeira
vez, a cal dos muros, a flor
inúmera da urze, a água
da penumbra nas encostas frias.
As manhãs de junho vagarosa
mente.
Um dia, por cansaço, descobrimos
que a arte é mentira.
Que/ o sol é sempre o mesmo e o céu azul.
Que tanto
faz como fez.
Que o sorriso da Gioconda ou um
romance de Conrad
podem não valer a porosidade de
um tecto pintado a tinta de areia
ou a sombra dos guindastes
no cimento das zonas portuárias.
publicado em Junho de 2000 no volume colectivo «Recomeço Límpido- No Centenário de José Gomes Ferreira»