quarta-feira, março 31, 2004

As Grandes questões

Como é que um provinciano chega a Lisboa? Com a ideia fixa de arranjar um lugar de estacionamento.

Como se nada fosse

É um mentiroso compulsivo. Já nem lhe levamos a mal. Mas, claro, de tempos a tempos lá se descuida e diz uma verdade. Ontem, por exemplo, a meio do discurso, ia-se-lhe escapando uma. Acontece que parou a tempo. Olhou as folhas por um instante, ergueu a cabeça e disse: «Ooooops... Peço desculpa...» E continuou a falar como se nada fosse, saltando apenas o parágrafo anómalo.

terça-feira, março 30, 2004

A felicidade

Em 1888, numa das suas frequentes viagens de Faro a Lisboa, Manuel Joaquim d' Almeida seguiu de carruagem até Vila Real de Santo António. Aí pernoitou numa estalagem sem confortos, embarcando na manhã seguinte num vapor que subiu o Guadiana e o haveria de deixar em Mértola, onde dormiu de novo. Depois fez dez milhas, novamente de carruagem, ao longo de uma estrada quase deserta. Passou a noite na Casa da Muda. Cedo de manhã, com nova parelha, seguiu a caminho de Beja. Em Beja apanhou o comboio para o Barreiro e ao fim desse quarto dia de jornada chegou finalmente a Lisboa.

De Faro a Lisboa, hoje, a viagem não demora mais que duas horas. O tempo que poupamos é imenso. Mas serve-nos para fazer o quê? Para sermos mais felizes?

segunda-feira, março 29, 2004

A sombra inclinada

Aos transeuntes que sobem ou descem a Avenida Cinco de Outubro, em Faro, a meio da manhã ou a meio da tarde, nas imediações dos prédios de apartamentos de quinze pisos, é relativamente indiferente que o sol inunde a cidade ou que esteja escondido por um espesso céu de chumbo.

Mas agora passávamos bem sem o odor a terra molhada

Esta é uma questão realmente problemática: voltou a chover no fim de semana; houve uma tempestade de sudeste; hoje o dia acordou cinzento. Ao contrário dos desinfelizes que vêm para o Algarve de quinze de Julho a dez de Setembro, nós, os que vivemos no Algarve o ano todo, só temos a Primavera: para fazer canoagem na Ria sem levarmos com as motas de água a estibordo; para nos esticarmos no areal sem bater com a ponta dos pés no penteado da veranista que foi ao cabeleireiro antes de descer à praia e que, legitimamente, reclama de lhe afectarmos as extensões; para pedirmos uns salmonetes só levemente grelhados e chegarem à mesa antes ainda de arrefecerem na gestão caótica de cozinhas que recendem a batatas fritas e hamburgueres; para ler o jornal, nas manhãs de sábado, em esplanadas vagarosas à beira mar. Portanto isto é um problema. A partir de fins de Junho, tudo bem, já sabemos do que a casa gasta. Mas agora era importante que o clima não nos falhasse.

domingo, março 28, 2004

A chuva

Quando chove durante a noite acordamos na infância. Procuramos então um caminho de pé posto, uma vereda por entre os pomares, uma azinhaga em declive. Como se houvesse ainda um lugar que pudesse devolver-nos o odor já quase esquecido da terra molhada.

sábado, março 27, 2004

[Ibn Darrague regressando da expedição a Santiago]

As laranjas e os canais de rega, o tanque, o
muro de cal, os alcatruzes, os narcisos e as rosas,
a pequena sombra das amendoeiras jovens:
sei hoje que em vão as armadas acostarão sempre
ao cais da península contra os jardins de Cacela.

[No exílio]

Tantas vezes falava da memória dessa luz do
fim de tarde poisada nas açoteias:
ninguém nunca no demorado tempo do exílio
o ouviu lamentar a perda do Império.

quinta-feira, março 25, 2004

[A falta que me fazem]

Os meus amigos são tão poucos e às vezes
um a um quase me esqueço de lhes dizer
a falta que me fazem como quando
por exemplo numa sexta-feira à noite eu entro no café
e a cerveja nem me sabe nem o caralho.

A alegria é cada vez mais com a passagem
dos anos essa ave rara que só numa corrida com os
filhos num bosque de bétulas ou
numa tarde de domingo a desenhar com
eles um satélite ou num passeio à
noite na areia molhada da praia nas marés do
equinócio de forma imprevista
verdadeiramente
pode visitar-nos.

Mas esta de que falo só com os meus
amigos e
é inominável que dizer dessa paz imensa
dessa felicidade quase sem imagens que é
sentarmo-nos à roda de uma
mesa e nem dizermos nada.

Os meus amigos são tão poucos que é
quase um
crime separarmo-nos assim deixarmos que às
vezes um número de telefone um círculo vermelho
a marcador no mapa do acp
uma carta sejam o mais que pode trazer às
nossas vidas essa ilusão de pertencer-nos o
mundo todo de não haver uma mulher uma
estrela uma cidade que não sejam
nossas para sempre.

Os meus amigos são tão poucos tão
imensos que
às vezes apetece-me deixar o computador
ligado a meio da tarde meter-me no carro pagar
a portagem da auto-estrada
permanentemente em
obras de conservação e procurá-los com
a agenda aberta nos seus nomes acordá-los
antes da alba só para lhes dizer
a falta que me fazem.

Fora do Mundo

Só pode ser uma excelente notícia...

[a memória obsessiva do Poeta]

em vila do conde
até a alfândega
é Régia

terça-feira, março 23, 2004

[O jantar]

Ao fim da tarde,
parada nos semáforos
das avenidas novas,
pensas por instantes no
que seria a tua vida
sem o micro-ondas.

Quatro poemas a favor

Rua da Estação
Havia um terraço com plantas
onde fazia calor durante a noite.
Podiam ouvir-se os comboios
e a sirene rival da Moagem, o trovão
era a voz de um deus contrariado
pela nossa inocência. Punham-se
as ameixas a secar ao sol,
penduravam-se uvas por cima
do escano. E no princípio do Outono
tiravam-se as colchas das arcas.
E chovia muito e cheirava a cânfora.

[Rui Pires Cabral: Praças e Quintais, ed. Averno]

Sem mentir
ainda não sei se o amor esteve aqui de luz acesa
e se caminhou nu toda a noite
pelo tecto do quarto mas
eu tirei a roupa toda bebi água
e não te telefonei
qualquer coisa assim atirou-me de bruços
para o coração e lembrei-me
de te esquecer desde o começo
muito longe e alto nas escadas de incêndio
foda-se como acreditar que te amo
sem mentir

[Joaquim Cardoso Dias: O Preço das Casas, ed. Gótica]

Avisos
Explosões ouviam-se cada vez mais perto na baía
mas dizia-se são pescadores furtivos
amanhã veremos centenas de pequenos peixes
mortos pela praia

um vento ríspido trazia do deserto
nuvens de areia
depositava às portas e nos telhados
uma muda ameaça

[José Tolentino Mendonça: Baldios, ed. Assírio & Alvim]

Campo de refugiados
A fugitiva disse que na terra
outrora sua havia árvores
e a sombra. Que outra fala
mais bela do que a sua,
mulher no chão seco,
solo sob o sol sem fim?

[Fiama Hasse Pais Brandão: As Fábulas, ed. Quasi]

domingo, março 21, 2004

Posto de escuta

NÓS POR CÁ, EM NOME DA CELERIDADE DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, PASSAMOS BEM SEM O RECURSO A ESTES FORMALISMOS PARVOS: O Governo britânico abriu concurso para o cargo de Presidente da BBC...

CLARO, SÓ OS CEGOS É QUE NÃO VÊEM: Joaquim Vieira, na Grande Reportagem, diz que «se é admirável a mobilização de última hora do eleitorado espanhol, como demonstração da força da democracia, não deixa também de ser perturbante pensar que o vencedor destas eleições foi Bin Laden.»

ISTO É A GENTE A FALAR: Não percebi se o nome é mesmo oficial. Deve ser. A imprensa não se cansa de falar no «Senhor Terrorismo». Este «Senhor» parece que será, no quadro da União Europeia, o responsável pela prevenção e combate ao terrorismo. A designação é interessante. É como se chamássemos «Senhor Raposa» ao responsável por garantir a inexistência de ataques nocturnos às capoeiras.

INCRÍVEL COMO AINDA NINGUÉM TINHA VISTO A COISA SOB ESTE PRISMA: «Violento o filme? E os escravos chicoteados barbaramente, os blasfemos lapidados, os cristãos atirados às feras para gáudio de César. Viram Apocalipse Now, a Laranja Mecânica e n filmes sobre o terrível extermínio dos Judeus? Tudo tão recente. Não há dois mil anos. Se o povo Judeu, do qual Jesus fazia parte, esteve implicado na sua morte como referem os Evangelhos: ‘Filhos de Jerusalém, não choreis por Mim, chorai antes por vós mesmos e pelos vossos filhos’, os tempos já lá vão; e por essa ordem de ideias os alemães eram os eternos culpados do genocídio». [Vera Roquette no DN sobre a Paixão de Cristo, de Mel Gibson]

ORA AÍ ESTÁ UMA BOA NOTÍCIA: «La señora de Sanchis Garcia (don Santiago), Mª Nieves Pérez Sanchez, ha dado a luz um niño, segundo de sus hijos, al que en el sacramento del Bautismo le será impuesto el nombre de Ignacio.» [ABC, secção Vida Social]

NÃO SE IMPORTA DE REPETIR?: «Faro teve em atenção os diversos problemas que afectam as grandes urbes, entre elas, o estacionamento. Preocupada com isso, resolveu a situação e criou diversos parques automóveis não só para a população residente como também para todos aqueles que visitam a cidade». [Guia Expresso da Habitação]

SIM, PORQUE ATÉ AGORA ESTAVA TUDO EM ABERTO: Fernando Santos, depois da derrota com o Rio Ave, considera irrealista acreditar que o Sporting ainda pode vencer o campeonato.

AGARREM-ME SENÃO EU FICO: Com a equipa à beira da despromoção e o clube na banca rota (prejuízos de 1.5 milhões de euros só em seis meses), o presidente do Vitória de Guimarães impõe condições para a sua sucessão.

SEGREDO DE JUSTIÇA: Especializado em infidelidades, o detective Miguel Costa (TM 96 300 70 00) armadilha computadores e garante resultados fiáveis com recurso a escutas telefónicas.

ISTO TAMBÉM DEVE SER ILEGAL, SALVO MELHOR PARECER DE CLARA PINTO CORREIA: De acordo com o Jornal das Caldas, a juíza Isabel Baptista está «disponível para a clonagem de juízes».

E AGORA, PARA DESANUVIAR, UM NACO DE FINA LITERATURA: «Desde o centro da cidade às profundezas do oceano, a mais vasta nuvem alguma vez localizada por satélite, sonda ou objectiva, adensava-se em porções feéricas de gases e vapores, imagem profetizada que atemorizava acima de tudo os inúmeros e inveterados crentes seguidores de tais superstições. O cogumelo de Hiroshima propagava-se à floresta do eixo equatorial, uma poeirazinha de granel proveniente do hemisfério sul esgueirava-se sem aviso pelos narizes dos mais incautos ou simplesmente daqueles cujos parcos rendimentos se não coadunavam com a compra de fatos anti-radiações e máscaras pós-11 de Setembro. Linhas meridionais», etc., etc. [DN Jovem]

sábado, março 20, 2004

Noite

Tarde aprenderam que o coração não é de fiar: ou nos leva a caminhos sem retorno, ou não nos leva a lado nenhum.

sexta-feira, março 19, 2004

A água

Vinham de longe. Via-se que estavam perdidos. Eram estrangeiros até no modo de olhar as aves que a essa hora regressavam dos açudes. E tinham sede. Mas todos temos cedo quando perdemos o caminho de casa.

Uma espécie de poeira

Ontem ao fim da tarde, a caminho de casa, ia a ouvir, como de costume, o Pessoal e Transmissível da TSF. O Aviz faz uma breve descrição da coisa. Eu acrescentaria apenas uma outra frase do cavalheiro «anarquista e miguelista de esquerda», como ele mesmo se apresentou: «O Ben Laden, desde o 11 de Setembro, ainda não fez mais nada de jeito...».
Como na Ponte do Infante, também na 125, a essa mesma hora, a seiscentos quilómetros de distância, havia uma espécie de poeira que cobria tudo de irrealidade e incompreensão.

quinta-feira, março 18, 2004

O logro

Não há uma aragem. Não há uma nuvem. As estrelas, uma a uma, desenhadas no céu. Como se a noite permitisse ao coração, vagarosamente, antes da manhã poisar a sua luz na varanda, libertar-se das âncoras que um dia o amarraram ao lodo.

quarta-feira, março 17, 2004

Os albricoques

E, portanto, insiste-se em meter num mesmo saco a intervenção no Iraque e a luta contra o terrorismo, como se quem tivesse grandes reticências quanto à intervenção no Iraque não pudesse ser a favor da luta sem quartel contra o terrorismo...

Ora a intervenção no Iraque como resposta aos atentados do 11 de Setembro lembra aquela história do sr. João: não conseguindo apanhar os marmanjos esguios que lhe roubam os albricoques, acabou por dar uma merecida lição, um dia que o caçou a jeito, a um marau que na freguesia vizinha se entretinha a partir, disparando com Flaubert, os vidros remanescentes da antiga fábrica do atum. E as histórias parecem-se mais, sobretudo depois de se perceber a mega-mentira (embora mais uma menos uma...) das armas de destruição maciça, e a concomitante descoberta de que o marau não tinha acesso a nenhuma Flaubert, mas apenas a uma fisga de plástico com a qual não era possível partir os vidros do armazém para além dos vãos do primeiro piso.

Há que distinguir, portanto. Ficamos contentes por o ditador de Bagdad ter sido apeado? Claro. Do mesmo modo que ficamos contentes (quanto mais não seja por razões pedagógicas) por o moço que partia os vidros do rés-do-chão com uma fisga de plástico ser chamado a terreiro. Acontece que, sem prejuízo de estar disponível para empreender outras lutas, o sr. João entende agora que deve concentrar-se no problema central, sobretudo depois de a junta de freguesia ter garantido que na próxima semana vai erguer uma vedação junto ao terreno da antiga fábrica: é que a canalha continua a roubar-lhe os albricoques.

Cidadania

Na página 2 da Tv Guia apela-se à participação dos leitores, via SMS, numa espécie de sondagem. Questão: «Tem medo que haja um atentado terrorista em Portugal durante o Euro 2004?». O escrutínio é semanal. No número anterior perguntava-se «quais são as melhores telenovelas: as brasileiras ou as portuguesas?».

terça-feira, março 16, 2004

[dizê-lo de novo]

eu nesse tempo temia
como a profundidade de um poço
que alguém pudesse
arder
sem a protecção
do amor

A Formiga

Há já uns tempos que a Formiga regressou. Dar a notícia era quase uma redundância, porque a feromona serve também para isso mesmo: para nos guiar no labirinto.

Catálogo

Ver o mundo a preto e branco tem as suas vantagens. Não há dúvidas, incertezas, interrogações. Há só verdades absolutas. Certezas inabaláveis. Dum lado a claridade. Do outro a treva.

domingo, março 14, 2004

Um jogo: solução

Na quinta feira trouxemos aqui o jogo inocente de descobrir o autor de uma frase. Tratava-se muito simplesmente de uma curiosidade. A gerência agradece as participações. Como se calculava, ninguém acertou. Aí vai, como prometido, a solução: a frase é de Francisco Sá Carneiro, em entrevista de Dezembro de 1976 ao jornal «Tempo», e referia-se ao governo minoritário de Mário Soares.

Não há tréguas

Desço à praia. Não há uma onda, nenhum rumor. O noroeste, às vezes, é assim. Mas a uma milha da margem, ou menos, o mar levanta-se tocado pelo vento do Atlântico. E sabemos então que a trégua é só aparente. Que não convém adormecer.

A sobranceria

Depois da chuva, com o mar do noroeste, a tarde de sábado deixou o céu muito azul a recortar as nuvens de um branco violentíssimo. Calmas, vagarosas, voláteis, as nuvens ficam suspensas como se se desprendessem do seu próprio peso e deixassem ao mundo o que ao mundo (a sua lama) pertence. Há uma espécie de sobranceria nesta indiferença, nesta altivez, mas é assim a vida.

Para depois o gastar

O apresentador de um concurso televisivo diz que não devemos ser agarrados ao dinheiro, que o dinheiro só serve para se gastar. Concordo. Aliás, é exactamente por isso que sou agarrado ao dinheiro.

sexta-feira, março 12, 2004

Fazer mais

O Presidente da RTP, Almerindo Marques, em entrevista ao DNa de hoje, diz que «é um equívoco português pensar que tudo se faz melhor com mais dinheiro. Veja-se o que está a acontecer ao País. O importante da gestão é exactamente isso: com um conjunto de recursos limitados fazer mais».

Quanto aos «recursos limitados» já nos tínhamos apercebido...

A cidade

Quando chove, o caos fica um trânsito.

[A Sombra]

quando já nem o coração nos doer
de terem as suas cordas
adormecido

Discutir a demissão dos cientistas franceses quê?…

Resolvem todos os problemas difíceis ou graves. Amor, saúde, negócios. Insucessos e depressões. Inveja, maldição hereditária, vícios, impotência sexual. Maus-olhados. Tabaco. Aproximação e afastamento de pessoas amadas, previsões, sorte nas candidaturas. Resolvem tudo. Estão por todo o lado. Têm consultórios em Faro, em Portimão, em Albufeira, em Vilamoura. São cada vez mais. Têm cada vez mais clientes. Movem-se nos espaços crescentes da irracionalidade. Ostentam títulos académicos. São especialistas em psicoterapia energética, em energização, em candomblé, em magia negra, em cartomancia, em tratamentos holísticos. Têm nomes respeitáveis. Professor Diakhaby, o Grande Marabu. Professor Mamadou. Professor Cassama, o Fenómeno. Grande Mestre Astrólogo Professor Sylla, espiritualista e cientista. Professor Guirassy. Vidente e curandeiro Tounkiara. Ilustre espiritualista e cientista Professor Fati. Professor Keita. Cientista Professor Bobacari. Grande Mestre vidente internacional Professor Facoli. Manuel Cego. Professor Aidara. Dona Magma, astróloga. Professor Mestre Cisse Lamine.

Hoje, no limpa pára-brisas, lá estava mais um desses folhetos que têm vindo a ser distribuídos aos milhares. Anuncia o verdadeiro Tratamento Holístico. É só ligar o 965633558. Confesso que o serviço me entusiasma. É que, agora a sério, até estou interessado na «Limpeza da Aura» e na «Activação das Chacras».

quinta-feira, março 11, 2004

O silêncio

Há dias assim: nenhuma palavra nos defende.

Migrações: as invernantes do esteiro da Carrasqueira

Em Março, com o fim do Inverno, algumas aves mudam de lugar para não mudarem de estação.

Ofício de esquecer

Procedes devagar na paz da tarde
à invocação de sombras. Um excesso de
rigor te move na pretérita
exclusão das imagens verdadeiras.
Ofício de esquecer por sucessivos
abandonos o que lembra coisas. Vasos,
as primeiras lâmpadas, os limites
inúteis da propriedade finda. Crianças
correndo sempre. O vale e a linha de
água, o olmo último erguido com
esforço no talude verde, a cal e
o lume um pouco antes dos
venenos frios. Num esforço de esquecer
o que sobretudo irrompe de memória.

Um jogo

«O Governo não tem estado a cumprir muita coisa do seu programa. Já há mais de 20 prazos que não cumpriu. O prof. Sousa Franco já os inventariou num artigo que publicou num jornal diário. O Governo não está a ter uma política económica e financeira definida. Não está a ter uma estratégia de actuação eficaz para resolver a crise.»

No próximo fim de semana diremos quem é o autor desta afirmação. Até lá aceitam-se sugestões.

quarta-feira, março 10, 2004

[O pântano]

O meu trabalho é o de repor o lodo
nas margens. Tarefa difícil,
pois mo levam todo.

Manchester

A arrogância, afinal, saiu-lhes pela culatra.
Parabéns, FCP.

terça-feira, março 09, 2004

Ainda os almoços

É curioso como algumas expressões se vulgarizam. Como esta da reunião de trabalho, por exemplo. Já quase não se convoca ninguém para uma reunião, mas para uma reunião de trabalho. No outro dia, apanhado a ler o sexto caderno do Expresso, desculpei-me com os termos da convocatória: como falava só em reunião, pensei que era só para nos reunirmos.
Seja como for, não há nada que chegue aos almoços de trabalho.

Simulacros

«O comandante do Regimento de Sapadores Bombeiros de Lisboa desmentiu hoje que nunca tenham sido realizadas visitas aos estádios da Luz e José Alvalade, garantindo que além de terem estado nos espaços, os profissionais chegaram mesmo a fazer simulacros.»
Eu peço desculpa, mas para simulacros na Luz e em Alvalade já nos bastavam o Nuno Gomes e o Silva.

O embate

Depois de cinco dias sem electricidade, sem rede de telemóvel, sem jornais e sem internet, devíamos ser obrigados a passar por uma sala de recobro antes de comprar o Diário de Notícias ou ligar a TVI.

Pinheiros

A isto chegou a nossa floresta: incêndios e cinza. Os pinheiros (o seu esqueleto) erguidos nas encostas e nas cumeadas a deixar na linha do horizonte, em contra luz, a imagem, ano após ano, da incúria.

quinta-feira, março 04, 2004

Uma vida

Os pequenos lugares da província são como um relógio mecânico: abre-se a tampa e compreende-se o funcionamento de tudo.

Aos amigos

Aos amigos perdoamos tudo. Mas só porque os nossos amigos são as melhores pessoas do mundo. Mesmo quando são apenas como nós, e têm as mesmas fraquezas, e têm medo ou lhes apetece desistir.

terça-feira, março 02, 2004

O silêncio

O que me incomoda ao olhar estas salas de estar a caminho do almoço? As janelas baixas, abertas para o sol vagaroso. A intimidade de uma casa exposta a quem passa na rua. Ao fundo um armário com peças de porcelana e meia dúzia de livros (um atlas, um dicionário, três ou quatro volumes de uma enciclopédia?). Um relógio de pêndulo. Uma camilha. Uma televisão. E um sofá onde não tardará alguém a sentar-se.

O almoço

Sentamo-nos, como de costume, na mesa do canto. As nossas conversas repetem os temas dos noticiários radiofónicos da manhã ou dos telejornais da noite anterior. Falamos mal do país, chamamos-lhe esta choldra. Olhamos a televisão pelo canto do olho, lemos os títulos que passam em rodapé. Ferreira Torres, Valentim Loureiro, a Brigada de Trânsito, as lixeiras, a disciplina de voto, o desemprego, Sousa Franco, Felgueiras, Figueiredo, o aborto, o PP, a Casa Pia, a Europa. Não avançamos com uma ideia, não nos propomos agir, não esboçamos um projecto. Não passamos já de um desabafo ou de um ou outro comentário irónico. Ácido. Como se estivéssemos num plano diferente. Como se não estivéssemos nós mesmos enterrados até ao pescoço nesta choldra que já nem propriamente nos afecta, e que apenas comentamos com distanciamento durante o almoço, de passagem, ausentes, rendidos.

Segirei

Comecei a ler Miguel Delibes muito cedo. E comecei, claro, por Mis amigas las truchas. Eu pescava desde criança, e essa doença ia crescendo com o tempo. Mas só então, quando o meu amigo Miguel Cunha me emprestou o livro (ele que estava fascinado também com o Diario de un cazador e La caza de la perdiz roja), compreendi, corrompido pelo poder transfigurador da literatura, que ao acto de pescar à pluma estava inerente uma ética e uma estética de que não poderia libertar-me. Continuo (eu ia a dizer religiosamente) esse ritual de me procurar. À procura das águas límpidas de um rio de montanha, a confrontar-me com as manhãs muito frias de Março, a confirmar que não desapareceram ainda as árvores que comecei a conhecer muito cedo pelos seus nomes e a distinguir pela forma de inserção dos ramos ou pela rugosidade do tronco. Na próxima quinta feira, três dias depois do primeiro dia do ano (que é o primeiro de Março), estarei nas margens de um rio a fazer um lançamento como quem decide uma vida.

segunda-feira, março 01, 2004

Porphyrio porphirio

A galinha sultana (ou caimão, ou camão...) estava praticamente extinta no nosso país em meados dos anos oitenta. O Ludo, no Parque Natural da Ria Formosa, era o único local de reprodução confirmado. Hoje nidifica já em vários locais do país, nomeadamente na sequência de programas de reintrodução da espécie. Mas na origem de tudo isto está o excelente trabalho que tem sido levado a cabo pelos espanhóis, em Doñana, nomeadamente através dos projectos de recuperação em cativeiro. Pois: falar em conservação da natureza, em alguns países, não é ainda motivo para que alguém puxe de imediato da pistola... Por cá, e cada vez mais, conservação das espécies associa-se de imediato a complicações na aprovação de loteamentos. E como a gente precisa é de loteamentos...
Seja como for, anuncie-se que o limite oriental de nidificação da galinha sultana, no Algarve, deixou de ser a Quinta de Marim: está confirmada a sua reprodução até junto do Guadiana, nos sapais de Castro Marim e Vila Real de Santo António.
Estas notícias poderiam deixar-nos orgulhosos. Se as merecêssemos. Assim, desculpe-se o parêntesis e continuemos a discutir a grande questão dos candidatos a candidatos às eleições presidenciais.

Para descer ainda mais o nível, já agora

Alho. Se a estatueta da Academia tivesse apelido, talvez este não fosse despropositado.