terça-feira, março 23, 2004

Quatro poemas a favor

Rua da Estação
Havia um terraço com plantas
onde fazia calor durante a noite.
Podiam ouvir-se os comboios
e a sirene rival da Moagem, o trovão
era a voz de um deus contrariado
pela nossa inocência. Punham-se
as ameixas a secar ao sol,
penduravam-se uvas por cima
do escano. E no princípio do Outono
tiravam-se as colchas das arcas.
E chovia muito e cheirava a cânfora.

[Rui Pires Cabral: Praças e Quintais, ed. Averno]

Sem mentir
ainda não sei se o amor esteve aqui de luz acesa
e se caminhou nu toda a noite
pelo tecto do quarto mas
eu tirei a roupa toda bebi água
e não te telefonei
qualquer coisa assim atirou-me de bruços
para o coração e lembrei-me
de te esquecer desde o começo
muito longe e alto nas escadas de incêndio
foda-se como acreditar que te amo
sem mentir

[Joaquim Cardoso Dias: O Preço das Casas, ed. Gótica]

Avisos
Explosões ouviam-se cada vez mais perto na baía
mas dizia-se são pescadores furtivos
amanhã veremos centenas de pequenos peixes
mortos pela praia

um vento ríspido trazia do deserto
nuvens de areia
depositava às portas e nos telhados
uma muda ameaça

[José Tolentino Mendonça: Baldios, ed. Assírio & Alvim]

Campo de refugiados
A fugitiva disse que na terra
outrora sua havia árvores
e a sombra. Que outra fala
mais bela do que a sua,
mulher no chão seco,
solo sob o sol sem fim?

[Fiama Hasse Pais Brandão: As Fábulas, ed. Quasi]