quarta-feira, junho 30, 2004

Meia de vida

Como uma doença, a necessidade alastrou-se ao longo dos anos por todo o seu corpo. O calor sufocante do Verão impedia-o de continuar a busca, mas em chegado o fresco dos primeiros dias de Setembro, retornava a procurar por toda a cidade aquilo que não lhe saía da memória. Não se lembrava ao certo de quando fora, mas sabia que era então Outono e estava numa das estações do metro. Ao apear-se, reparou numa malha descosida na meia de uma passageira que desceu na mesma estação. Hipnotizado, não desviou o olhar daquela perna e teve a certeza de ter sido o único a reparar naquela, sem de facto o ter confirmado em redor. Não se lembrava do olhar que quem usava a meia lhe deitou na altura porque teve vergonha de o encarar e de assim confessar através dos olhos o que lhe ia na alma. Por isso nunca teve um rosto para recordar. Apenas uma malha solta, uma minúscula malha solta, como uma nota musical ouvida de passagem, de uma meia lisa, escura, desfeita em torno de uma perna bem torneada que apenas se deixava adivinhar abaixo do joelho. Durante anos, imaginou um rosto para aquela perna, até que um dia, mirando-se ao espelho, já velho, reparou que o rosto com que sonhara se mantivera demasiado jovem para si. Nesse dia acordou, levantou-se, aparou a barba, recostou-se na cama a repousar um pouco do esforço e fechou pela última vez os olhos que o tempo tornara claros...

segunda-feira, junho 28, 2004

Euro ao ar

Bem vistas as coisas, a saída de Durão Barroso acaba por ser uma benção para o país e para o PSD. Adivinhando-se a catástrofe nas próximas legislativas, o PSD nada tem a perder com a mudança de líder. Pedro Santana Lopes não ficará muito prejudicado por não conseguir salvar o PSD de uma derrota eleitoral, se esta vier a suceder, e o próprio PSD poderá sempre argumentar que se não fosse a saída de Durão provavelmente teria um melhor "score" nas legislativas de 2005. Durão só tem a ganhar, portanto, com a sua saída, não ficando impedido de sonhar com um lugar em Belém após a fim da sua comissão de serviço, o qual está agora tão distante à partida quanto o lugar de primeiro-ministro estaria em 1999.
O único senão, e não o menor, que vejo quanto ao cenário traçado é o facto de vivermos em democracia e nesta a opinião pública e os eleitores serem livres de expressar as suas ideias de forma massiva. Pior, o facto de existir um contra-poder centrado na figura do Presidente da República, pode ser um obstáculo ainda maior ao plano Barroso-Santanista. Obviamente, a simples ideia de ver Ferro Rodrigues em São Bento tira-me o sono, mas não posso deixar de concordar que não pode deixar de ser ponderada a destituição da Assembleia da República se se verificar uma alteração tão grande quanto a que se prevê na condução dos destinos da governação. No entanto, apesar do muito que se tem dito, o certo é que nada de anti-constitucional existe na nomeação de outra figura para primeiro-ministro. No nosso sistema, a tradição manda que após eleições o Presidente da República convide o líder do partido mais votado a formar governo. Este poderá fazê-lo ou não, mas mesmo fazendo-o, o PR não está obrigado a aceitar o governo indicado. E pode mesmo convidar o líder do segundo partido mais votado a formar governo. Obviamente, terá de enfrentar as consequências, mas o certo é que constitucionalmente o pode fazer. Neste caso, o número dois do partido é Santana Lopes, pelo que a lógica é que com a saída do número um, sucede-lhe o número dois. O problema, está bem de ver, é que as pessoas e alguns políticos menos esclarecidos, como Manuel Maria Carrilho, ainda acham que votam em pessoas e não em partidos. Filosoficamente, pode-se discutir o sistema eleitoral, mas esse é outro tema que não cabe no cenário que agora se traça quanto à governação de Portugal.
Sinceramente, entre os dois males possíveis que se adivinham, penso que o Presidente não cometerá grande erro se decidir o que fará por arremesso de um Euro ao ar.

Pátio

Em Julho, a janela calou-se para sempre. Alguém correu o reposteiro, ninguém mais regou as plantas e assim deixou de existir qualquer sinal de vida no interior do andar recuado. Cheguei da faculdade que à data frequentava a tempo de ver a urna do pianista a descer as escadas do prédio carregada em ombros pelos homens da funerária. Estes transpiravam copiosamente dentro dos fatos de naftalina, mas mantinham as gravatas firmes no seu aperto sufocante, apesar da canícula de Verão.
Foi há bastante tempo, mas tudo não estaria mais presente se tivesse sido ontem. Estudava então na capital e ocupava um quarto arrendado num velho prédio cujas traseiras deitavam para um pátio numa zona antiga da cidade. Suspeito que só os habitantes e os pombos soubessem da sua existência. O pianista ocupava o último andar de um dos prédios que defendia o pátio do Sol escaldante que zurzia o exterior. Todos os dias, a partir das quatro da tarde, o pianista ensaiava as suas peças. Mozart, Chopin, Beethoven, Mähler e tantos outros tornaram-se meus companheiros de estudo. Uma tarde, momento mágico, no auge da Primavera, um violino, distintamente, juntara a sua voz à do piano. Rossini. Apercebi-me que a voz do violino soava desde o outro lado do pátio, de uma casa diferente da do pianista. Espreitei, mas nem quando o inesperado concerto terminou, alguém assomou. Foi assim durante seis dias. Uma mulher! - pensei. Violinista. E sempre durante esse tempo, entoando os acordes de Rossini acompanhando o piano. E de repente, um dia, o piano voltou a tocar sozinho e o violino desapareceu do pátio. O pianista não soube quem o acompanhava. Mas quem o ouvisse a tocar à janela ou o visse no café da esquina ao fundo da rua enquanto lia o jornal, perceberia que estava apaixonado. Alguém lhe disse que ela seria do Leste e que tivera de regressar inesperadamente à sua terra natal. Talvez regressasse. Houvesse ou não esperança, desde então o pianista apenas tocou Rossini, todos os dias, às quatro da tarde. Na noite após a morte do pianista, por sobre os telhados, ouviu-se novamente o som de um violino. Mas este calou-se subitamente, pouco depois, interrompido por um choro de mulher...

sexta-feira, junho 25, 2004

Fair-play

Pouco sentido fará comemorar a noite de ontem de Portugal sem dignificar o valor que a Inglaterra trouxe à vitória. Fica na memória a ausência de protestos dos ingleses perante o seu golo - que teria sido decisivo - anulado aos noventa minutos da partida, em contraste com os comportamentos dos jogadores portugueses a que assistimos no Europeu de 2000 e no Mundial de 2002. Mais do que a vitória no campeonato, era bom podermos esperar que num eventual percalço a caminho da final, soubessemos cair de pé.

Água

Doce, salgada, nenhuma lava, de forma definitiva, a alma.

Fogo

Queimou-te o ódio a razão ao ponto de te esqueceres porque razão odiavas.

Ar

Hoje ainda,
Flutua na memória
a imagem perfeita
do riacho, da colina e
da toalha riscada,
cúmplices selvagens,
da conspiração que ditou
o abandono de uma certeza
pelo nascer d'outra mais forte.

quarta-feira, junho 23, 2004

Terra

Coração demente,
vacilas na angústia,
Cavas certezas,
desesperas ainda
à procura de quem amas
num leito de terra seca
e gretada que serviu de pasto
às chamas do amor mais forte.
Sossega meu amor, porque hoje o mundo está cheio de indiferença.

O fim do dever cívico

Quando pensávamos que tínhamos ouvido tudo, eis que o CDS/PP nos brinda com mais uma pérola. Pela voz de Telmo Correia, a direcção do CDS/PP afirma que os dois deputados que elegeu nas últimas eleições teriam sempre sido eleitos ainda que o partido não concorresse em coligação e portanto o facto de se ter apresentado a votos com o PSD não beneficiou nem prejudicou o partido. Pelo contrário, o PSD – seu conveniente aliado nas vitórias – seria assim o principal derrotado de Domingo, mas o CDS/PP nada terá que ver com o assunto, nem o mesmo diz respeito ao CDS/PP.
Eis um dos custos da democracia. Resta saber se teremos de o pagar ou sequer se temos de estar dispostos a pagá-lo. A liberdade conquistada em Abril não pode ser ilimitada ao ponto de termos de continuar a ouvir dislates destes. Percebe-se que enquanto se mantiverem níveis de abstenção idênticos àqueles com que nos temos vindo a deparar, todas as conjecturas e especulações de qualquer quadrante político serão possíveis e legítimas. O que não podemos continuar a tolerar é a abstenção consciente e irresponsável de grande parte dos eleitores do país, que permitem que a troco de um punhado de cervejas, um mergulho domingueiro ou um passeio no shopping, sejamos obrigados a calar perante semelhantes afirmações. De uma vez por todas, era bom que fossem revistas as regras do sistema eleitoral por forma a tornar o voto obrigatório, aplicando multas ou agravando os impostos daqueles que optem pela abstenção. O voto branco ou nulo – desde que expresso de forma consciente e ponderada - é a forma cívica aceitável de manifestar descontentamento perante as forças políticas em disputa numa eleição. Não assim com a abstenção, porque se funda na preguiça mesquinha e irresponsável, no desinteresse e, ó quantas vezes, na simples ignorância que não pode ser tolerada. Esta intolerância, de resto, é necessária para o progresso da democracia e o voto obrigatório em substituição do mero dever cívico – ressalvadas certas excepções, bem entendido – seria o estágio último de evolução daquele instituto.

terça-feira, junho 22, 2004

Sucumbo à dor por não poder sangrar; cada veia minha está cheia de ti...

O que a história nos diz

(...)
E, por mais que aqui se amanse e dome
A soberba do inimigo furibundo,
A sublime bandeira Castelhana
Foi derrubada aos pés da Lusitana.

Luís Vaz de Camões, "Os Lusíadas", Canto IV, 41.

segunda-feira, junho 21, 2004

em mim nada secou

não possuo a morte no coração, mas sim um pouco de chuva que lentamente apaga o fogo doutros dias mais simples’

[Al Berto, O Medo]

Porquê?

Há uns anos, numa aula de filosofia, a perguntava maliciosa que atormentava as mentes dos estudantes era "mas afinal, para que andamos aqui? O que somos e o que procuramos?". Estudantes que éramos, com pouco mais de dezassete anos, esperava-se, legitimamente, tudo da vida. O problema estava em saber exactamente o que era esse "tudo". Houve naturalmente respostas variadas, mas a cada uma das respostas o professor - divertido - renovava laconicamente a mesma pergunta entre duas baforadas num cigarro que teimava em não se consumir num Verão insuportavelmente quente: "e para quê?". Não se vivia decididamente para ter saúde, dinheiro, ou amor, para comer, beber, ou jogar futebol, muito menos para trabalhar, ou para procriar, mas a resposta certa tardava em chegar. Socrático, o professor insistia nos seus porquês, ante o nosso desespero. O intervalo foi longo, atormentado e inquieto na procura da resposta. E ela chegou, quase no final daquela aula que nunca esquecerei. "Para sermos felizes. Tudo o que fazemos, fazêmo-lo para sermos felizes, ou com a convicção de que seremos mais felizes dessa forma." Era esta a resposta à pergunta metafísica mais importante que no início da idade adulta nos era dada. Dezassete anos sem nos perguntarmos qual o nosso papel no mundo, qual o significado de todas as nossas aspirações e desejos, et voil à!, tudo se resumia à felicidade. Ainda hoje, volvidos outros dezassete anos, aquelas palavras estão bem presentes no meu espírito, como estiveram desde então. Em cada decisão, em cada momento, procurei o percurso que, sentia, me traria mais felicidade. Não se tratou nunca de tentar sequer um menor compromisso de sofrimento, mas sempre a procura de uma maior felicidade. Pelo caminho, houve a necessidade de consciencializar que a nossa felicidade colide tantas vezes com a felicidade dos outros. E, pior, perceber que é nesta amálgama de destroços que muitas vezes fica preso um coração pleno de sentimentos contraditórios.
Há dias, num poema de Al Berto, aprendi que ao contrário do que podemos ser levados a pensar, a morte, como solução, é um desvalor porque, eterna, não permite o descanso que pretende quem fica destroçado. Ninguém pode achar-se no direito de morrer enquanto estiver infeliz...

sexta-feira, junho 18, 2004

Custa sempre, mas até sempre

O fim custa sempre, mesmo quando é um fim anunciado, mesmo quando não se sabe que é um fim, mesmo que se pense que não é um fim, com tudo o que há de definitivo contudo num fim. E no entanto, sabemo-lo, só a morte representa o fim. Felizmente, no caso do Zé, nenhuma dessas situações acontece. Nem o poeta nem o homem morrem, nem Um Pouco Mais de Sul morre. Fica mais pobre, francamente mais pobre, mas não se apaga para sempre independentemente de eu por aqui continuar a vegetar. O verdadeiro valor de Um Pouco Mais de Sul, aquilo que o Zé aqui foi deixando ao longo deste ano, permanece de forma indelével alojado num qualquer servidor perdido no ciberespaço, mas sobretudo alojado na memória dos amigos e dos outros que por aqui foram passando, revendo-se ou não, nas linhas que aqui foram sendo depositadas. Há alturas na vida em que as coisas deixam de fazer sentido. Há dias, semanas, meses, assim. E depois, um regresso súbito apaga o tempo de ausência. A expectativa do regresso anima os que cá ficam e encoraja-os a ir ficando. À espera. Não há pessoas insubstituíveis, mas há poetas insubstituíveis. Nessa medida o Zé é insubstituível, mas tenho a certeza que continuará a fazer aquilo que faz muito bem. Escrever. Escrever bem. Em tom de crítica, diria que aqui nem sempre o fez bem, mas teve - e tem - momentos de genialidade. E quem sou eu para dizer mais que isto. Verdade seja dita, pelo imediatismo, um blog impõe que nem sempre se seja bom no conteúdo de um post. Longe dos posts, acredito que tudo o que sair da pena do Zé seja bom, muito bom e que, afinal, todos, e sobretudo ele, ganhemos com isso. Um abraço, desde esta porta que manterer aberta enquanto me for possível. À espera do regresso...

Sempre pensei que não me custaria muito escrever este post

Depois de quase um ano de escrita automática, quase diariamente, é tempo de chegar ao fim. Sempre pensei que não me custaria muito escrever este post: afinal custa: ainda bem.

Nunca se diz que não há regressos. Logo se verá. Entretanto, umpoucomaisdesul continua com o Eurico. E continua muito bem. Não é, pois, o fim do blog que aqui se anuncia: é só que um dos parceiros estará ausente em parte incerta. Durante uns tempos.

É difícil arranjar palavras de agradecimento para quem me leu, quem me citou, quem me escreveu, quem me desancou. Para os mais cúmplices, para os amigos que fiz ou reencontrei, saberei deixar apenas um abraço.

José Carlos Barros

quarta-feira, junho 16, 2004

Ressaca

Uma coligação é um assunto sério. Como dizia outro dia Santana Lopes, "há um contrato entre o PSD e o CDS/PP que tem de ser cumprido até ao fim da legislatura. No final da legislatura as partes verão se há interesse em manter o contrato, ou renegociar os seus termos". Confesso que assisti, incrédulo, ao proferir de tais palavras. Santana Lopes admite que o contrato de coligação deve ser analisado à luz da conveniência das partes e não do bem público. É óbvio que é assim, sabêmo-lo, mas admiti-lo é outra coisa e requer grande dose de verniz ou falta de chá. Refeito da surpresa, não pude deixar de dar razão a Marcelo Rebelo de Sousa que, referindo-se às europeias do passado Domingo, usou a expressão "banhada" para qualificar o "status quo" da actual situação política nacional.
E de facto assim é, desde as últimas eleições. Uma coligação que não foi planeada nem assumida antes de eleições, uma coligação de conveniência sem outra estratégia que não a simples manutenção e ambição de poder, não tem qualquer valia, nem qualquer sangue que lhe permita sobreviver a um desgaste provocado pelo deserto de ideias e ideais que supostamente defende.
Em ordem à defesa da imagem de união, PSD e PP coligaram-se nas eleições do passado Domingo, mas faz impressão pensar que os respectivos líderes não se tenham apercebido que não existe qualquer traço de união entre os dois partidos que lhes permita cativar eleitorado de cada um dele. O PP e Paulo Portas fazem mal ao PSD, afastam o seu eleitorado natural, contaminam-no naquilo em que não deveria ser possível contaminá-lo. Os piores ministros deste governo são do PP e, é preciso referi-lo, o próprio Bagão Félix ficou muito aquém do que dele se esperaria. Na recente reforma das leis laborais e da segurança social, conseguiu deixar indispostos os patrões e os empregados. É obra demasiado pesada para apenas dois anos de (disparatada) governação. Dito isto, os resultados de Domingo não são uma surpresa, são até lisonjeiros para a coligação do governo.
Magra consolação, pode ser que a selecção se salve, ainda antes de voltarmos ao trabalho antes do início das férias de Verão.

segunda-feira, junho 14, 2004

Afinal...?

Alguém me saberá explicar qual o grupo parlamentar europeu a que pertence o BE? O dos Anarquistas? O dos saudosistas da Cicciolina? O dos comunistas reciclados?

quinta-feira, junho 10, 2004

O Professor

Na lei da vida está escrito que os mais velhos morrem primeiro. Na lógica do mundo, o professor apaga-se primeiro que o aluno. Desta vez foi assim, não houve excepções às regras da vida nem da lógica. O aluno fica, foi-se o Professor. Não foi o primeiro, nem será o último, mas desta vez, talvez pelo mediatismo, fica uma estranha nostalgia. Sousa Franco, pessoa com quem convivi ao longo de um ano lectivo, era pessoa discreta, rigorosa e entusiasmada pela cátedra. Pelo caminho, uma prova oral sem história, uma conversa informal a propósito da organização de um calendário de exames são os cruzamentos durante o percurso de um ano. Fica a impressão de rigor, de justeza, de convicções fortes e de paixão pela Universidade tudo confirmado sob as luzes da ribalta do ministério. Descanse em paz.

[o presente]

só o que esquecemos
pertence ao passado. Por isso
o passado não existe

[eleições]

o pintor de zebras
tem a estranha sensação
de que está representado
em todas as listas

[os filmes]

ninguém morre
em câmara
lenta

[política de ambiente ]

os resíduos do ódio
incineram-se
aonde?

quarta-feira, junho 09, 2004

Cinzas

Negro o véu que cobre teu rosto
Inocente
E falho de luz
Perdão
Buscarei mais além, em
Desespero,
Por entre as cinzas da vida que sobre ti
Erguerei

Moribundas, secas, estas as palavras
que testemunham
o vestígio e a memória da tua breve
passagem
por um mundo e por uma vida que
não
eram, nem tinham por destino ser
teus.

terça-feira, junho 08, 2004

O trânsito de Vénus

Olhamos o céu, seguindo o trânsito de Vénus, porque precisamos dessa dimensão de sonho, alucinação e magia que nos liberte do insustentável peso do corpo e do quotidiano. Por razões próximas, agitámos bandeiras, primeiro, e ficámos órfãos, depois, ao compreender que as utopias que perseguíamos eram feitas de uma matéria demasiado volátil, e que no fim de contas caíamos desamparados no chão de cimento da realidade. E é ainda pelas mesmas razões que a cidade de Faro continua a ser invadida diariamente por centenas de panfletos anunciando os serviços do Professor Sylla, do Professor Guirassy ou do Professor Mestre Cisse Lamine. Ou que discutimos com tanto empenho o perfil técnico e psicológico dos treinadores do nosso clube de futebol, desesperados por qualquer sucesso de que façamos parte e nos redima. Qualquer coisa fora da terra ou fora do mundo. Um meteorito, um planeta em linha com o sol, um mágico que nos resolva os problemas de amarração da mulher amada, uma telenovela em que a boa da fita acaba por desfalecer-nos nos braços, um jogador da selecção que marque um golo decisivo numas meias finais como se fôssemos nós a rematar o esférico em arco, ao ângulo, aclamados pela multidão em êxtase. Isto é o que interessa. A nossa vida já é demasiado triste, demasiado mesquinha, para que nos estejamos a preocupar com ela em permanência.

domingo, junho 06, 2004

Os figos

A tarde de domingo a apanhar figos. E a pensar como se muda esta realidade: a de o agricultor os vender a menos de metade do preço que é pedido ao consumidor, a cerca de duzentos metros de distância do pomar, no estaminé de uma cadeia de supermercados.

sábado, junho 05, 2004

TrackBack

O Zé Mário gostou dos parêntesis rectos. A gerência muito agradece. Manda-lhe um abraço. Espera-o no Algarve. E retribui com 11-onze-11 novos poemas curtos em rigoroso exclusivo:

[memórias]

não era bem o amor
só tínhamos sede

[dos perigos de ler romances em agosto]

os incêndios avançavam por igual
na copa dos pinheiros
e nas páginas
dos livros

[na vida real]

na vida real o
actor desculpava-se com frequência
de não ter ainda
decorado
o papel

[os náufragos]

diz-se que os náufragos de
novembro
não vêem num instante o
filme da sua vida passar-lhes
diante dos olhos
mas apenas um écran de cinza
ou um céu sem nuvens

[arte abstracta]

«assim
também eu pinto»
dizia o jovem motherwell

[os meteoritos]

se não é Deus que
os move no céu
e os ilumina
quem há-de ser?
o electricista da Câmara?

[de espanha: um provérbio]

os noivos temiam
como o escorpião da sombra
os ventos de sudeste

[ainda bem que assim é]

os rios
desaguam sempre
na vazante

[literatura light]

como é que as autoras dos
romances cor de rosa
vestem os filhos se
lhes sai um rapaz?

[ria formosa]

nas manhãs de junho
o céu é azul
porque reflecte
as águas
da ria

[a glória]

nenhum défice
resiste
a umas meias
finais

sexta-feira, junho 04, 2004

[Elogio das espécies autóctones]

alguém imagina em
vez duma azinheira
que nossa senhora de fátima
fosse aparecer aos pastorinhos
encavalitada
num eucalipto?

[o amor]

tínhamos frio
por isso nos
despíamos
assim

Cruel crude

A OPEP anunciou ontem que ia aumentar diariamente em dois milhões a produção de barris de crude, a partir de 1 de Julho, reservando-se o direito de aumentar ainda a produção em mais meio milhão em Agosto. Esta parece ser uma tentativa para conter o aumento do preço do petróleo nos mercados internacionais, o qual não parou de subir o seu preço desde a invasão do Iraque pelas forças americanas. Não que, a propósito, os Estados Unidos tenham aumentado o consumo de petróleo desde então. Não que se recusem a cumprir os acordos sobre a emissão de poluentes para a atmosfera. Não que sejam o país mais poluidor do mundo. Não que as principais petrolíferas sejam americanas. Nada disto faz sentido, mas porventura inclino-me, desta vez, para torcer pelos maus da fita da OPEP e pela sua tentativa desesperada. É uma tentativa ingénua, e infelizmente não resultará, porque o petróleo é um bem escasso e à criação de uma maior oferta corresponderá um aumento da procura, não o abaixamento dos preços, como infelizmente se verá. Ainda que assim fosse, os países em vias de desenvolvimento aumentariam o consumo desta matéria-prima porque se tornaria mais acessível e isso aniquilaria o efeito da tentativa de abaixamento dos preços. Por outras palavras, a má notícia é que o aumento do preço do crude é irreversível.

Pra não falar do lixo espalhado nos passeios

O Professor Diakhaby garante que «não existem problemas sem solução»; que não existem problemas que ele, «astrólogo africano de confiança», não possa resolver. Acho que é desta que vou consultá-lo. A ver se consegue uma magia qualquer que me acabe com este pesadelo de ter no pára-brisas do carro, todos os dias ao fim da tarde, panfletos a anunciar os serviços do Professor Diakhaby.

A bolsa de valores

Em chegando o Verão, os preços do peixe no mercado de Quarteira imitam o comportamento das acções em bolsa: podem mudar ao longo do dia entre os cem e os mil, em intervalos de menos de meia hora.

Dois poemas para duas fotografias de Elna Voss-Hellwig

1. o vento
amarelo ocre castanho
cada vez mais o ocre
o mate cada
vez mais o cinzento cada
vez mais o sépia
cada vez mais o tempo sobre
pondo a cada pedra o
pó de pedra cada vez mais a textura
da pedra do ocre do
mate
cada vez mais a vagarosa paz
do vento adorme
sendo nas aço
teias cada
vez
mais
o vento

2. das viagens
das viagens se recorda o que
pertence a outros o amor
impossível um lugar a
que se não regressa duas
vezes
das viagens o
que trazemos é a sede
dos outros
a água
o vagaroso lume da dist
ânsia

quinta-feira, junho 03, 2004

Finda vida

Sempre difícil encontrarmo-nos,
difícil também separarmo-nos
quando murcham as flores
sob o frio raio de lua

Um fino fio de vento
irrompe no teu cabelo grisalho
apaga a tocha
e seca as lágrimas

No espelho da manhã
transparecem as marcas
de uma noite de cinzas
no teu rosto pálido

Tempo

Habituou-se a que o tempo voltasse para trás sempre que lho pedia. E o tempo obedecia-lhe, matreiro, sabendo que um dia deixaria de ser assim.

[os jovens]

tínhamos tudo
menos a
consciência disso

quarta-feira, junho 02, 2004

Chefias

O cavalheiro pára a viatura, estica a cabeça para fora da janela, olha por instantes e dirige-se finalmente a um dos dois trabalhadores camarários que, com ar relativamente solene, olham uma espécie de buraco aberto no passeio de calçada: «ei, chefe! Podia dar-me uma informação?» Vê-se que o cavalheiro conhece os procedimentos. Primeiro: em Portugal somos quase todos chefes, ou presumimos ser, e portanto, pelo sim pelo não, nada se perde em ir avançando com o título. Segundo: na dúvida, o chefe é o que não faz nada, senão não era chefe. Por isso o cavalheiro se dirigiu ao trabalhador que estava encostado ao muro, de bloco notas na mão e ar displicente, e não ao colega que, apesar de também não esboçar a mínima intenção de se atirar ao que faltava da cova, e apenas a olhasse com ar suspeito, sempre estava munido de picareta.

Euro 2004

O sr. Ministro, depois da carta remetida aos portugueses em que dá conta do calendário do Euro-2004, reafirma agora que «o país não pode perder esta oportunidade de projectar a sua imagem para o exterior». Há quem não tema outra coisa: que não saibamos ceder à tentação de projectar a nossa imagem para o exterior.

[Esses anos]

Descíamos sem rede os declives,
as ravinas que vinham do alto
da ribeira desaguar no vale. Nada poderia
abrir-nos os pulsos, nenhuma pedra

com o seu gume entregue à erosão dos nomes,
nenhuma navalha
afiada nas antigas profecias.
Era essa a glória: atravessar o mundo

num fio suspenso entre duas penínsulas
e saber que a morte se demorava
em países longínquos

até que regressássemos a casa
ou adormecêssemos nas páginas
imperfeitas dos livros.