quarta-feira, junho 30, 2004
Meia de vida
Como uma doença, a necessidade alastrou-se ao longo dos anos por todo o seu corpo. O calor sufocante do Verão impedia-o de continuar a busca, mas em chegado o fresco dos primeiros dias de Setembro, retornava a procurar por toda a cidade aquilo que não lhe saía da memória. Não se lembrava ao certo de quando fora, mas sabia que era então Outono e estava numa das estações do metro. Ao apear-se, reparou numa malha descosida na meia de uma passageira que desceu na mesma estação. Hipnotizado, não desviou o olhar daquela perna e teve a certeza de ter sido o único a reparar naquela, sem de facto o ter confirmado em redor. Não se lembrava do olhar que quem usava a meia lhe deitou na altura porque teve vergonha de o encarar e de assim confessar através dos olhos o que lhe ia na alma. Por isso nunca teve um rosto para recordar. Apenas uma malha solta, uma minúscula malha solta, como uma nota musical ouvida de passagem, de uma meia lisa, escura, desfeita em torno de uma perna bem torneada que apenas se deixava adivinhar abaixo do joelho. Durante anos, imaginou um rosto para aquela perna, até que um dia, mirando-se ao espelho, já velho, reparou que o rosto com que sonhara se mantivera demasiado jovem para si. Nesse dia acordou, levantou-se, aparou a barba, recostou-se na cama a repousar um pouco do esforço e fechou pela última vez os olhos que o tempo tornara claros...