segunda-feira, junho 28, 2004

Pátio

Em Julho, a janela calou-se para sempre. Alguém correu o reposteiro, ninguém mais regou as plantas e assim deixou de existir qualquer sinal de vida no interior do andar recuado. Cheguei da faculdade que à data frequentava a tempo de ver a urna do pianista a descer as escadas do prédio carregada em ombros pelos homens da funerária. Estes transpiravam copiosamente dentro dos fatos de naftalina, mas mantinham as gravatas firmes no seu aperto sufocante, apesar da canícula de Verão.
Foi há bastante tempo, mas tudo não estaria mais presente se tivesse sido ontem. Estudava então na capital e ocupava um quarto arrendado num velho prédio cujas traseiras deitavam para um pátio numa zona antiga da cidade. Suspeito que só os habitantes e os pombos soubessem da sua existência. O pianista ocupava o último andar de um dos prédios que defendia o pátio do Sol escaldante que zurzia o exterior. Todos os dias, a partir das quatro da tarde, o pianista ensaiava as suas peças. Mozart, Chopin, Beethoven, Mähler e tantos outros tornaram-se meus companheiros de estudo. Uma tarde, momento mágico, no auge da Primavera, um violino, distintamente, juntara a sua voz à do piano. Rossini. Apercebi-me que a voz do violino soava desde o outro lado do pátio, de uma casa diferente da do pianista. Espreitei, mas nem quando o inesperado concerto terminou, alguém assomou. Foi assim durante seis dias. Uma mulher! - pensei. Violinista. E sempre durante esse tempo, entoando os acordes de Rossini acompanhando o piano. E de repente, um dia, o piano voltou a tocar sozinho e o violino desapareceu do pátio. O pianista não soube quem o acompanhava. Mas quem o ouvisse a tocar à janela ou o visse no café da esquina ao fundo da rua enquanto lia o jornal, perceberia que estava apaixonado. Alguém lhe disse que ela seria do Leste e que tivera de regressar inesperadamente à sua terra natal. Talvez regressasse. Houvesse ou não esperança, desde então o pianista apenas tocou Rossini, todos os dias, às quatro da tarde. Na noite após a morte do pianista, por sobre os telhados, ouviu-se novamente o som de um violino. Mas este calou-se subitamente, pouco depois, interrompido por um choro de mulher...