terça-feira, junho 08, 2004

O trânsito de Vénus

Olhamos o céu, seguindo o trânsito de Vénus, porque precisamos dessa dimensão de sonho, alucinação e magia que nos liberte do insustentável peso do corpo e do quotidiano. Por razões próximas, agitámos bandeiras, primeiro, e ficámos órfãos, depois, ao compreender que as utopias que perseguíamos eram feitas de uma matéria demasiado volátil, e que no fim de contas caíamos desamparados no chão de cimento da realidade. E é ainda pelas mesmas razões que a cidade de Faro continua a ser invadida diariamente por centenas de panfletos anunciando os serviços do Professor Sylla, do Professor Guirassy ou do Professor Mestre Cisse Lamine. Ou que discutimos com tanto empenho o perfil técnico e psicológico dos treinadores do nosso clube de futebol, desesperados por qualquer sucesso de que façamos parte e nos redima. Qualquer coisa fora da terra ou fora do mundo. Um meteorito, um planeta em linha com o sol, um mágico que nos resolva os problemas de amarração da mulher amada, uma telenovela em que a boa da fita acaba por desfalecer-nos nos braços, um jogador da selecção que marque um golo decisivo numas meias finais como se fôssemos nós a rematar o esférico em arco, ao ângulo, aclamados pela multidão em êxtase. Isto é o que interessa. A nossa vida já é demasiado triste, demasiado mesquinha, para que nos estejamos a preocupar com ela em permanência.