sexta-feira, outubro 22, 2004

[Três poemas]

Constantino Paustovski

Uma e outra palavra se perdem no decurso
das viagens, um e outro nome, o fluir
monótono de rumores indecifráveis,
águas onde nunca mais virá o sonho

usar as suas frases, um e outro modo
de lembrar as coisas, mínimos sinais
dum amor que raramente demorou os lábios
nesta margem, litorais por onde

o próprio aroma do desejo se perdeu.
Falo da tua voz tranquila, da mata de
bétulas e do caminho de casa, do medo
de esquecer a cor do teu vestido azul,

a caligrafia inúmera das tuas cartas e dos
teus postais. Mas quase sempre é tarde,
quase sempre me demoro para lá da viagem
onde mesmo a morte vem para morrer.


Heinrich von Kleist

A morte nos dirá enfim o nosso nome
verdadeiro, os nossos modos de lembrar as
coisas, o desejo dum lugar onde a verdade
e o amor aproximem a luz do primeiro ao

lume do segundo, talvez o inamissível
sortilégio de por uma vez nos termos
encontrado. Nada sabemos de quanto nos
ensinaram, nada sabemos para lá do que

soubermos descobrir errando a alma em
recônditos lugares, inatingíveis latitudes.
Caiando de sombra a transparência não
oblíqua sobre os muros das cidades,

a ignomínia reina como se tudo fosse um
reflexo dos seus gestos e nada mais
restasse, amiga, que trocar de roupa e
procurar um mapa de silêncio para morrer.


Mário

Se te conheci foi numa página ímpar dum livro
de poemas e não, como dirão talvez para tornar
verosímil uma história que nunca o poderá
ser, em montmartre ou nas folies bergère.

Se te conheci tinhas o cabelo curto e um anel de
prata, nenhum outro adorno ou adjectivo, e
pouco valor tudo quanto me dissesses ou
levasses a dizer. Se te conheci foi para

fingir ter dado importância às tuas palavras,
no fundo para que em ti e no mundo, num
qualquer instante sem poesia ou outro
fingimento, houvesse de novo alguma importância,

um pouco de mistério. Sejamos claros: o desejo
é sempre singular e cruel: se te conheci
foi apenas para que me fosse mais custoso
olhar o passado ao preparar-me para morrer.