terça-feira, dezembro 14, 2004

O primeiro dia em que se despiu

Uma nuvem de gases e poeira levanta-se na rua, não tarda que poise nos móveis da sala, no chão encerado do átrio, na mobília dos quartos do primeiro andar. Dona Fernanda vem à janela, o doutor Magalhães acaba de subir à varanda da casa do largo, há-de sentar-se na cadeirinha de lona, enfiar os pés descamados na bacia de porcelana com água das caldas santas. A camioneta da carreira sobe vagarosamente a rua cinco de outubro como se chegasse de uma viagem à roda do mundo: que sobressalto acrescentará hoje ao ruído sobressaltado do motor? Fernanda pressente

que será um dia diferente: como se tudo pudesse começar de novo. Levantou-se cedo, a luz ainda indecisa na colina. Desce ao salão, abre o louceiro de castanho, olha com minúcia, uma peça, depois outra, o serviço de jantar. Levantou-se cedo, não há uma nuvem entre a terra e o céu, o espinheiro da virgínia do toural ergue-se contra o céu de fins de setembro como se o mundo começasse a nascer com a manhã ainda indecisa. Olha da janela, desvia as cortinas e suas cornucópias vermelhas e azuis, a luz ainda indecisa. Como se alguém dissesse:

aqui uma árvore, aqui um muro alinhado, aqui o caminho do monte, aqui um tanque, aqui uma casa, aqui uma encosta de carvalhos, aqui um ribeiro e suas águas sesserigas, aqui uma pedra, aqui uma fonte: como se o mundo só então pudesse começar. Como se alguém dissesse: aqui uma pedra, aqui uma fonte, e agora a luz a descer a colina, a derramar-se no vale e na encosta de carvalhos, a descer o ribeiro e suas margens, a descer o caminho do monte. Como se tudo, sendo igual, pudesse ser diferente. Como se o seu próprio destino pudesse ser decidido de um modo diferente. Como se tudo pudesse começar, como se nada existisse entre a terra e o céu. Não há uma nuvem. Dona Fernanda sobe de novo, despe o roupão, a luz do seu corpo ilumina as paredes do quarto, a manhã indecisa a entrar pela janela virada ao nascente. Recorda

o primeiro dia em que se despiu diante de um homem. O engenheiro chegara em mil oitocentos e setenta e nove, passava os dias na serra com a brigada da floresta. À noite, depois do jantar, estendia as cartas topográficas na mesa da sala, os seus dedos finos, os seus modos galantes. Em fins de fevereiro começaram as primeiras plantações: dezenas de homens e mulheres sob as suas ordens, a desmatar a encosta, a abrir covas, os pinheiros minúsculos: nunca por aquelas bandas se vira uma árvore assim: os pinheiros minúsculos a desenhar uma nova paisagem. À noite, depois do jantar, o engenheiro estendia as cartas topográficas na mesa da sala, os seus modos galantes. A taberna fechava cedo, o engenheiro foi o primeiro hóspede da casa de pasto: só alguns anos depois a taberna se transformou em pensão. Dona Fernanda

recorda: nessa noite ficaram sozinhos na sala, as cartas topográficas estendidas na mesa, os seus dedos finos, os modos estrangeiros. Tinha quê? Dezasseis anos? O engenheiro olhou-a nos olhos, tocou-lhe os cabelos, os ombros, o rosto, era como se mais nada existisse no mundo para além dos seus dedos finos, os modos galantes. Recorda o primeiro dia em que se despiu diante de um homem. De súbito, no quarto muito escuro, a luz do seu corpo nu iluminou as paredes, o jarro com água, o livro de botânica, as velas de sebo, o lavatório, a pequena cómoda. De súbito, no quarto muito escuro: um incêndio. A luz do seu corpo. Tinha quê? Dezasseis anos? Hoje

será um dia diferente. Dona Fernanda escolhe um vestido de festa, é como se tudo pudesse começar de novo. Atrás do balcão corrido, arranjando os papéis, o livro de registos,

Luísa tem um sorriso rasgado, a saia quase à altura dos joelhos, um decote de furco, o cabelo apanhado num pregador colorido, vem de calafetar as janelas do primeiro andar com um pano humedecido. Atrás do balcão corrido, à espera,

Fernanda muda de sítio o livro de registos, as mãos nervosas. O desconhecido abre a porta da pensão, diz muito bom dia, poisa no chão encerado uma mala de carneira cheia de pó. É claro que há um quarto vago, claro que há um quarto para o senhor professor. Dona Fernanda recorda

o primeiro dia em que se despiu diante de um homem: a luz do seu corpo a iluminar as paredes do quarto, era impossível olhar de frente esse esplendor: um incêndio. O engenheiro cerrou os olhos, as mãos de súbito pelo corpo todo numa aflição, como se uma doença o atormentasse desde o princípio dos tempos. Gritou, saiu numa corrida, uma dor que se adivinhava à distância no escuro da noite. Nunca mais o viu. Na

manhã seguinte encontraram-no morto, suspenso de uma corda, no carvalho da colina da raia. Enforcado. Dizem que tinha os olhos queimados: a pele arroxeada, escamada, fendida, como se um incêndio houvesse lavrado a noite inteira no interior do seu corpo. Hoje

haveria de ser um dia diferente.