segunda-feira, junho 20, 2005

Álvaro Cunhal

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Morreu Álvaro Cunhal, outro ícone da revolução. E da resistência. E do PREC. Morreu Cunhal, e com ele um partido que há muito agonizava, desapareceu enfim uma imagem, uma utopia que se queria cada vez menos reinante. Com Cunhal morreu igualmente um período de afirmação do comunismo em que já poucos acreditavam e acreditam, pelo menos no estado puro em que o líder histórico ainda o defendia. Morreu a capacidade de renovar onde a renovação das ideias já era impossível e os ventos da história tinham tornado despropositada a sobrevivência de uma ideologia que a queda do muro e o desmoronar da União Soviética apenas confirmaram. Morreu, porque os homens são efémeros, e o pai, o líder, o guia espiritual era, ao fim e ao cabo, apenas um homem. Morreu o artista, o escritor, o poeta, o artista plástico. Aquele que sabia manobrar a realidade, recolocar-se na liderança da corrida, mesmo quando estava dela afastado, aquele que sabia transformar as derrotas copiosas em vitórias estrondosas, aquele de quem nunca se esperava que atirasse a toalha ao tapete, mesmo quando o último estertor parecia evidente e iminente.
E que mais morreu com Cunhal? - cabe agora perguntar. Que mais morreu que justifique as exéquias que lhe foram feitas? As homenagens. Os tributos. As manifestações de apreço. As condecorações que por certo aí virão. Será a resistência? Os anos de cadeia? Sem dúvida que sim, até ao momento em que foi derrubado um regime e implantada a democracia em Portugal. Mas nisso Cunhal não foi diferente de tantos e de tantas gerações. Foi mais um, um dos portugueses que por dever de patriotismo e espírito democrático sacrificaram anos da sua vida em prol de Portugal. Como o fizeram gente da direita e da esquerda, militares, mães, mulheres e filhos órfãos de soldados que nunca regressaram do ultramar, trabalhadores, empresários, políticos, gente anónima de quem a história nunca escreverá uma linha. O PCP e Álvaro Cunhal não fizeram mais pela queda do regime que o próprio regime . A estúpida manutenção de uma guerra sem convicção da sua bondade ou utilidade, o fechamento e alheamento à sociedade e ao mundo fizeram mais pelo 25 de Abril que o PCP ou Cunhal. Cunhal não pode ser considerado o ícone da revolução, nem o seu pai, nem pode ser alcandorado a seu mentor, pelo menos não a um nível superior a qualquer português que tenha sofrido tanto ou mais que ele a tirania do regime.
Pior, depois do 25 de Abril, como justificar a apologia do Império Soviético, a invasão de Praga, do Afeganistão e os direitos cerceados dos cubanos? Como ainda assim justificar a defesa da implantação de uma ditadura, conhecidas as experiências Estalinista (20 milhões de mortos) e Leninista? Como esquecer que só na União Soviética se matou mais gente que em todos os regimes ditatoriais de direita no Séc. XX se somados? E contudo, importa não esquecer, era esse o projecto de Cunhal para Portugal, a substituição de uma ditadura por outra, substituir o fascismo pelo comunismo. Foi isso o PREC, foi isso que Cunhal tentou, aproveitar um vazio de poder para de forma mais facilitada permitir-se a implantação de um regime ditatorial abjecto e intolerável como o foram o fascismo, o nazismo ou o comunismo sob qualquer das suas formas. É isso que ainda hoje pagamos caro, com o atraso económico, as nacionalizações, a estagnação ideológica e a falência da reforma agrária.
Não entendo por isso as cerimónias, as exéquias, as medalhas, o enaltecimento do "democrata" que odiou a democracia portuguesa do pós 25 de Abril. É intolerável que se ceda à tentação de elogiar o líder político, o dirigente Álvaro Cunhal. Sem embargo, quanto ao homem e às suas virtudes, nada a dizer, evidentemente, mas até nisto, Portugal mostra quão baixa anda a sua auto-estima e quão necessitada anda a procura de valores e referências. Enfim...
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