quinta-feira, dezembro 11, 2003

O deputado das comunidades

[ou dos perigos da poesia]

Teve a inocência de pensar que não era
ilícito fazer o que a outros, velhos
democratas de tarimba, se permitia
num silêncio cúmplice por direito consuetudinário.
E de repente viu-se, as mãos nos bolsos
de um sobretudo ainda recente das suas
funções públicas, descidas as
pálpebras, nas primeiras páginas dos jornais
a servir do exemplo que terceiros davam.
Recordo-o alguns anos antes com o saco
de viagem e o primeiro volume da obra
poética de Ruy Belo na mão esquerda
a caminho da pensão americana. Talvez então
não sonhasse ainda com esse exercício de
presumir que fazia as leis e
de servir os seus iguais viajando em
nome do povo e da diáspora com o dom
da ubiquidade e as facturas múltiplas
respectivas à mesa do orçamento.
Quem diria, ouvindo-o nesse tempo à
sombra dos ulmeiros velhos a recitar os
decassílabos na edição da Presença,
que o logro da política, a suposta imunidade
e a ilusão do poder haviam de perdê-lo?
A alguns colegas seus do hemiciclo, cúmplices
no que o desviou menos em ser lorpas,
talvez os tivesse salvo nunca o bichinho da
lírica ter chegado a corrompê-los.