terça-feira, julho 22, 2003

Se isto não é racismo... (II)

No Verão de 1996, em Oleiros, uma milícia popular apoiada por autarcas locais expulsou violentamente uma pequena comunidade de ciganos. Este incidente foi fortemente mediatizado, o que rapidamente deu origem a acontecimentos semelhantes noutras localidades, nomeadamente em Cervães, Cabanelas e Vila Verde. Algumas das perseguições às comunidades ciganas obtiveram mesmo o apoio público de responsáveis políticos locais.
No Verão de 2003 a cena ameaça repetir-se, agora no Algarve: o Presidente da Câmara de Faro mandou recentemente publicar um Edital onde ameaça de expulsão do concelho, os ciganos e outras minorias étnicas que não se portarem bem.

Por obedecerem já a um padrão suficientemente definido, estes acontecimentos merecem uma reflexão sociológica um pouco mais aprofundada.

Os ciganos que, em Portugal, são segregados de forma imposta ou voluntária desde há 500 anos, vêem-se agora demonizados, indiscriminadamente acusados de tráfico drogas e vítimas, não apenas de um forte sentimento de rejeição, como de condutas explicitas de expulsão. Esta minoria é percebida por certas franjas da restante população portuguesa como "inassimilável" e afastada da convivência, em nome das ameaças que, supostamente, constitui. Os ciganos são actuamente vítimas de um racismo cujas fontes se encontram em três níveis intimamente ligados: nos ancestrais preconceitos de que têm sido objecto ao longo dos tempos, nas mutações a que foram submetidos os seus próprios modos de vida e nas transformações sofridas pela sociedade portuguesa.
Por um lado, numa sociedade que se moderniza e se "desruraliza" as actividades a que os ciganos tradicionalmente se dedicavam e as funções sociais que cumpriam - o comércio ambulante de objectos, vestuário ou animais - não apenas entram em declínio como são mal vistas ou mesmo proibidas. As alternativas que se lhes apresentam não são muitas: a sedentarização e assimilação ou o ingresso na economia paralela e, eventualmente, no tráfico. Se a primeira alternativa é dificultada por muitos factores, onde se incluem os preconceitos herdados do passado e um certo afastamento voluntário que cumpre propósitos identitários, a segunda parece ter alimentado o pensamento racista de muitos portugueses: de repente, todos ciganos apareceram como a encarnação daquele que é percebido como o principal mal da modernidade: a droga. Por outro lado, as origens desta rejeição parecem poder encontrar-se nas mutações do mundo rural e na sua desestruturação; num sentimento de crise e de perda da identidade tradicional camponesa, ainda não completamente substituído por uma identidade moderna burguesa.
A presença de famílias ciganas nos terrenos limítrofes das pequenas cidades ou aldeias, nos bairros de habitação social ou nas escolas, é recusada em virtude da ambiguidade daquilo que eles passaram a representar para o resto da população. Os ciganos simbolizam, simultaneamente, o que a sociedade não quer da tradição: a exclusão, a pobreza, o analfabetismo, a ruralidade, a dureza da vida e a sua precaridade, e aquilo que não quer da modernidade: o anonimato das relações sociais, a igualdade de estatutos, a insegurança ou a criminalidade. É esta ambiguidade simbólica que os transforma no bode expiatório ideal e no objecto privilegiado de um perigoso "diferencialismo" que preconiza e põe em acto a sua expulsão.