Hoje, o mundo ocidental acordou com a notícia da morte dos dois filhos de Saddam - Usay e Qusay. Numa primeira análise e tendo em conta as primeiras reacções, o sentimento geral é de regozijo e de alívio, lamentando-se que falte ainda capturar o principal dos ases do ridículo baralho com que a administração americana anda a jogar ao poker das nações – o próprio Saddam Hussein.
Independentemente da infâmia do regime iraquiano e do escorbuto que lhe corroía as entranhas, nós ocidentais, e em particular europeus, defensores de uma herança milenar, temos de nos deter um pouco nas consequências que daqui derivam para a ordem mundial. Desde logo, há que saber o que significa, no actual quadro de estado ocupado, a morte dos filhos do anterior chefe de estado iraquiano. Em segundo lugar, o que pode legitimar tais mortes. Finalmente, o que legitima a continuação da ocupação do território iraquiano, não para assegurar a transição, mas para continuar a perseguição das cúpulas do antigo regime. É que, da análise destes aspectos resultará a necessidade de tomar medidas drásticas no seio da União Europeia (UE) , por forma a impedir que o Reino Unido torne a alinhar pelo diapasão americano em novas ofensivas do género, arrastando todo o velho continente em disparates semelhantes. Tal é tanto mais importante quanto faz ainda parte da coligação a Polónia - outro estado que irá integrar a UE.
Relativamente ao primeiro aspecto, as mortes de Usay e de Qusay, há algum tempo procurados pelas tropas da coligação anglo-polaco-americana, no contexto de perseguição em que ocorreram, encurralamento, troca de tiroteio e de bombardeamento com rockets e armas pesadas, sem dúvida que terá de ser considerado como comportamento intencional para eliminar os alvos. E pergunta-se: não haveria outra solução? Teria sido possível a sua captura? Neste âmbito, interessa questionar a administração americana relativamente ao que sucedeu aos demais membros do baralho que foram capturados. Os valetes, os duques, os reis, onde estão? Detidos ao abrigo de que normas? Que tratamento lhes está a ser submetido? Irão alguma vez ser submetidos a julgamento, ou encontram-se num limbo de prisioneiros preventivos que assim permanecerão? A serem levados a julgamento, ao abrigo de que direito e com base em que normas?
Relativamente ao segundo aspecto, é evidente que nada pode legitimar tais mortes. A não ser num contexto indefensável de simples decapitação da cúpula de um regime que se visa eliminar mediante a ocupação do território por si dominado. A história, ao invés do que se vem referindo, afinal, não é nova e repete-se. Um estado protagoniza a ocupação de outro, sem nenhum motivo, como se confirma, válido que legitime tal ocupação. Independentemente de se considerar que o derrube de uma ditadura constituirá sempre justificação para intervenção militar, o que é difícil contudo de aceitar, o certo é que não tendo sido encontradas armas de destruição maciça, nem químicas, nem bacteriológicas, a ocupação de ora em diante apenas se justificará para manter a segurança no território, e nunca para perseguir os membros do anterior regime. É que, note-se bem, a caça ao inimigo neste contexto só se justifica para o submeter a julgamento por crimes claros e definidos no quadro de uma ordem de legalidade nacional iraquiana, ou internacional. Ora, tal ordem internacional existe e é representada pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Os Estados Unidos, como se sabe, não subscreveram o tratado de instituição do TPI e colocaram-se voluntariamente à sua margem pelo que, em consequência, são o país ocidental com menor legitimidade para perseguir criminosos à escala mundial. Afinal, o seu vil comportamento penaliza apenas o estado e políticas americanas e, aos olhos de um contexto de legalidade internacional, mais do que justificativo do seu ataque ao Iraque, o seu actual comportamento surge-nos como bárbaro e desprovido de qualquer fundamento. A Europa, uma vez mais, tem de pressionar o Reino Unido, e a Polónia, para que estes se decidam por uma ou outra via.
Sem dúvida que a resposta à terceira questão colocada é a de que nada, neste momento, justifica a continuação da ocupação anglo-polaco-americana. Eliminar a cúpula de um Estado sem outro fim que não a mera eliminação física ou simples detenção sem indício de culpa por ausência de normas que o justifiquem, é um acto bárbaro e não merece cobertura pela sociedade internacional. Tout court.
A ONU e a OTAN perdem neste contexto, ficam desvalorizadas, ameaçadas enquanto reféns dos EUA, pelo período em que tais actos persistirem. No limite, é a própria EU que, a reboque da desastrosa política de Tony Blair, fica comprometida enquanto não encontrar uma via que lhe permita construir uma política comum de defesa, mesmo que esta não represente mais do que a mera defesa conjunta – utópica e não bélica - da paz.