quinta-feira, outubro 30, 2003

s. tomé

eu é ao contrário
preciso de crer
para ver

quarta-feira, outubro 29, 2003

Os marsupiais saltadores

As Áreas Protegidas junto dos eucaliptos, tudo bem. Mas, já agora, importem-se cangurus para espalhar na Rede Natura.

Um adeus

Discutiam daquela forma civilizada, pedagógica, explicadinha, insuportável. Sem elevar demasiado a voz. Dizendo coisas do género: «mas não penses que a partir dessa altura a minha confiança em ti não ficou definitivamente comprometida». Falavam na rua, em Bensafrim, às 09:00 AM, quase protegidos pela esquina da Travessa que dá para o largo da Vicentina, ela num tom meio ponto acima a sublinhar um adjectivo. A trocarem frases copiadas dos compêndios de ciências sociais. Sem modulações, racionais, como se estivessem imunes à paixão e ao ódio e apenas, em vez do amor, os tocasse a erosão. Despediam-se. Era um adeus. Mas compreendia-se que não havia muito de que se despedirem. E que eles próprios sabiam que essa era a maior tristeza que lhes pesava nos ombros.

Todas as coisas

A casa à beira do rio, a manhã de névoa a erguer-se vagarosamente das águas da presa, o caminho que sobe pela encosta até ao bosque de bétulas, a chuva, o muro de pedra, as folhas do negrilho, a urze nos declives: o mundo todo.

terça-feira, outubro 28, 2003

A administração da justiça

Num jogo em que não morreu ninguém porque a estatística é grandiosa, apesar das sucessivas e bem distribuídas acções de entrada ao osso com muita fé, esperança e nenhuma caridade (como diria Duda Guenes), o senhor árbitro acabou por expulsar um jogador. Decidiu expulsar o Deco. Expulsou-o quando estava descalço, depois de perder a chuteira numa disputa de bola, e impedido, portanto, de garantir uma fractura exposta ao adversário. Está certo. Foi coerente com a sua actuação ao longo do jogo e com o estado a que chegou o nosso futebol. Só falta o sr. Guerra Madaleno ganhar as eleições e o sr. Pinto da Costa receber uma bênção de Sua Santidade ou iniciar-se o seu processo de beatificação. Mas, nada mais sendo improvável, não é certo que Madaleno ganhe as eleições.

segunda-feira, outubro 27, 2003

O candidato vermelho

O leitor, sportinguista avisado, já imaginou a felicidade que lhe iria na alma, se acaso, se pelo mais mero dos acasos, Guerra Madaleno ganhasse as eleições do Benfica? Do mal o menos, sempre podemos sorrir, já que, ao que parece, Jaime Antunes, afinal, não tem a mais pequena hipótese...

«A coceira baixa a produtividade»

A srª drª Odete Santos é agora actriz de revista. Um sujeito não-sei-quê faz de Tarzan. O ex-revolucionário Carlos Alberto Moniz faz a música. Odete Santos faz dela própria. A realidade segue dentro de momentos.

A missa a metade

O Ministério Público, a PIDE, a Gestapo. Isto vai lindo...

A tempestade

Era no tempo em que a indecisão e
o poder caminhavam juntos
e a trepadeira do sono floria exuberante nas
primeiras páginas dos jornais diários.
A própria sombra atava os seus próprios
nomes à mais alta torre.
As crianças esperavam impacientes que os
croissants e as sondagens da manhã
permitissem a circulação dos
transportes públicos a caminho da escola.
Primeiro o ábaco difícil, depois a água a subir
nas margens de barrancos sem regra,
a pronúncia divisória, a chuva
nas janelas de casa, a tempestade.

Depois da tempestade

Depois da tempestade era preciso recolher os
destroços e organizar as defesas. Vieram então à
linha de rebentação os economistas com
suas pranchas de surf e seus inúmeros gráficos.
Ajudantes de campo com sua álgebra e seus
logaritmos impressos vagueavam à distância
repetindo nos átrios encerados, uma a uma, as
sombras dos portões das fábricas e dos
armazéns das periferias. Guardas fiscais com
seus impermeáveis cinzentos e sapatos de chuva
mediam os alçados dos edifícios alienáveis
e contavam pelos dedos subindo ligeiramente
contra o lábio superior a língua humedecida nos
labores do cálculo. Os namorados à procura do
primeiro emprego gostavam de mostrar em
público que sabiam tocar-se mutuamente
em esquadria, numa rigorosa aritmética.

domingo, outubro 26, 2003

Agora, quando chove,

recordamos com nostalgia o tempo em que a água corria nas linhas de água.

A chuva

espalha nos passeios dos loteamentos a terra dos taludes cortados a pique.

E, de súbito,

a luz do farol, de seis em seis segundos, cortando a noite num movimento rápido, erguida contra a chuva e esse manto de cinza que desce do céu e sobe do mar, volta a fazer sentido.

sábado, outubro 25, 2003

Assim dá gosto

«Já o sol atingia a linha do horizonte e começava a mergulhar no mar quando os mouros chegaram às naus, que acabavam de ancorar». Este é o resumo da primeira estrofe do Canto II d’Os Lusíadas, na versão do Expresso. A rima é um bocadinho pobre, mas a musicalidade está garantida: «se o que procuras são as mercadorias orientais, a canela, o cravo, a pimenta, ervas medicinais...» O original que se cuide...

Mas não é só a musicalidade... Mesmo quando Camões parece menos inspirado («Quais para a cova as próvidas formigas,/ Levando o peso grande acomodado»...), os comentários que acompanham cada uma das oitavas não abdicam da originalidade e da vivacidade das imagens: «Do mesmo modo que as previdentes formigas levam grandes pesos para as suas covas»...

É verdade que a ortografia não sai muito bem tratada: ha, apostolos, tambem, ceus, conclue, saiem, àgua, maguada, têem, quizeram... Mas o caso não é grave, numa edição que se pretende didáctica...

sexta-feira, outubro 24, 2003

Um estranho rumor

Já aqui se falara dela, dessa voz que espalha um estranho rumor de cumplicidades, dessas canções que deixamos de ouvir apenas para que, por um instante, o vento lá fora nos confirme que a noite não se perdeu ainda nos seus fios trémulos. E que depois ouvimos de novo por suspeitarmos que foi apenas para nós que alguém escreveu esta música. Que foi apenas para nós que alguém acendeu esta luz vagarosa. Que foi apenas para nós que alguém trouxe de longe a folha em forma de coração, com suas nervuras intactas, guardada nas páginas velhas de um herbário. Que foi apenas para nós que alguém se perdeu entre a chuva da península e os seus caminhos junto ao mar.

Carla Bruni: «quelqu’un m’a dit»:

Quand j’aurai tout compris, tout vécu d’ici-bas,
Quand je serai si vieille, que je ne voudrai plus de moi,
Quand la peau de ma vie sera creusée de routes,
Et des traces et de peines, et de rires et de doutes,
Alors je demanderai juste encore un minute...

quinta-feira, outubro 23, 2003

As aves da Directiva

Conta-se que, na fase descendente do partido, vendo chegar Hermínio Martinho e três camaradas, alguém comentou com um amigo: «Aí vêm as cúpulas do PRD». E que o amigo acrescentou: «As cúpulas e as bases...» Mas a estes ainda os eleitores podiam pedir responsabilidades políticas, mesmo quando já pouco distinguia a direcção do partido e a respectiva base sociológica. Com «Os Verdes» o caso é diferente: eles são uma voz na Assembleia da República preocupada com as questões ambientais e da conservação da natureza? Sim, quando as suas posições sobre questões ambientais e da conservação da natureza não conflituam com a agenda política ou os interesses estratégicos do Partido Comunista. O problema é que as aves migratórias (e isto é só um exemplo) às vezes escolhem países progressistas para a hibernação. Nesse caso, até onde vai a capacidade dos Verdes para discutir programas de conservação das espécies da Directiva?

Contra factos...

Jaquinzinhos digna-se explicar à plebe o bê-a-bá da «Evasão Fiscal, Offshores e Coisas Afins». Tão límpida é a prosa, tão escorreita, tão arrumada, tão encadeados os raciocínios, que mesmo os menos versados em economês compreendem sem dificuldades o cerne da questão: os ricos pagam na íntegra os impostos que a lei exige, e se não pagam mais é porque utilizam «as faculdades legais ao seu dispor para pagarem menos», e a isso chama-se «planeamento fiscal» (os bancos, por exemplo, pagam pouco de IRS apenas «porque a lei o permite», nomeadamente «através do tratamento fiscal diferenciado de vários produtos financeiros»); os pobres, por sua vez, fogem dos impostos como o diabo da cruz. A eles, portanto, a crise obviamente se deve.

Tudo isto já sabíamos, mas assim explicadinho é outro asseio...

quarta-feira, outubro 22, 2003

F1

Não pude resistir a responder ao post do Zé Carlos sobre a Fórmula 1. No meu caso, descobri-a antes do futebol; a paixão pelos automóveis nasceu em memórias de corridas de automóveis disputadas junto à  Fortaleza de Luanda e nas 6 Horas de Nova Lisboa, ambas em Angola, anos antes da independência. O meu pai, trabalhando para o importador da BMW, da NSU, da Autobianchi e da Skoda, tinha acesso a bons lugares no paddock e a azáfama que ali se vivia, contagiou-me de forma indelével. Durante anos, alimentei o sonho de poder vir um dia a disputar provas, ser um deles, sonho esse que foi adiado até ao dia em que decidi prestar provas no autódromo do Estoril. Salvo erro, na altura, as provas eram para o troféu Renault 5 GT Turbo e o vencedor tinha direito a disputar uma época totalmente patrocinada. Um 5º lugar entre 100 candidatos não foi suficiente e por isso demandei, no Verão seguinte, os testes de Fórmula Renault no circuito de Paul Ricard, Sul de França. Uma viagem a sós, partilhada com um Ford Cortina, evitando as caras (para o bolso de um estudante) auto-estradas do Sul de Espanha e França, com dormida em parques na auto-estrada e Parques de Campismo foram a melhor aventura para este vosso escriba durante muito tempo. Apenas chegado, uma desilusão; nessa tentativa fiquei para trás do top ten entre cem candidatos, pelo que o sonho acabou nesse dia. Enfim, restava outra paixão, a que me dediquei e, anos volvidos, me dedico.
Dito isto, não quero entrar na querela acerca de quem terá sido o maior piloto de todos os tempos. Direi que vi grandes estrelas (como Shumacher, Senna, Prost, Lauda, Piquet, Mansell, Stewart), vi pilotos que foram grandes promessas (casos de Villeneuve, Alesi, Berger, Peterson, Pironi, Alboretto, de Angelis) mas que nunca foram campeões e vi campeõµes fracos e sem qualquer carisma (o que julgo serem os casos de Hunt, Schecketer, Rosberg, Jacques Villeneuve, Damon Hill e Hakkinen). No presente, destacaria Button, Raikkonen, Alonso e Button como pilotos do futuro, o finlandês de longe o mais competitivo. Montoya será uma incógnita, mas não me parece suficientemente estável emocionalmente para poder ser um dia campeão. Contudo, Mansell também não o foi durante muito tempo e bastou uma vitóriaria frente a Rosberg em Kyalami, no ano de 1985, para tudo mudar no perfil psicológico do homem e do piloto.
Todavia, perdoe-meo leitor, mas com tudo o que há de subjectivo nestas apreciações, o meu coração penderá sempre para um único homem, que alimentou e alimenta ainda o sonho de milhares de admiradores da F1, anos volvidos após a sua morte. Enzo Ferrari, no livro em que fala das suas má¡quinas e dos seus homens - Ferrari piloti, che gente - leva-nos ao epicentro das sensações. Ali, percebemos que Gilles Villeneuve é o filho que substituiu Dino após o seu desaparecimento prematuro e a morte de Gilles levou igualmente parte da sua existência. Percebi a mí­stica da scuderia muito cedo, e desde sempre torci pela Ferrari, independentemente de quem fossem os seus pilotos. Assim, detestei e adorei Prost, detestei e adorei Mansell, e tenho pena que Senna nunca se tenha predisposto a fazer o que Schumacher fez nos últimos seis anos. Hoje, nove anos volvidos após a morte de Ayrton, noto que me fez falta torcer por Senna; à  scuderia e a mim falta-nos isso no passado. Como falta me fez o campeonato de 82, perdido na luta fraticida entre Pironi e Villeneuve. Ambos, como Alboretto, estão mortos pelo sonho. Villeneuve, último piloto a morrer ao volante de um Ferrari será todavia sempre o maior, porque Enzo Ferrari quis que assim fosse. Assim se cumpra o legado do Comendador.

O piloto de testes

Anda uma discussão interessante no BdE sobre Fórmula 1 e os seus mitos. Sobre Fangio, sobre o êxtase de ver Alain Prost cortar a meta em primeiro lugar, sobre o virtuosismo muitas vezes sem cálculo de Nigel Mansell, sobre os excessos de Montoya, sobre Gilles Villeneuve, esse «rei sem trono». Tudo isto, claro, a propósito do «hexa» de Schumacher: o piloto alemão é ou não o melhor de sempre? De acordo com o meu amigo J. M Dantas, que não subscrevo senão no elogio final, uma geração com um Schumacher num Ferrari é um Renault impotente; o Schumacher nasceu para provar que nem todos os que são campeões sabem ser campeões; não se compreende como há ainda quem lhe lave a roupa; apesar de tudo, Michael Schumacher «é o melhor piloto de testes de toda a história da Fórmula 1»...

terça-feira, outubro 21, 2003

A Calábria em Portugal

A Calábria é uma das regiões do Sul de Itália que se estende entre o "calcanhar" e o meio da "bota". É uma das regiões mais pobres e, talvez por isso, daquelas acerca das quais menos se ouve falar.
Portugal, naquelas paragens, é muito longe, mas entre uma e outro há inúmeros pontos de contacto para além da latinidade, a começar pelos ingredientes básicos da gastronomia. Como os Portugueses, os Calabreses não desdenham uma boa refeição, sendo igualmente conhecidos pela sua inclinação para a boa e farta cozinha.
Talvez por isso, mas não apenas por isso, um calabrês decidiu aterrar no Algarve não para fazer pizzas mas unicamente comida calabresa, e ainda por cima com gosto caseiro, servida em toalhas aos quadrados e simpatia a rodos, coisa que não constava do panorama. Já há alguns meses a esta parte, o Grissini, casa sem pretensões, mas digna de nota, localizada na rua dos Correios, em Almancil, tornou-se ponto de paragem obrigatório para os apreciadores do género. Recomenda-se uma visita, sem pressa, que o tempo, ali, passa devagar.

Alguém anda distraído

Luís Figo diz que há selecções melhores que a nossa: a Alemanha, a França e a Espanha, por exemplo. E que, obviamente, é pouco provável que vençamos o Europeu. Scolari, por sua vez, explica que nos falta «determinação». Não tenho ouvido ultimamente o senhor ministro Arnaud, mas parece-me que isto não era ainda para se dizer...

segunda-feira, outubro 20, 2003

O direito de passagem

Só elas sabem que os filhos regressam uma
única vez, e às vezes é tarde. Por isso se
vestiram de negro antes ainda dos meses frios
e guardaram os retratos na cómoda
como quem defende a propriedade
ou o direito de passagem.

domingo, outubro 19, 2003

O poder do mercado

Em Cacela só há catequese três vezes por mês. As sessões de catequese resistem aos domingos de vento, aos domingos de sol, aos domingos em que a névoa se derrama sobre a laguna e a península. Só não resistem aos domingos de mercado. E está certo: no mercado de Cacela há roupa de marca ao preço da chuva, e não se pode dizer que seja pecado sequer venial não resistir a comprar pólos da Sacoor ou da Quebra-Mar a seis euros a peça nos dias em que o mercado coincide com a catequese...

Os fumadores morrem prematuramente

O Futebol Clube do Porto está a perder com o Belenenses. Saio da sala da televisão para comprar cigarros, subo o degrau que leva à outra sala, não tenho dinheiro trocado, destroco uma nota de cinco euros, falo por instantes com o empregado de balcão, acabo por beber uma imperial, meto as moedas na máquina, desço à sala, sento-me na mesa, acendo um cigarro e olho de novo a televisão: o Porto ganha por 4-1. Se isto não é prova suficiente dos malefícios do tabaco, vou ali e já venho...

sábado, outubro 18, 2003

A época baixa

Vê-se uma salamandra de pintas amarelas, ou saramaganta, e é impossível não especular sobre as notáveis semelhanças, ao nível da biologia da espécie, entre o anfíbio e estes simpáticos turistas idosos que passeiam a pé pelos caminhos secundários ou junto à praia, e que nos visitam durante a chamada época baixa: é que também a actividade anual da saramaganta se concentra entre finais de Setembro e meados de Maio; também ela apresenta uma locomoção lenta; e também no seu caso a actividade sexual se limita a dois curtos períodos durante o ano, uma vez no Outono e, recuperadas as forças, outra vez na Primavera...

A água dos açudes

Os meteorologistas andam com má fama no Algarve. O «Barlavento» chama-lhes mentirologistas. Primeiro anunciaram uma tempestade e vieram dias de praia; depois a tempestade chegou quando se anunciava bom tempo.
Há gente assim. Há gente que dava tudo por saber com rigorosa antecedência quando chove ou faz sol. Por nunca ser surpreendida. Por nunca se sobressaltar. Por nunca o amor ou a paixão visitá-la sem aviso.

sexta-feira, outubro 17, 2003

As moradas inúteis

O céu poisado nas casas, no
barro do ar, nos lenços
de água das crianças.
O deserto avança pelo interior
do verde claro do país.
A ignomínia da vigília, eis
o que resta, o levantamento
da ironia e seus refúgios
difíceis. O inverno recorta
na cartolina dos eucaliptos
a paisagem desolada
e frágil. Como pesa nos ombros
esta chuva dum postal enviado
de longe a moradas inúteis.

Crime e Castigo

No comentário inocente a um post de Prazer_Inculto deu-me para falar dos malefícios do chouriço e da importância de prever avisos longitudinais na tripa do invólucro alertando os incautos para o problema do colesterol. Possidónio Cachapa leu, tresleu e pespegou-me o rótulo de «defensor do direito a fumar onde apetecer e os outros que se mudem»... Veja-se o exagero militante, o verniz a estalar... Eu, imagine-se, que já só desejaria o «direito a fumar» onde não incomodasse ninguém, e que já só desejaria, pegando num maço de cigarros com avisos de 16.40 centímetros quadrados a publicitar o meu estatuto de burgesso, que não me olhassem como a Raskólnikov, na secretaria da polícia, quando começaram a crescer as suspeitas de que teria assassinado Aliona Ivánovna e a sua irmã Lisaveta... Será pedir muito?

quinta-feira, outubro 16, 2003

É cedo ainda

É cedo para esboçar cenários sobre as eleições presidenciais. Portugal não foi ainda humilhado no Europeu. Scolari não foi ainda demitido. Madaíl não pediu ainda a demissão. O Futebol Clube do Porto não venceu ainda a Liga dos Campeões. Vítor Baía não defendeu ainda a grande penalidade decisiva na final da competição nem recebeu ainda o troféu de melhor jogador do torneio. Mourinho e o seu guarda-redes galáctico não chegaram ainda a acordo com o Real Madrid. Cavaco Silva, Freitas do Amaral e António Guterres não comunicaram ainda o abandono da vida política activa. Santana Lopes não confessou ainda, em entrevista exclusiva à Blogspot.PT, gerida por Paulo Portas, que em boa verdade a presidência da República nunca esteve nos seus horizontes. Pinto da Costa, vindo de Roma, não foi ainda recebido em apoteose no Terreiro do Paço.

Uma nova luz

Conhecendo-se já pormenorizadamente a posição dos estudantes sobre o pagamento das propinas, seria talvez tempo de saber o que pensa sobre o assunto quem realmente desembolsa. De resto, a opinião pública seria muito mais sensível ao caderno reivindicativo das academias caso o slogan «Não Pagamos» fosse removido de vez das manifestações e substituído por palavras de ordem que não remetessem para conceitos abstractos: «Os Nossos Pais Não Pagam», por exemplo, traria uma nova luz ao debate, e exigiria discussão séria.

quarta-feira, outubro 15, 2003

A vexata quaestio

O leitor desculpar-me-á porventura a inoportunidade da pergunta mas, não lhe parece que depois da recente troca de recados entre Portas e Freitas do Amaral, caminhamos mesmo para uma candidatura de Cavaco Silva à presidência da República, apoiada pelo PP? A ser assim, confirma-se que a flexibilidade intelectual de Paulo Portas, mais do que alarmante, começa a ser francamente perigosa. E o pior é que, sinceramente, tirando o próprio Cavaco ou Pacheco Pereira - por ora entricheirado na Europa e no seu Abrupto - não vejo quem, dentro do PSD, lhe possa fazer frente; isto, naturalmente, se o PSD sobreviver a Portas...

Bragança 0 - Time 2

O Governo decidiu suspender toda a publicidade relativa ao campeonato da Europa de futebol Euro 2004 na revista "Time", segundo declarações avançadas pelo gabinete do ministro adjunto do primeiro-ministro, José Luís Arnaut. Afinal, quando se pensava que os efeitos da avalanche provocada pelas mães de Bragança tinham terminado, eis que se descobre, afinal, estes não cessam. Pessoalmente, acho um erro crasso, pelas razões que passo a explicar: o Euro 2004 era um magnífico pretexto para alguns homens dessa Europa virem a Portugal, com o beneplácito das suas famílias. Bragança, como se sabe, dotada de magníficas infra-estruturas rodoviárias herdadas do cavaquismo, fica a meia dúzia de quilómetros do Porto (2 estádios) e de Braga/Guimarães (2 estádios) pelo que, muito naturalmente, Bragança - capa da revista Time - só teria a beneficiar com a publicidade. Imagino que, mercê da natural e acolhedora recepção das mães de Bragança, os homens dessa Europa fora acabassem por querer voltar mesmo muito depois do Europeu, porventura para iniciarem os seus filhos em mui nobres artes. Francamente, não entendo o que há de incompatível entre futebol e meninas, que justifique esta medida, sobretudo se pensarmos que, por sinal, o palco da final do último europeu de futebol até foi Amsterdão...

Tradução fiche'r

Passando Vale da Telha (uff!) e seguindo para poente, topa-se com uma placa informativa das escavações arqueológicas que têm lugar junto à arriba. As informações são escassas, como de costume nestas coisas: há pouco mais que um título («Rîbat da Arrifana, sítio mítico do Garb-Al-Andaluz») e um pequeno texto em duas línguas. Em português («Fortificação islâmica do século XII») e em inglês («Seasonal ficher settlement»)... Quem precisar de informações talvez não seja mau ir esclarecido...

terça-feira, outubro 14, 2003

O PS e Ana Gomes

O PS costumava ser um partido de oposiçao a quem de um momento para o outro sucedeu a contingência de ter de governar o país sem que tivesse especial aptidão para isso. Quando perdeu o poder, o PS reagiu mal e, esquecendo-se que não é preciso defender teorias cabalísticas para desacreditar quem está na oposição, mas antes quem está no poder, anda entretido, em auto-combustão, a defender-se de ataques quixotescos provenientes de fértil e duvidosa imaginação.
Ana Gomes tornou-se assim, paulatinamente, na principal figura do PS sem que tenha dito ou feito algo de especial para o merecer. Em termos políticos, bem entendido, limitou-se a não comentar, até esta manhã, o caso Casa Pia. Todavia, tomada de um infeliz achaque partidário, nivelou o seu discurso pela normalidade dos seus pares e expôs de forma lamentável o que pensa sobre a conspiração contra a justiça.
Em bom rigor, torna-se urgente encontrar uma solução para o PS, a bem da democracia.

Time 2 Time

Bragança acordou na capa da Time.O movimento das mães deve estar orgulhoso desta conquista. Os donos das casas de Alterne devem lamentar o excesso de clientela e os lucros que a notícia inevitavelmente lhes trará. Tudo está bem, quando acaba bem.

Talvez faças, já não sei sequer

Uma imagem
difusa
num verso
subliminar revela

A minha completa
perda, no labirinto,
de um passado
que não existiu e

do qual tu
talvez apenas faças,
já não sei sequer,
parte.

Mesmo nos versos

Há partidas
mas não há regressos

Os caminhos que nos levam
e os caminhos que nos trazem
são diferentes

Despertares

Hoje, deitaste-te cedo. Faltou um beijo teu. Nunca tinha notado que a falta dos teus lábios queimasse mais que o seu toque. Esta noite, se não te importas, fico ao teu lado, vigilante, não suportaria perder o teu despertar.

Um tiro no porta-aviões

Desculpar-me-á o leitor a questão, e bem assim a insistência no tema, mas será que alguém se importa de me explicar porque razão o PS insiste em colar-se ao desfecho do caso Casa Pia e, em particular, ao que daí advenha para Paulo Pedroso? Sinceramente, até percebo a solidariedade e as declarações inflamadas dos membros do partido, mas tornar o maior partido da oposição - como vejo o líder do PS fazer - refém de uma sentença, parece-me um erro indesculpável. Para já, parece-me que o PS não precisava disso na medida em que a tese da cabala não cola, nem pode colar em democracia e muito menos num Estado de Direito. A ser aceitável defendê-la, é essencial arguir um simples facto que nos aponte nessa direcção, coisa que o PS não fez, nem provavelmente fará. Por outro lado, a manter-se o actual estado de coisas, e perante o cenário de uma eventual condenação de Paulo Pedroso, todos, sem excepção, os órgãos do partido terão forçosamente de se demitir, sem redenção possível. Já perante o cenário contrário, no caso da eventual absolvição de Paulo Pedroso, não vejo o que tem o PS a ganhar com a sua atitude actual e, nessa justa medida, parece-me disparatada a insistência nesta postura - porque nem de estratégia se pode, em bom rigor, falar.
Para já, e por outro lado, sendo Paulo Pedroso arguido num processo do foro criminal, parece-me assaz criticável que tenha tomado o seu lugar de deputado na Assembleia da República. É que, se antes de qualquer investigação, o PS exigiu a queda de dois ministros com base em argumentos do campo moral, não consigo perceber como consegue conceber a manutenção de um deputado seu em exercício de funções, com o particular relevo que sobre este impende uma investigação pela eventual prática de uma conduta que se situa, mais do para além do campo da imoralidade, no próprio campo da criminalidade. Bem sei que Paulo Pedroso não está condenado, mas o certo é que no desempenho da função que lhe foi confiada, a suspeita, o indício e a conduta imoral ou amoral, não são aceitáveis. Receio, pois, que ao PS e a Paulo Pedroso, apesar da apoteose com que este foi recebido na AR pelos seus, mais não reste que a continuação da suspensão do seu mandato, até trânsito em julgado da decisão do caso, altura em que, consoante o resultado, terá de optar por renunciar ao mandato, ou retomá-lo. A não ser assim, sinceramente, não vejo como o PS possa sobreviver a uma batalha que não era a sua e que, pela quantidade de água que mete, é verdadeira batalha naval na qual muito facilmente irá ao fundo, salvo se, como é hábito, a opinião pública se preocupar mais com o teor das declarações de Marco Paulo no programa do Herman (por sinal, arguido no mesmo processo e sujeito à mesma medida de coacção de Paulo Pedroso) que com o (des)governo da nação.

segunda-feira, outubro 13, 2003

Dez minutos ao acaso

Um senhor Vítor qualquer coisa, durante o jogo de futebol que o Olhanense foi vencer a Faro, resolveu despir-se, saltar a rede e entrar assim no relvado, de pirilau oscilando, a animar uma partida que não teve outros particulares motivos de interesse. Não foi detido para averiguações nem viu restringida a sua liberdade de movimentos. Pelo contrário, acaba de ver-se reconhecido com o estatuto de vedeta nacional. Há uns minutos atrás, no Herman Sic, teve direito à sua primeira actuação televisiva enquanto profissional do espectáculo. O ex-humorista, apresentando-o ao público que não tinha ido a Faro no domingo passado, garantiu, com um brilhozinho nos olhos, que «mais uma vez ia acontecer televisão». E aconteceu, embora em boa verdade não tenha acontecido grande coisa. A novel vedeta despiu-se, fez um manguito e foi aplaudido em apoteose. Depois foi anunciada a presença de Marco Paulo, e Marco Paulo entrou de microfone em riste, confirmando a ameaça, e agradeceu a Herman José o seu contributo para o sucesso do álbum que acaba de ser «disco de ouro». Abraçaram-se pela segunda vez. Acto contínuo, uma senhora de Famalicão subiu ao palco a oferecer a ambos uns ramos de flores em nome de uma senhora de que esta senhora não recordava o nome mas que era «a mãe de Vítor Paneira» e que estavam todas «muito felizes». Marco Paulo, comovido, cantou e encantou, e agradeceu a presença na plateia de «cinquenta amigos» que tinham vindo de diferentes partes do país «propositadamente» para o aplaudir e acarinhar. E que também ele estava muito feliz. E pronto. Nós também...

domingo, outubro 12, 2003

A ideia de ordem

Num bar andaluz, às quatro da manhã, dois jovens esfregam-se, desesperados, com «comovedora ilicitude». Ninguém parece muito preocupado com isso. Mas é impossível, não obstante o adiantado da hora e os pamperos, deixarmos de recordar os posts do Pedro e as suas ideias sobre o estado a que chegou a civilização ocidental...

sábado, outubro 11, 2003

É obra

Ainda não li Coetzee. Vou ler. A maior parte dos críticos não apenas tem vindo a realçar que se trata de um excelente escritor: sobretudo, enfatiza esse facto aparentemente fabuloso de, este ano, o Prémio Nobel da Literatura ter sido atribuído a um excelente escritor... Bolas, isto comove...

Com amigos destes...

De entre tantos mistérios que gostaríamos de ver esclarecidos, não deixaria de ser gratificante começar por este: quem, no PS, tem actualmente responsabilidades de coordenação estratégica da agenda política?

A humidade do ar

A lua cheia, a humidade do ar, a linha ondulante da duna, o estorno, os cordeirinhos da praia, e só depois a praia, um silêncio nem quebrado pelo quase imperceptível movimento das marés. Por instantes é possível acreditar que as moradias geminadas e as palmeiras de papel de cenário não fazem parte deste filme.

sexta-feira, outubro 10, 2003

Ainda o Outono

folha tão leve
que só no inverno tivesse
onde poisar

Tudo nos pertence

[para A.B.O.]

O mar da península
com suas imagens
quebrado nas dunas
antes dos naufrágios
o vento do árctico
nos dedos mais ágeis
os jardins suspensos
imensos e frágeis

tudo nos pertence
quando somos jovens

Um dia o deserto
levanta as amarras
das águas de junho
de todas as margens
o rumor do inverno
o calor dos trópicos
o lume imprevisto
por entre a folhagem

Perdida a memória
de medos e perigos
tudo nos pertence
quando somos jovens
e por um instante
nos sabemos vivos

quinta-feira, outubro 09, 2003

Sequestro em era má

Miguel Graça Moura foi hoje sequestrado pelos funcionários e alunos da Orquestra Metropolitana de Lisboa. Com a matéria noticiosa que os telejornais mantêm em lista de espera (a decisão do Tribunal da Relação, os ecos dessa decisão, os ecos desses ecos, a fogueira e o fogo de artifício, os dois milhões de portugueses cuja opinião jurídica sobre o assunto não foi ainda transmitida em horário nobre, a enunciação dos princípios de actuação política da senhora Ministra dos Negócios Estrangeiros, a nomeação do senhor Secretário de Estado das Florestas, a Portucel, os comentários do presidente da Associação Académica de Coimbra sobre a lista de convocados de Scolari, os comentários do presidente da Associação Académica de Coimbra sobre as especificidades da investigação na área das fibras ópticas, a inauguração do Estádio do Dragão e os novos episódios da novela «Pinto Atira-te ao Rio», etc...), deseja-se muito sinceramente que a libertação do maestro não esteja dependente da visibilidade do caso junto da opinião pública...

O Estado de Direito

Paulo Pedroso foi libertado, afinal o Estado de Direito prevaleceu. Não nutro particular simpatia por Paulo Pedroso, nem antipatia, não o conheço, nunca lhe vi obra. Paulo Pedroso é um cidadão como outro qualquer, contra o qual pende investigação pela potencial prática de um dos piores crimes. A libertação de Paulo Pedroso tem apenas o significado de demonstrar que as instituições funcionam, mesmo que demorem a decidir. Paulo Pedroso está, até prova em contrário, inocente, mas seguramente tem todo o direito de se defender. No uso desse direito, recorreu. Um Tribunal (constitucional) reconheceu que tinha sido coarctado no exercício do seu direito ao recurso. Outro Tribunal (Relação de Lisboa) reconheceu que a prisão preventiva era uma medida excessiva para os indícios da prática do crime pelo qual está indiciado e substituiu a aplicação da medida de coacção mais gravosa que existe no nosso sistema (prisão preventiva) pela menos gravosa (termo de identidade e residência). É desnecessário o comentário do Procurador-Geral da República quando chama a atenção para o facto do acórdão do Tribunal da Relação ter sido decidido por maioria porque um dos juízes desembargadores votou vencido, propondo a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliária. Em justiça a decisão é una, independentemente desse factor. Um inocente cujo acórdão tenha um voto de vencido não é menos inocente que outro cujo acórdão seja votado por unanimidade, nem um condenado, nas mesmas circunstâncias, é mais culpado. Paulo Pedroso até pode vir a ser condenado, mas para já, prova-se que se deve ter confiança nas decisões dos tribunais portugueses.
Uma palavra ainda para o papel dos advogados. Neste caso, como no da Universidade Moderna, ou em outro qualquer, goste-se ou não da figura do advogado, não há outra figura que se interponha entre o poder judicial e o cidadão, entre o poder de acusar e cada homem. Na separação de poderes necessária no Estado de Direito, o poder judicial é fundamental. Mas como qualquer poder, tem de ser fiscalizado e o seu exercício deve ser rigorosamente acompanhado. Os advogados, mesmo quando envoltos em polémicas, são o bastião do controle desse poder e o garante último dos direitos de cada um. Obviamente, não se pense que são a peça-chave, o sistema perfeito e equilibrado não a tem, evidentemente, a bem desse próprio sistema.

quarta-feira, outubro 08, 2003

A machadada final II

O Zé Carlos escreveu ontem um artigo relativo a um dos temas quentes do momento (não, não tem nada que ver com helicópteros e os incêndios há muito lá vão), precisamente o das propriedades detidas por sociedades ou indivíduos com sede ou domicílio em Estado ou território com tratamento fiscal mais favorável - os chamados paraísos fiscais. De facto, o artigo do Expresso do último Sábado aborda o tema de uma forma que, eufemisticamente, optarei por chamar de "levezinha". Evidentemente, não estamos perante um artigo, nem sequer por uma reportagem que se possam considerar sérios. Não há trabalhode campo nem qualquer rigor na abordagem do problema ou das questões de que ali se tratam. Erradamente ainda, fica a pairar no ar a ideia de que uma sociedade off shore tem que ver com qualquer coisa de obscuro, de ilegal, com lavagem de dinheiro, fuga ao fisco e por aí diante. Nada de mais errado, pelas razões que passo a explicar.
Deter uma propriedade por uma sociedade off shore representa, para o Estado Português, rigorosamente a mesma coisa que se a propriedade em causa for detida por uma sociedade ou um indivíduo portugueses. Até 2002 pagavam exactamente os mesmo impostos, fossem eles quais fossem e estavam sujeitos ao mesmo regime e legislação, com uma excepção, que consistia no facto de tais sociedades não poderem obter quaisquer benefício fiscais. Desde então, tudo se agravou para tais dsociedades (ou indivíduos com domicílio nesses territórios).
Evidentemente, há uma pequena nuance que escandaliza meio mundo, que reside no facto de tais sociedades terem uma estrutura que lhes permite que sejam transaccionadas sem que aos olhos do Estado Português se detecte a mais pequena alteração na sua estrutura accionista, pelo que não lhes é aplicável - a não ser no momento em que compram, pela primeira vez uma propriedade - a Sisa no momento da transacção. Contudo, existem sociedades na ordem portuguesa que igualmente beneficiam deste regime, como sejam as sociedades anónimas, com acções ao portador, entre outras. Quanto aos demais contribuintes, como se sabe, toda a gente declara na íntegra o valor pago pelas propriedades que compra, porque a sisa - na qualidade de imposto mais estúpido do mundo - merece ser paga e toda a gente faz questão disso... Adiante, que há muita gente com vontade de atirar a primeira pedra...
Como é evidente, este não é o espaço próprio para abordar todas as questões que o problema levanta, até porque elas são demasiado extensa e arrisco-me a "pregar" uma enorme seca ao leitor. Para já importa contudo reter a ideia que a reforma proposta pelo Estado Português é mal pensada, cretina e, porque não dizê-lo, absurda. A verdade é que o problema de fundo não é (nem perto nem de longe ) o sistema do off shore, mas chama-se antes sisa, contribuição autárquica, valor patrimonial e Código de Avaliações. É esta a reforma que tem de ser feita, a bem da moral do sistema e do país. Não faz sentido que um prédio na Av da Liberdade com cinco andares, ou um palácio no Restelo tenha 500 Euros de valor patrimonial e o meu humilde T2 tenha 60 ou 70 mil euros. A Contribuição devida anualmente varia entre 0,8% e 1,3% daquele valor, por isso agradeço que me expliquem se atacar o sistema do off shore faz algum tipo de sentido. Até porque, como é evidente, por meia dúzia de tostões qualquer pessoa redomicilia uma sociedade off shore passando a sua sede para um território não abrangido por tais disposições penalizantes. Outro aspecto do problema e do mau planeamento está em discriminar as situações em que o dono da propriedade é uma pessoa singular, que não tem forma de mudar a sua vida para outro lado e por sinal deseja investir num imóvel em Portugal. Pergunto-me, qual é a relevância deste aspecto, que tutela merece esta discriminação?
É que, parecendo que não, o sistema inventando, sem qualquer dúvida, é patético e mal desenhado. Tem lacunas, abre brechas à nascença e limita-se a ser mais um mal-amanhado remendo no iníquo sistema tributário português. Ainda hoje, por falta de uma vírgula (decididamente, este é um problema nacional), acabo de descobrir mais uma enorme brecha. Desculpem os leitores, mas não o posso partilhar convosco. E no entanto, era tão mais fácil fazer bem... Desculpa portanto Zé Carlos, mas não posso, desta vez, concordar contigo.

PS: Agradeço ao Carlos Vaz Marques a referência feita em 24 de Setembro, ao texto sobre os engraxadores aqui publicado.

Nos anos sessenta

Vejam-se os jornais da época: em meados dos anos sessenta são frequentes as curas milagrosas em Lourdes e o reconhecimento oficial da igreja de que se trata de intervenções sobrenaturais; no nosso país, sem a mediação divina, o Prémio Camilo Castelo Branco é atribuído a um terrorista condenado criminalmente a catorze anos de prisão maior e o senhor Ministro da Educação Nacional vê-se obrigado a extinguir a Sociedade Portuguesa de Escritores; Augusto de Castro desanca na Unesco, ridiculariza o «pitoresco» Senghor e as propostas aprovadas com o apoio de países «meio selvagens, alguns em estado latente de selva», onde se «coça a carapinha», e alerta para os perigos do racismo «antibranco»; o vice-reitor da Universidade de Coimbra exalta a gesta lusa e garante que «se a Índia não pôde salvar-se com a espada da justiça, não poderá salvar-se Portugal em África sem a justiça da espada»; o senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros, algum tempo depois, explica, pedagógico: «Estamos em África porque é esse o nosso direito, o nosso dever e o nosso interesse; mas estamos igualmente em África porque é esse o interesse geral do mundo livre»...

Entretanto, nos primeiros dias de 1966, na obscura Secção de Finanças de Loulé, era emitida, com o número 30, uma «Licença Anual Para Uso de Acendedores e Isqueiros»; de facto, nos termos do decreto-lei nº 28219, de 24 de Novembro de 1937, conjugado com o DL 32834, de 7 de Junho de 1943, era proibido o uso ou simples detenção destes artefactos na ausência da respectiva licença fiscal; para os infractores estava prevista uma multa de 250$00, elevada ao dobro caso o delinquente fosse funcionário do Estado ou dos corpos administrativos; a denúncia era premiada, e os bufos tinham direito a metade do valor da coima que a lei destinava ao autuante...

Tenho esta licença nas mãos, olho a chancela do Chefe da Secção de Finanças de Loulé, leio as indicações do verso, e por instantes, assim à distância, é como se tivesse nas mãos um objecto inverosímil, irreal. Até que regresso aos jornais da época em que foi emitido o título que concede o direito de usar um isqueiro, e tudo, de súbito, volta a fazer sentido...

terça-feira, outubro 07, 2003

Ao cuidado da Academia Sueca

Há muito que se conheciam os aceleradores de partículas, os aceleradores electrostáticos, os aceleradores de Van de Graaff e, mesmo, os aceleradores que produzem impulsos de alta tensão ao carregar condensadores em paralelo e efectuar a sua descarga em série. Pois em Portugal acaba de ser inventado o «acelerador de impulsos de taxímetro». O invento parece que já está a ser comercializado em círculos restritos da capital, sobretudo na zona do Aeroporto, e permite aumentar o preço de uma corrida de táxi, accionando dissimuladamente um pequeno interruptor escondido junto à alavanca de velocidades ou por baixo do volante do veículo. Os resultados da política iniciada pelo sr. prof. Mariano Gago nos domínios da ciência e da tecnologia, nem sempre bem compreendida, afinal começam a produzir efeitos muito mais cedo do que se esperava...

segunda-feira, outubro 06, 2003

Os fins de tarde

Estamos no Outono. Os dias são agora mais breves que as noites, as nuvens ocultarão as estrelas com maior frequência, a humidade do ar trará com mais nitidez o rumor dos comboios, as aves passarão vagarosas sobre a península nas suas formações em delta, os fins de tarde deixarão no céu uma estranha mistura de tons, o mar afastar-se-á na vazante com a sensação estranha de que, de súbito, pode deixar-nos para sempre. Talvez seja também chegado o tempo de, uma ou outra noite, vagarosamente, regressarmos a Constantino Paustovski: «Mas o melhor momento do dia era o crepúsculo, quando, por cima das húmidas matas de bétulas, subia uma lua enevoada. Sob o céu vesperal, os ramos dos chorões perfilavam-se como sombras chinesas, aéreas. Nuvens imóveis, nas alturas, de uma cor cinzenta e violácea, difundiam uma leve incandescência. Depois, por cima da imensa terra apaziguada, instalava-se o reino de uma noite cumulada de ar fresco e de cheiro de água.»

A machadada final

Isto é um escândalo... O governo português decidiu que os estrangeiros que compraram casa no Algarve vão deixar de poder fugir ao pagamento de impostos no nosso país... Não se faz... Os ingleses, por exemplo, sempre compraram as propriedades em regime de offshore através de empresas sedeadas em paraísos fiscais, e evitavam assim os encargos com a sisa e as taxas notariais. E assim é que estava certo... Não é justo que estes privilégios acabem de repente. O futebolista Alan Shearer e o piloto brasileiro Rubens Barrichello, por exemplo, com que dificuldades e apertos não se vão confrontar ao exigir-se-lhes o desembolso anual de meia dúzia de tostões suplementares? O Algarve está à beira de um ataque de nervos... De acordo com a reportagem do Expresso (que, como é de costume nestas matérias, revela uma imparcialidade de referência...), «os algarvios estão com receio de que a aplicação da nova lei de impostos sobre o património converta o Algarve num deserto.» Há já muito tempo que não se via uma questão tão séria formulada com tanta propriedade...

sábado, outubro 04, 2003

Labirintos

No ano passado, em Cacela, num pátio árabe, à sombra de uma parede de cal, perguntei a René Bértholo que objecto era esse a que João Miguel Fernandes Jorge se referia num poema de Actus Tragicus: «Three aspects of the sky, 1968». Curiosamente, René não sabia da existência do poema, e estranhou a tradução para inglês do título de um objecto com movimento aleatório, produzido nos anos sessenta, a que dera o nome de «Três aspectos do céu». O pintor, que não conhecia JMFJ, contactou-o e esclareceu o mistério: o objecto tinha sido mostrado ao autor de Actus Tragicus por Paul Dukas, um músico francês entretanto falecido; por sua vez, René fizera alguns desenhos sobre os objectos da série «modelos reduzidos», incluindo o objecto em causa, que foram publicados na revista «Paris Review», e cujos títulos, naturalmente, haviam sido traduzidos para inglês; e era com essa designação, em inglês, que Dukas se referira à obra... Tudo esclarecido, JMFJ acedeu ao convite de René para escrever o texto de abertura do catálogo da sua mais recente exposição, que pode ser visitada na Galeria Fernando Santos, no Porto, até 11 de Novembro.

E é assim que, separados por quase 25 anos, um poema e um texto crítico («O dono das torres e outras pinturas a óleo de René Bértholo») nos aproximam, num estranho jogo de coincidências, de uma das mais fascinantes aventuras estéticas do nosso tempo.

Three aspects of the sky, 1968

É um dos aspectos do céu de Bertholo.
Foi paul dukas quem o mostrou.
Prisma movendo nove motores (quinze R.P.M.).
O objecto consiste nos nove cilindros de
alumínio
triangulares prismas os lados estão pintados
transformando o dia o pôr do sol a própria
noite.
A cor de cada lado vai do vermelho ao
laranja
do amarelo ao verde que lá não está
ao próprio azul.
Graduação de cores e sentimento.
O céu recebe estas três setas movendo
transformando
algumas manivelas um fole o objector da
consciência do céu roda o prisma os prismas
numa sequência de tempo.
Trinta segundos bastam.
Podemos ver o céu mudar.

(João Miguel Fernandes Jorge, Actus Tragicus. Ed. Presença, 1979)

O país diminutivo

É curioso: as viagens de helicóptero, de súbito, passaram a designar-se por «viagenzinhas»...

sexta-feira, outubro 03, 2003

Clepsydra

Entre o Carvoeiro e Armação de Pêra, neste litoral de arribas altas, recortado, sucedem-se pequenas praias nas breves reentrâncias que funcionam como armadilhas para a areia em trânsito no sentido poente-nascente. No Outono é já possível, com alguma paz, visitar a capela de origem visigótica da Senhora da Rocha e olhar o mar do alto da falésia, ou mesmo descer à Cova Redonda, à praia Nova, à praia da Marinha, ao Barranquinho, à Albandeira. Deve então deixar-se o carro num dos acessos em terra batida e seguir em passeio junto às linhas de água que desaguam nestas enseadas. Como na praia do Barranco, por exemplo, onde é recomendável, na vazante, ganhar algum tempo a procurar «conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos».

E agora?

O senhor ministro da Educação demitiu-se. É de supor que o futuro ministro, durante os próximos meses, estude minuciosa e demoradamente os dossiês e acabe por diferir no tempo o exercício decisório. No entretanto, sem um rosto objectivo contra quem dirigir a energia reivindicativa, os estudantes do ensino superior em cruzada contra o pagamento da propina vão mostrar o rabo a quem?

quinta-feira, outubro 02, 2003

A outra face

José Pacheco Pereira tocou há dias num ponto essencial, que entra pelas nossas vidas, mas de cuja importância poucos se aperceberam: o Papa está a morrer. Há muito que agoniza e cada dia se torna para si num novo calvário. Nunca se assistiu em directo, durante tanto tempo, a semelhante Paixão. Quer dizer, tornou-se corrente o sofrimento inflingido a terceiro, mas nunca, com esta perseverança e fé, o sofrimento que uma pessoa se inflinge a si próprio. Numa altura em que o mundo católico clama pela sua resignação, num último assomo de dignidade João Paulo II chama a si as forças que lhe permitem demonstrar, a si mesmo e ao próximo, que não há limites para a fé, nem para o sacrifício. O exemplo de dignidade na dor e no sofrimento, o firme propósito de demonstrar que mesmo nos instantes finais da vida, na solidão e na velhice, não tem de haver resignação são porventura a mensagem que mais profundamente deixará após o seu desaparecimento. A imagem do mártir há muito que não lhe cola. Despojado de tudo, agora é o ancião, homem, que transparece. O seu sofrimento voluntário e a exibição deste ao mundo de forma digna e eficaz, fazem de João Paulo II uma figura emblemática na história de toda a humanidade e o mais digno dos sucessores de Pedro. Ao pé da Via Sacra que há muito se propôs traçar e cujo fim se não adivinha, o seu contributo decisivo para a queda do muro de Berlim e o mea culpa pelos excessos da Igreja Católica nos últimos séculos parecem contributos menores para a ordem internacional na medida em que a sua nova e derradeira mensagem é, como nenhuma outra o foi, de facto, urbi et orbi.

quarta-feira, outubro 01, 2003

As primeiras chuvas

Ontem, com as primeiras chuvas do Outono, começou a época oficiosa das cheias. Não tarda, terá início a época oficiosa do choradinho em directo nos telejornais. Escolha a opção certa: a) ele não há meio de aprendermos; b) a culpa é do clima; c) a gente já viu este filme em qualquer lado.

Diáspora

Estranho vê-lo assim ao fim da tarde a rodar entre as mãos uma garrafa de água do Luso em vez da habitual garrafa de cerveja. Diz-me que não pode beber, que anda com problemas de «ácido telúrico»... Não admira: veio de longe para trabalhar na construção civil; tem saudades da terra; que outra doença haveria de ter?