quinta-feira, outubro 02, 2003
A outra face
José Pacheco Pereira tocou há dias num ponto essencial, que entra pelas nossas vidas, mas de cuja importância poucos se aperceberam: o Papa está a morrer. Há muito que agoniza e cada dia se torna para si num novo calvário. Nunca se assistiu em directo, durante tanto tempo, a semelhante Paixão. Quer dizer, tornou-se corrente o sofrimento inflingido a terceiro, mas nunca, com esta perseverança e fé, o sofrimento que uma pessoa se inflinge a si próprio. Numa altura em que o mundo católico clama pela sua resignação, num último assomo de dignidade João Paulo II chama a si as forças que lhe permitem demonstrar, a si mesmo e ao próximo, que não há limites para a fé, nem para o sacrifício. O exemplo de dignidade na dor e no sofrimento, o firme propósito de demonstrar que mesmo nos instantes finais da vida, na solidão e na velhice, não tem de haver resignação são porventura a mensagem que mais profundamente deixará após o seu desaparecimento. A imagem do mártir há muito que não lhe cola. Despojado de tudo, agora é o ancião, homem, que transparece. O seu sofrimento voluntário e a exibição deste ao mundo de forma digna e eficaz, fazem de João Paulo II uma figura emblemática na história de toda a humanidade e o mais digno dos sucessores de Pedro. Ao pé da Via Sacra que há muito se propôs traçar e cujo fim se não adivinha, o seu contributo decisivo para a queda do muro de Berlim e o mea culpa pelos excessos da Igreja Católica nos últimos séculos parecem contributos menores para a ordem internacional na medida em que a sua nova e derradeira mensagem é, como nenhuma outra o foi, de facto, urbi et orbi.