quarta-feira, outubro 08, 2003

Nos anos sessenta

Vejam-se os jornais da época: em meados dos anos sessenta são frequentes as curas milagrosas em Lourdes e o reconhecimento oficial da igreja de que se trata de intervenções sobrenaturais; no nosso país, sem a mediação divina, o Prémio Camilo Castelo Branco é atribuído a um terrorista condenado criminalmente a catorze anos de prisão maior e o senhor Ministro da Educação Nacional vê-se obrigado a extinguir a Sociedade Portuguesa de Escritores; Augusto de Castro desanca na Unesco, ridiculariza o «pitoresco» Senghor e as propostas aprovadas com o apoio de países «meio selvagens, alguns em estado latente de selva», onde se «coça a carapinha», e alerta para os perigos do racismo «antibranco»; o vice-reitor da Universidade de Coimbra exalta a gesta lusa e garante que «se a Índia não pôde salvar-se com a espada da justiça, não poderá salvar-se Portugal em África sem a justiça da espada»; o senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros, algum tempo depois, explica, pedagógico: «Estamos em África porque é esse o nosso direito, o nosso dever e o nosso interesse; mas estamos igualmente em África porque é esse o interesse geral do mundo livre»...

Entretanto, nos primeiros dias de 1966, na obscura Secção de Finanças de Loulé, era emitida, com o número 30, uma «Licença Anual Para Uso de Acendedores e Isqueiros»; de facto, nos termos do decreto-lei nº 28219, de 24 de Novembro de 1937, conjugado com o DL 32834, de 7 de Junho de 1943, era proibido o uso ou simples detenção destes artefactos na ausência da respectiva licença fiscal; para os infractores estava prevista uma multa de 250$00, elevada ao dobro caso o delinquente fosse funcionário do Estado ou dos corpos administrativos; a denúncia era premiada, e os bufos tinham direito a metade do valor da coima que a lei destinava ao autuante...

Tenho esta licença nas mãos, olho a chancela do Chefe da Secção de Finanças de Loulé, leio as indicações do verso, e por instantes, assim à distância, é como se tivesse nas mãos um objecto inverosímil, irreal. Até que regresso aos jornais da época em que foi emitido o título que concede o direito de usar um isqueiro, e tudo, de súbito, volta a fazer sentido...