sábado, julho 31, 2004

Sombra

Talvez que,
para lá do que vês, nada,
nem a própria sombra disso
sequer, exista.

Esquece, por isso,
o teu desejo
que te engana
e deseja nada ter

Este estado

Vejo sem olhos, sem ter língua grito,
anseio por morrer, peço socorro,
amo outrem e a mim tenho um ódio atroz.

Petrarca,
[excerto de]
Nem Tenho Paz Nem Como Fazer a Guerra

[os adolescentes de julho]

perdiam-se por igual
nos declives da encosta
ou nas páginas
numeradas
dos romances

[os incêndios]

se ao menos o teu coração
também se pudesse
circunscrever

Que nos fica?

Que nos fica
depois dos risos,
das lágrimas,
do choro,
dos poemas,
do sangue?
Da indecisão,
dos amuos,
da dor,
de tudo,
o que em ti viveu
e dentro
de mim guardo?

Algo doce,
salpicado de cores...

"Epuisé"

Exangue,
pela luta dos dias,
retiro ainda de ti
todas as forças
que me permitem
velar, outra vez,
as cinzas
que o vento teima
em espalhar.

O rio

Um rio nasce. Um riacho, um regato. Tanto faz. Mas desde que o faz tem vida própria. Por vezes, funde-se noutro rio, gémeo ou não e juntos formam uma corrente mais forte, que os mantém unidos. Por vezes nem por isso. Atravessam continentes ou por vezes simplesmente desaguam em pantanais que não os levarão a lado nenhum; e desaparecem, prematuramente, sem deixar rasto, nas areias de um qualquer deserto perdido e escaldante. E no entanto, todos os rios têm a sua razão de viver, o seu sentido; mas quantas vezes, por causa dos relevos da paisagem e das barragens que colocam no seu curso, semelhantes à vida dos homens, não cumprem o seu destino?

sexta-feira, julho 30, 2004

Um momento

Há um momento terrível: esse momento em que já não queremos tudo; ou em que já nem queremos quase tudo. Esse momento a partir do qual esperamos o que vier. Sem forças. Sem vontade. Ou já nem esperamos. Esse momento, sobretudo, a partir do qual nem a tristeza nos dói.

O passado

Olhar as cinzas é sempre olhar o passado: o que foi antes delas; mas sobretudo o que poderia ter sido.

quinta-feira, julho 29, 2004

O jogo da bola

O sr. Presidente da República não conteve as lágrimas no discurso de agradecimento e homenagem aos jogadores da selecção, à equipa técnica e aos dirigentes. E a voz embargou-se-lhe. Na mesma altura, sua excelência o ministro-adjunto haveria de esclarecer que o Euro 2004 ultrapassa tudo quanto se fez em Portugal nos últimos cem anos (desde 1904, portanto). E a imagem da Primeira-Dama, vestida de bandeira nacional na bancada VIP de um estádio de futebol, expectante, permanece na nossa retina mesmo quando cerramos os olhos e procuramos, em vão, descortinar um outro desígnio para o País e nós próprios, portugueses em êxtase descendente à medida que vamos esquecendo o odor da pólvora dos foguetes da cerimónia de encerramento e o seu estralejar colorido.

Entendamo-nos: o jogo é uma das componentes fundamentais da vida que vivemos ou suspeitamos viver. E o futebol é o jogo por excelência. Que o Euro 2004, ao menos durante umas semanas, nos tenha distraído dos problemas económicos e sociais, nos tenha feito esquecer a crise, a tanga e o pântano, nos tenha aliviado a dor dos empréstimos bancários e das contas da oficina mecânica - só lhe podemos agradecer. A ele e a cada uma das partidas que se foram disputando dentro e fora das quatro linhas que definem a arena mais fascinante e arrebatadora de um tempo em que, por regra, escasseiam os espaços de fascínio e arrebatamento. Que o Postiga  tenha decidido marcar a grande penalidade num golpe de génio, deitando o guarda-redes adversário na caminha fofa do relvado, impotente, enquanto o esférico, vagarosamente, lhe passava à banda - eis um milagre de que precisávamos. Como precisávamos de ver o Ricardo a despir-se das luvas e a defender um remate desferido a onze metros de distância ou o Figo a desembaraçar-se com elegância de um defesa inglês com vocação de cão de guarda e, no drible, flectir ligeiramente à esquerda e rematar ao poste, como se o poste fosse uma provação a que necessariamente devem estar sujeitos os que aspiram à glória. Como precisávamos de trazer as bandeiras para a rua, como precisávamos do Cristiano Ronaldo, como precisávamos de sonhar, de acreditar, de dançar, de nos emocionarmos até às lágrimas mais concretas.

Mas o jogo da bola é um jogo. Só. É a alegria e o gozo de participarmos na festa, é o gosto e o júbilo de um passe de mágica, e também a aflição e a tristeza de um livre falhado ou de um desastre anunciado. É um jogo que se disputa na lama ou na relva bem tratada de um estádio. Onde temos os nossos heróis e as nossas bestas de estimação. Onde nos são permitidas a irracionalidade e a emoção extremas. Onde fazemos um intervalo que nos ajuda a viver. Ponto final.

E é por isso que nos sentimos tristes com a tristeza do sr. Presidente e com o soluço na garganta do sr. Madaíl a estender o pescoço à comenda: não havia necessidade de, tão apressadamente e a despropósito, invocar as quinas e o destino e o desígnio duma pátria com quase nove séculos de História e, pelos vistos, com cem anos exactos à espera de um feito assim que a mereça.

[Jornal do Algarve, 2004.07.29]

Teorema de Cupido

O quadrado da intensidade do amor é igual à soma do quadrado do esforço que dois amantes desenvolvem para se recordarem do seu último encontro.

Os tempos

É curioso constatar a mudança dos tempos. Onde antigamente o homem fazia face à fera, hoje tem de fazer face à burocracia. Onde em tempos idos a morte de uma cabeça de gado que se tornara presa dos lobos significava farto prejuízo, hoje significa a entrada num corredor de burocracia interminável para provar a culpa do lobo. Sim, porque apesar de inimputáveis, os lobos são hoje sujeitos causadores do dever de indemnizar, porque constituem - e bem - espécie protegida. E assim, onde antigamente se organizavam batidas para eliminar o lobo ou idas aos covis para eliminar os cachorros recém-nascidos, hoje preenchem-se formulários intermináveis. É assim, simplesmente assim, não sei se estará certo ou não, mas pergunto-me como pode uma pessoa que se habituou a acertar o seu calendários pelas estações e pela época de reprodução dos lobos, viver de acordo com o que agora se lhes impõe num qualquer gabinete de Lisboa?

O homem

O homem trabalha. Toma por esposa a mulher dos seus sonhos. Amealha. Emigra para amealhar ainda mais. Vive longe dos filhos, da mulher, de todo o conforto de um lar. Nas suas visitas anuais a Portugal, concebe um filho com aquela que escolheu e que o recebeu. Uma, duas... cinco vezes. No nono mês de gravidez do quinto filho, a mulher tem um acidente, quebra a coluna, fica tetraplégica e com respiração assistida, mas consciente. Chamam-no. O homem vem o mais depressa que pode. Chega a tempo de assistir ao nascimento, por cesariana, do seu quinto filho, uma menina a que, por milagre, chamará Fátima. A mulher despede-se dele e o ventilador é desligado. O homem chora com a menina nos braços. Chorará toda uma vida e não tornará a casar. Deposita todo o seu amor nos filhos, mas nutrirá por Fátima um sentimento especial.
Fátima engravida, ainda adolescente, de uma aventura com um primo. Este assume, mas não estão apaixonados. Fátima nunca casará, porque não quer ou não tem ânimo para isso. Vive, lutando pela vida, ao lado de seu pai. O pai, uma vez mais, cria uma neta, depois de criar cinco filhos.
O pai é apesar de tudo um homem feliz. Nunca pediu, foi pastor, pedreiro, carpinteiro e agricultor. Não sabe o que são férias, nem quer saber. Tem uma prótese na anca, mas não faz disso alarde, nem se nota que a tem. Sobe à montanha sempre que pode, duas horas a pé pela serrania, à procura das cabeças de gado. Tem um sorriso franco ao fim do dia de trabalho. Adivinha-se a dor, mas a força de viver deixa-nos na dúvida: as rugas serão da dureza da vida, ou do calor do sorriso?


terça-feira, julho 27, 2004

O amor e o ódio:

se uma coisa nos perde, que outra nos salve.

Desculpa mas...

Juro-te, o incêndio nas Gambelas e no Ludo é completamente alheio à minha vontade. Desta vez não me podes atribuir culpas pelo sofrimento de ninguém

Um pouco (mais) de Norte

Ainda há portugueses em Portugal. Falo dos genuínos, daqueles que fazem o charme de Portugal, não dos de dedo em riste, pançudos, bigodaça farta, macaco empoleirado na narina, dedo espetado na virilha a modos de coça-qualquer-coisa e faz-te útil. Falo dos portugueses que emigraram, tiveram uma vida difícil e que um dia regressaram para fazer algo pela sua terra nela voltaram a criar as suas raízes – se é que alguma vez as perderam – e que falam (sem tiques francófonos) das saudades dos seus tempos de meninice, difícil mas feliz, à sombra da mãe e do pai, ausente na sua faina de Sol a Sol.
Foi esse o Portugal que também vim procurar ao Alto Minho do Lindoso, em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês, numa terra empoleirada à beira de uma fraga do Rio Lima que dá pelo nome de Parada. Aqui a agricultura ainda é de subsistência, os animais têm os mesmos cuidados sanitários dos homens e o irmão-vitelo partilha a campo de brincadeira dos poucos miúdos que mantêm a escola primária aberta. Tudo é genuíno, excepto quando a União Europeia força à normalização dos produtos e o queijo é limiano ou flamengo como em qualquer hipermercado.
Aqui, a porta está sempre aberta, somos convidados para a mesa, fazemos parte da família assim que chegamos, mesmo quando sabemos que talvez nunca mais nos voltemos a ver. E a despeito disso sente-se a precariedade e a dureza da vida de cada vez que franqueamos a porta das casas. E no entanto há histórias de vida, de família, de agrura, de sangue e desgraças. Filhos desavindos, pais separados, irmãos mortos em rixas, mas tudo faz parte do folclore local, como o ódio a Espanha não galega, porque esta é outra Espanha, próxima, aqui ao lado, feita de irmãos do mesmo sangue, comungando das mesmas agruras da serra.
Aqui, o tempo não parou, mas é evocado nos espigueiros, nos moinhos de água, nas pedras de cada casa, nas ruas de empedrado irregular e na voz embargada dos velhos de que falam dos seus tempos de antão. Aqui, dá gosto regressar mesmo quando chegamos pela primeira vez. Sentimos vergonha do carro novo, do ar de emigrante que no Verão mostrar aqui vem mostrar o seu “espada” reluzente e tentamos que não nos confundam com um desses espécimes, que os há, como em todo o lado.
Era para ter sido hoje, mas fica prometido para amanhã, o regresso ao primeiro volume do “Vivir para contarla” de Gabriel García Marquez. Sinceramente, tem sido uma seca enorme, mas não se pode deixar um livro a meio, sobretudo se se trata de uma obra de Gabo. O que o leitor decerto concordará.

domingo, julho 25, 2004

Política

O País está em alerta laranja. Não é nada de que não estivéssemos à espera.

sexta-feira, julho 23, 2004

A força

"Como uma força" rezava, ao que parece, a letra da música. Onde é que ela já vai? - perguntarei eu...

It's the donkey, stupid!

Bom mesmo é analisar atentamente a nova Lei Orgânica do Ministério da Segurança Social que esteve em estudo durante dois anos. Agora que tal ministério acaba de ser extinto, faz todo o sentido que tenha entrado em vigor semelhante lei. Para quem não saiba, acaba de ser criada a figura da Lei nado-morta, a qual acresce às demais fontes do Direito certamente por inspiração de alguma iluminária.




Assim não

Parece que está tudo de férias. Menos eu. Como dizia o Obélix, sendo assim desinteresso-me...

Enfim, as férias!

A dúvida atormenta-me novamente. Levo o portátil para férias, mantenho-me em contacto com o mundo (e se assim é, com o trabalho também) ou dedico-me pura e simplesmente ao ócio e desligo? Certo é que rumarei a Norte, ao Gerês, em busca do que já não se encontra no Algarve. O cansaço do Sul, das mesmas praias de sempre, dos amigos estivais, a ausência de coragem e vontade para rumar à Culatra afrontam-me este ano. Por outro lado, a vaga de calor e a necessidade de mudar de ares (nunca pensei dizer isto do Algarve) levam-me este ano a procurar praias a Norte. Ano de Xacobeo na Galiza, a bicicleta será fiel amiga numa parte do percurso, porquanto a Inês, já mais crescida, será companheira de viagem e não menosprezará umas pedaladas junto a Castro Laboreiro, primeiro, e depois junto ao Cabo Finisterra. Barragens, Rias Bajas, enseadas e um festival de música celta junto a La Coruña para complementar a paisagem selvagem do Gerês constituem um aliciante programa para os dias que se avizinham. E há a gastronomia ainda, os mexilhões com pimentos e o pulpo a galega de fazer crescer água na boca ao mais infiel peregrino que na condição de mouro de circunstância constituo a tais latitudes. Mas também, no fundo, quem sabe um serão a pintar os aristogatos ou a Branca de Neve na mesa de madeira da sala, a ler algo de circunstância ou simplesmente a repousar no alpendre, poderá ser o melhor das férias. Que me perdoe Xantiago se por acaso ignorar as suas ossadas e as orações dos devotos, mas este ano vou ao sabor do vento e das páginas de alguma literatura pagã. Enfim, volto daqui a semana e meia... se resistir à companhia do portátil.
Boas férias para os que igualmente partem e coragem para os que ficam ou já regressaram do paraíso.

Física

Bem certo é que o calor dislata os corpos.

quinta-feira, julho 22, 2004

Hoje estou longe...

Olá... Hoje não te contarei uma história, não velarei o teu sono, não me sentarei na beira do colchão, devagarinho para não te acordar, a ouvir a tua respiração compassada, não contemplarei o teu rosto descansado, as mãos fechadas ao lado da cabeça, naquela posição que tens desde os primeiros dias no berço. Hoje, não te aconchegarei o lençol fino que teimas em afastar para os pés da cama, nem enxotarei a gata de cima da colcha, mesmo sabendo que ela regressará inevitavelmente assim que me afastar. Hoje sentirei as saudades que sempre sinto quando estou longe de ti e espero que adormeças a tempo de as não sentir. Hoje, e até lá, contarei as horas para o reencontro que antevejo com a mesma impaciência com que aguardei o teu nascimento. Dorme bem, filha, como sempre fazes quando te conto a história da fada das cores, depois do ritual de despedida das fotografias dos amigos, dos bonequinhos de peluche e do piano cor de laranja.

What comes around, comes around

Há títulos que não merecem o texto que se lhes segue. Há textos que não valem o título que os apresenta.Há pessoas que não valem a carne, os ossos, os tecidos de que são feitas. Eu sei, há dias assim,em que temos de conviver com a ideia que alguém possa achar isso de nós próprios.

Paisagem, Ordenamento

No nosso país, muito boa gente (técnicos, autarcas, secretários de estado, ministros) deveria ser compulsivamente atada a uma cadeira e obrigada a assistir pela TV, etapa por etapa, à Volta à França em bicicleta.

Da inacção como virtude



Demorou dois anos de intensa actividade técnica e administrativa a preparação de legislação que altera a orgânica do Ministério da Segurança Social e do Trabalho. O diploma, finalmente, foi publicado em Diário da República. No exacto dia em que já não existe Ministério da Segurança Social e do Trabalho. No exacto dia em que um novo Governo toma posse. No exacto dia em que a orgânica do novo Governo arruma o Trabalho nas Actividades Económicas, e encosta a Segurança Social à Família e à Criança. O Decreto-Lei 171/2004 deixa de produzir efeitos no mesmo instante em que sai, com a tinta ainda escorrendo, das rotativas da Imprensa Nacional. Dois anos não será tempo excessivo para preparar nova lei orgânica. Mas talvez seja mais sensato deixar as coisas como estão. A inacção arrisca-se a ser a maior virtude e a melhor conselheira: quem não mexe, pelo menos não estraga. Leiam Albert Cossery. A teoria vem explicada nos «Mandriões no Vale Fértil».

quarta-feira, julho 21, 2004

As palavras certas

"It was hard to swallow". Estas as palavras utilizadas por Bill Clinton em entrevista ao 60 Minutes, para descrever a reacção de Hillary quando lhe contou o episódio Monica Lewinsky. Se isto não é sentido de oportunidade...

terça-feira, julho 20, 2004

[o silêncio]

tecendo seus fios
vagarosamente
laboriosa
a labareda do tempo
cresce na casa
quando todos
dormem
 

[o engano II]

como às vezes nos é
permitida a alegria
assim nos seja dado o engano 


Precipício

Subir à montanha mais alta
Descer ao sítio mais recôndito
Fugir dos raios do Sol
Esconder-me na sombra
 
O precipício, hoje!...
não existo no mundo dos vivos
Movo-me, por instinto 
à passagem das horas.
 
Os dias alongam-se
e agarro-me a nada
à espera que tudo
aconteça. no entanto...
 
...a felicidade, sei-o,
é uma quimera.


segunda-feira, julho 19, 2004

Escrever

Escrevo, porque receio não estar a escrever quando chegar a minha hora.

O engano

Não, não era amor, era pior ainda.

domingo, julho 18, 2004

A surpresa

Paulo Portas descobriu, com surpresa, em plena cerimónia de posse do novo governo, que afinal também é Ministro dos Assuntos do Mar. Depois da sua intervenção no caso Prestige, onde julgou o Ministro que este se afundou ao fim deste tempo todo? Um Pouco Mais de Sul inclina-se para opinar que o Ministro acharia que uma criatura das profundezas o teria engolido. Alguém do clá Soares, talvez?...

Para acabar de vez

Não sabes muito bem o que distingue a erosão costeira da biodiversidade; a Rede Natura da Reserva Ecológica; as zonas de máxima infiltração dos leitos de cheia; um endemismo duma infestante; um plano de pormenor dum alvará de loteamento. Pois muito bem: inscreve-te; põe-te na fila: arrisca-te a ser o próximo ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território.

sábado, julho 17, 2004

A distância

Sentiu-a distante, uma distância própria de quem tivesse partido para sempre. E era como se o distanciamento que ela lhe ditou o atirasse, irremediavelmente, para os seus braços, porque outra ideia seria insuportável. Insustentavelmente, era mesmo assim.

sexta-feira, julho 16, 2004

O Beijo

 
 
O Beijo, KLIMT, Gustav 1908

Paixão, erotismo ou desespero?

Pena é...

...  que as nuvens cinzentas não fiquem presas a um qualquer ontem. 

(Um Pouco Mais de Sul visto por um(a) leitor(a), I)


Ficar...

Levantou-se à segunda tentativa. Doíam-lhe os ossos havia muito. A face enrugada não o deixava mentir quanto à idade. Os filhos haviam partido, tinham crescido, deram-lhe netos e os netos bisnetos. Cinquenta e nove anos. Tinham passado cinquenta e nove anos desde que sentira pela última vez aquela pele. Desde que vira aquele sorriso colorido de menina. Tudo, o seu gesto, o seu odor, o seu cabelo guardara dentro de si, fechados, inviolados, aos olhos de quem quer que fosse. Cinquenta e nove anos tinham passado desde então e era isso que trazia dentro de si. Tudo o resto fora acontecendo, por acaso, porque tudo a vida lhe trouxera aos poucos, menos o riso, menos a alegria incontida.
Olhou para o corpo mirrado, adormecido, deitado há instantes a seu lado, na cama velha. As venezianas filtravam uma pequena parcela da luminosidade do romper do dia e moldavam-no na contraluz por baixo dos lençóis. Outro dia. Como o fora cada dia nos últimos cinquenta e nove anos. Um dia a mais. Mas ficara. E nisso pensara, durante cinquenta e nove anos, todos os dias, em nome de algo que, sabia, nunca mais teria tempo de reencontrar...

A cólera nos tempos do amor

Cinquenta e três anos, sete meses e onze dias esperou Florentino Ariza por Fermina Daza. Cinquenta e três anos, sete meses e onze dias teve Florentino Ariza uma resposta pronta para dar a Fermina Daza. Cinquenta e três anos, sete meses e onze dias amou  Florentino Ariza, Fermina Daza, como no primeiro dia. E depois disso ainda a amou para sempre. Mas um dia, um mês, um ano  representam, por vezes, incomparavelmente, muito mais tempo.



Um nome

Regressas. A humidade nas paredes de cal. O sucessivo pó sobre a mesa. A imprevista luz a descer do telhado em ruínas, oblíqua, suspendendo pequenas partículas brilhantes que o teu movimento de passagem levantou do passado. Mas só recordas o seu nome. A sua voz. Os seus silêncios. O modo como fechava as janelas antes da chuva quando ninguém ainda pressentia a tempestade. E é por esse nome que hoje regressas. Embora sabendo que nem na memória desse nome encontrarás refúgio ou protecção.

quinta-feira, julho 15, 2004

O amoroso

O amor compreende
os fumos

os rumores dos lençóis

a boca
devoradora

esses cigarros.

[José Viale Moutinho]

quarta-feira, julho 14, 2004

Pois...

Sofia Lorena, na edição de hoje do PÚBLICO, garante que tudo leva a pensar que os serviços secretos externos dos EUA e do Reino Unido «estão desactualizados e obsoletos», que «aparentemente não lidam bem com pressões», que «provavelmente não interagem o suficiente», que «muitas vezes partem de ideias pré-concebidas», que «pecam por sobrevalorizar», que «sofrem de ‘wishful thinking’», que, «de muitas formas, são usados ou deixam-se usar», e que todos estes erros já anteriormente «tinham sido cometidos». Ora bem. Mas quando é preciso encontrar um ‘bode exploratório’, lá estamos nós, os funcionários públicos relapsos, na linha da frente...

[O mundo*]

Eu que cresci no interior de uma árvore
às vezes imagino o mundo desenhado
com o rigor das folhas do vidoeiro
ou com a perfeição das suas sementes

aladas: como se uma árvore
por um instante breve pudesse reproduzir
em todas as paredes e em todos os pátios
de todas as casas do mundo

esse repetido milagre: o do inverno
a tecer junto às raízes
o limbo e o seu ápice, o pecíolo,

a bainha, uma semente que
o vento mais tarde levará para longe
para que mais nos pertença.

A vazante

De manhã,
chega-me o eco do teu acordar.
Há notícias na maré,
tiveste um sono tranquilo
O meu dia melhorou.
Muito.

Primeira Liga

O Salgueiros não pagou as suas dívidas e por isso é despromovido à segunda divisão do futebol nacional. A confirmar-se, saúda-se o regresso de uma equipa algarvia ao escalão principal do campeonato de futebol. Força Portimonense.
Não nos peçam é um estádio novo.



PS: o seu a seu dono, a subida do Portimonense é à divisão de honra e não ao escalão principal. Por lapso lavrei no erro de que o Salgueiros estava na Primeira Liga de futebol, mas afinal milita na Divisão de Honra. As minhas desculpas e obrigado pela chamada de atenção. Opto por não mexer no "post" original porque de outra forma os comentários deixariam de fazer sentido e o erro passaria mais disfarçado, coisa que, obviamente, não quero.

Direìto à Floresta

E pronto, eis as chamas no seu esplendor. Começa a romaria dos bombeiros, país acima, país abaixo. Famílias desalojadas, casas perdidas, animais chacinados, o baile das televisões em busca da cena mais lamentável, do ângulo de melhor captação da devastação alheia. Eis o ministro que se lamenta, porventura será demitido ou demitir-se-á, outra vez a eterna pergunta acerca das razões que impedem os militares de abandonar os seus quartéis para ajudar no combate às chamas, a chantagem (justa) dos fornecedores de combustíveis porque não lhes pagam o combustível das viaturas de socorro.
Mas o problema principal, sabemo-lo, ficará sempre por resolver. Os governos duram quatro anos na melhor das hipóteses e regenerar a floresta pelo menos vinte. É demasiado tempo, demasiado caro e dá poucos votos. Se calhar era preciso de uma vez por todas criar regras constitucionais para o ordenamento florestal, e numa segunda fase responsabilizar os políticos em exercício pelo seu não cumprimento. É, definitivamente, perigoso, deixar o ordenamento florestal refém da boa vontade de um governo, ainda que maioritário.
Atá lá, qualquer debate sobre atribuição de culpas será simplista e serôdio, porque os culpados serã sempre os governantes dos últimos vinte ou trinta anos. Precisamente aqueles que, ao recusarem responsabilidades, negam e inviabilizam a construção da política correcta no que a essa matéria diz respeito, mas sobretudo no reconhecimento do Direito Fundamental ao Ambiente e à Preservação dos Recursos Naturais, o que, obviamente, é demasiado grave para ser ignorado.

Dádiva



Cedo, levanto-me predisposto a dar sangue. Por nenhuma razão em especial, mas apenas porque há vontade para isso. Para o efeito, rumo ao Hospital Distrital de Faro. Duas voltas ao perímetro exterior e rapidamente concluo que será impossível encontrar um lugar para estacionar o carro. Normalmente até tenho sorte, mas hoje não é um desses dias. Resolvo-me por fim a tentar a sorte no interior. O vigilante barra-me a entrada, a pergunta de rotina, a que respondo ao que venho. Com um sorriso, diz-me que tem ordens da administração para não deixar entrar ninguém nesses casos. Retribuo-lhe o sorriso e pergunto amavelmente como veio para o seu trabalho. "De carro", responde-me. Obviamente, pergunto-lhe onde estacionou o seu carro. Aponta-me, orgulhoso, a viatura, plena de artefactos "tuning", estacionada dentro do perimetro do hospital. Informa-me ainda que os demais seguranças também estacionam dentro do hospital.
Ficámos, portanto, conversados quanto à dádiva de sangue. Quando precisarem, digam qualquer coisa.

[a largar os horizontes]

na última aula do curso
deformação profissional
pago pela comunidade europeia e
pelo centro de emprego
a senhora dos andares confessou que
não aprendera a fazer melhor as camas
nem a limpar melhor o pó dos móveis
ou as casas de banho do hotel
mas que sabia agora mais coisas
do mundo e de si própria
e que estranhamente se sentia agora
mais triste e desgraçada e inútil
depois de vinte e dois
anos sucessivos a deambular debalde
e esfregona entre corre dores e eleva dores
entre singles e suites
e que só lhe apetecia chorar

segunda-feira, julho 12, 2004

Última hora

Secretaria de Estado dos Recursos Alimentares talvez fique em Lisboa.

[cicatriz]

as marcas
do amor
nem com hirudoid

Culpa

Des
culpa-me pelas lágrimas
Des
culpa-me pelo aperto
Des
culpa-me pela dor

Mas não me negues o passado.

A existência

Viu-a, em passo apressado, caminhando pela areia fina junto à rebentação, às primeiras horas da manhã. Ficou ainda sentado durante um bocado no alpendre debruçado sobre a duna, contemplando-a enquanto sumia no horizonte. Quando se resolveu a segui-la, o vento, a maré e as vagas tinham-se encarregue de a fazer desaparecer, como se o mundo a houvesse engolido. E no fundo, era essa a verdade.



[As despedidas]

Éramos estrangeiros e ficávamos na margem
A olhar as esteiras de tabua a proteger
O peixe dos camiões de remessa,
A ceira de figos, as alcofas de palma.

E vinha depois o levante e espalhava nas esplanadas
Esse rumor das anémonas dos livros,
O sal da península, a ondulação.
Nos alcatruzes da nora, vagarosamente,

Poisavam então as águas leves
Da distância. Que a despedida nos leve
Tudo menos a esteira de tabua, a ceira
De figos, as alcofas de palma.

[Nos jardins]

Quando os caminhos parecem fechados
E uma árvore faz sombra do lado errado
Das palavras; quando o deserto se move

A coberto da noite e do infame
Exercício de contar as sílabas pelos
Dedos em nome da usura; quando até

O rumor da água parece estrangeiro - é
Que nos jardins devem cortar-se as raízes
Das plantas tolerantes à negligência.

sábado, julho 10, 2004

Comunicado

Embora sem grandes conhecimentos de sismologia, Um Pouco Mais de Sul julga poder afirmar que houve um terramoto político em Portugal. O país segue dentro de momentos, porventura com o mais putativo primeiro-ministro de que há memória, ao leme dos destinos da nação.

Casa

O leitor desculpa-me-á. Um regresso assim, nada tem de sebastiânico, mas tão somente de fundamental. Definitivamente, Um pouco mais de Sul não é a mesma coisa desde que o Zé Carlos partiu. Enfim, saudades à parte, importante é que se propõe regressar, com a regularidade que os seus afazeres lho permitirem. Diremos nós que nem sequer tem de ser assim. Basta que regresse com a regularidade que a sua inspiração lhe ditar, porque isto de escrever tem muito de acidental. E nós sabemos que, infelizmente, na prosa como na poesia, nem sempre acidentes acontecem. A casa é tua. O prazer é nosso. Força.

sexta-feira, julho 09, 2004

Parabéns


O Blogal faz igualmente um ano. Não fosse um dos maiores repositórios on-line de poesia algarvia - o que já não seria pouco - é igualmente um excelente veículo de propagação da poesia nacional. Eis um exemplo claro de serviço público. Queremos mais, pelo menos do mesmo, quando melhor não seja possível.

Ontem

Ontem...
um desejo lilás
um sussurro azul
Um múrmurio de todas as cores
Que ficaram por pintar.

Ontem...
Uma terrível nuvem cinzenta
ao cair do dia.
Eu sei, eu sei, eu
tenho culpa do tempo que faz.

Espuma de barbear

Acordou. Cedo, como de costume. Mas tanto fazia, não tinha planos para o resto do dia. Estava de férias, demasiado cansado para ir para fora, demasiado cansado para ir para fora dentro da sua cidade. A "sua" cidade. A ideia pareceu-lhe disparatada. Morava numa daquelas cidades dormitórios onde ninguém vai a não ser para recuperar as energias de uma dia de trabalho igual ao anterior, desejando que o fim de semana tarde em chegar. Levantou-se. Ao espelho, fez a barba e verificou que se tinha esquecido de comprar outra vez lâminas de barbear. Há uma semana que se esquecia de o fazer e cada vez o escanhoar era menos perfeito. A espuma, também no fim e contida numa embalagem de rótulo branco imaculado, fora inspirada por um anúncio que vira na televisão protagonizado por um atleta que ganhava num mês o que ele não ganharia em toda a sua vida de trabalho. Trabalho... como se ele tivesse um trabalho. Passara os últimos vinte anos da sua vida a fazer a mesma coisa, a movimentar pilhas de papéis de um lado para o outro na sua secretária, às vezes divertindo-se a despachá-los para o seu chefe ou para a secretária do seu chefe. Invariavelmente, sabia que retornariam à sua secretária, com mais uma notazinha a caligrafia no canto superior, ou com um carimbo ordenando-lhe que os arquivasse.
Pensou em mudar-se para o centro da cidade. Não a sua, mas a dos outros, os que podiam pagar casas no centro da cidade, mas os preços eram proibitivos e mesmo que o não fossem, provavelmente não teria coragem de deixar a "sua" cidade. Afinal, já conhecia muito bem os seus vizinhos e gostava deles. Havia a senhora gorda do cão, o homem do primeiro andar que usava brilhantina e pigarreava todas as noites às duas da manhã, o miúdo do rés-do-chão que estragava as plantas todas da entrada que a gorda lá colocava a jogar à bola, e havia a loira da porta do lado que mudava de namorado como ele mudava de camisa, o que, bem vistas as coisas, nem eram tantos namorados assim.
A loira... a loira levava-o ao altar. Até era capaz de deixar de fumar por ela, porque a sentiu uma vez incomodada no elevador com o fumo do seu cigarro. Nunca a vira nas reuniões de condóminos desde que se mudara para o prédio. Seria ela a dona do apartamento? Se calhar alugara-o apenas. Subitamente, animou-se com um projecto para as suas férias. Iria descobrir se a loira era dona do apartamento, ou não. Iria à conservatória da "sua" cidade para o saber. Despachou a barba, nem comeu, e foi a correr para a rua. Animou-se mais ainda perante a possibilidade de saber o nome da loira. Mas e depois? Que faria? De modo que voltou para casa. Enfiou-se no sofá. Consumiu o resto das suas férias a pensar no assunto. No autocarro a caminho do primeiro dia de trabalho, pensou que se calhar a abordaria directamente. Afinal, era nisso que pensava há bastante tempo. Sim, é isso - pensou - esta noite convido-a para um café. O dia passou lentamente, a pilha de papéis na sua secretária tinha crescido desmesuradamente, mas não se importou com isso.
De regresso a casa, tomou um banho, o segundo nesse dia, fez a barba com lâminas e espuma novas. Ensaiou na porta do quarto as batidas na porta da loira. Tocar à campainha parecia-lhe desajustado e ao menos seria diferente. Por fim lá foi. Hesitou uma ou duas vezes, e por fim conseguiu. Corou de imediato, mas de dentro não veio resposta. Tentou novamente e nada. Desistiu, talvez tivesse saído. Tentou novamente no dia seguinte e nos que se lhe seguiram. Talvez esteja de férias, pensou. E assim aguardou pacientemente, dez, quinze dias. Em Setembro, um casal jovem ocupou o apartamento da loira.
A ver se no dia seguinte não se esquecia de comprar lâminas; o seu escanhoar já não era perfeito e estava farto de fazer a barba com a espuma do sabonete...

Perdão

O leitor perdoar-me-á a falta de vontade de postar, mas ando por estes dias muito triste. Na verdade, acabo de constatar que provavelmente só eu e o José Castelo Branco é que ainda não fomos chamados a Belém para dar o nosso parecer facto que, convenhamos, não é fácil de encaixar.

quarta-feira, julho 07, 2004

Fundo

Em delírio, obviamente em delírio profundo, é legítimo pensar que se Rui Rio foi nomeado número dois do PSD, ficamos a saber quem será o próximo Primeiro-Ministro se Santana Lopes decidir mesmo candidatar-se às próximas presidenciais e Jorge Sampaio não dissolver a Assembleia da República.

Tara perdida

Pagou em dinheiro o quarto reles numa pensão de terceira categoria com vista para a Ria Formosa. O que da janela se avistava compensava largamente o preço da diária, mas de qualquer forma como não era pelas vistas que Inácio Valdez ali estava, um quarto nas traseiras teria servido para o mesmo efeito. Não levava bagagem, apenas a roupa que trazia pendurada no corpo. Barba por fazer havia já vários dias, cabelo desgrenhado, maçãs do rosto salientes, pousou a garrafa emrulhada num papel de jornal no chão do corredor apertado antes de meter a chave na fechadura e por fim entrou na minúscula habitação que, sob o sol das duas da tarde, estava sufocante. Descalçou os sapatos, deitou-se na cama, desembrulhou a garrafa e conservou-a numa mão enquanto contemplava o papel na outra.
Comprara de manhã o jornal e o veneno e misturara este com whisky barato a fim de disfarçar o sabor da morte a percorrer as suas entranhas. Mas acima de tudo queria morrer informado, não fosse dar-se por exemplo o caso de um ministro ter sido demitido das suas funções e ele morrer sem o saber. Deu um pequeno gole na beberagem que lhe não soube mal. Teria preferido com um pouco de gelo, mas pareceu-lhe ridícula a ideia de poder tirar algum prazer daquele momento. O verso de um poema, escrito numa das folhas de jornal, chamou a sua atenção. Leu-o, vezes sem conta. Depois leu o retalho de jornal de fio a pavio, mas nada mais encontrou que despertasse a sua atenção. Abandonou o jornal e rodopiou a garrafa nas mãos. - Tara perdida, - pensou - antes assim, ao menos amanhã não tenho de me preocupar em ir devolvê-la. Sorriu com o disparate da ideia de um esqueleto a entregar uma garrafa para recuperar a tara e riu mais ainda porque se lembrou que os esqueletos não têm bolsos. Onde guardaria então as moedas? Neste dilema estava Inácio Valdez quando adormeceu e salvou a sua alma.

segunda-feira, julho 05, 2004

Um ano, já!

O Contrasenso envia a Um Pouco Mais de Sul uma calorosa mensagem de parabéns pelo seu primeiro aniversário, que aqui se agradece. Confesso que a efeméride me tinha escapado, pelo que, apenas por tal, não se preparou adequado repasto para celebrar o evento. Aqui fica o pedido de desculpas à blogofera, mas igualmente a promessa de que para o ano tudo será diferente se este espaço durar até lá.

Um ano é sempre altura de balanços, estranha mania esta que todos temos. Perdoe-me o leitor, mas todavia aqui não o farei, em primeiro lugar porque este blog não me pertence, mas sobretudo porque o maior mérito da sua existência não é meu. O Zé Carlos, o João Filipe e o Joaquim Coelho têm uma grande quota-parte de responsabilidade no que aqui foi acontecendo e por isso o balanço também teria de ser deles ou seria incompleto. Em segundo lugar porque, sumariamente, um blog é aquilo que se vê, aquilo que se lê, aquilo que fica depois de se ver e de se ler, e quantas vezes o "aquilo que fica" é pouco mais que nada. Correndo o risco de achar que porventura poderia ser levado a escrever um balanço que pudesse nada significar, recato-me antes naquele episódio retratado por José Eduardo Agualusa, n' O Vendedor de Passados:

"Numa ocasião levaram-me a uma festa. Um velho festejava o seu centésimo aniversário. Quis saber como é que ele se sentia. O pobre homem sorriu-me, atónito, disse-me n ão sei bem, aconteceu tudo demasiado r ápido. Referia-se aos seus cem anos de vida e era como se estivesse a falar de um desastre, algo que sobre ele tivesse desabado minutos antes. Às vezes sinto o mesmo. Dói-me na alma um excesso de passado e de vazio. Sinto-me como esse velho. [...] E todavia, estou vivo. Sobrevivi"

Eis o que há a dizer sobre Um Pouco Mais de Sul, sobre este primeiro ano, sobre esta quase-fatalidade de escrever por acidente. Salut!

Obviamente...

Caímos de pé e cabeça erguida, contra o mais feio futebol praticado na Europa. Duas derrotas são mais do que suficientes para nos convencer que o título, sem história, está bem entregue. As páginas do futebol nem sempre se fizeram de beleza e bem jogar, e para a posteridade este europeu ilustra isso mesmo.

Para virar a página, acredito no projecto que agora se desenha para o Mundial de 2006, no trabalho a fazer em continuidade, com a renovação progressiva do plantel, agora que Scolari conhece melhor o futebol português. Dois dos três membros da geração de ouro que continuavam ao serviço da selecção já têm substitutos à altura - Rui Costa e Fernando Couto (porventura Figo será mais difícil de render) - pelo que a qualificação deverá ser possível, se se capitalizar a vaga de patriotismo que se criou em torno da selecção nacional e a qualidade dos jogadores de que Portugal dispõe. Dito isto, sentirei falta dessa geração, a única que, depois de Eusébio, deixa saudades pelo que correu e sofreu com a camisola nestes últimos treze anos.

Pessoalmente, gostaria que Figo não seguisse para já o exemplo de Rui Costa, porque me parece que ainda tem muito para dar ao futebol português. Oxalá...

O pior pecado

Não Amar.

De Sophia, para sempre

Quando
Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

SMBA, Dia do Mar

sexta-feira, julho 02, 2004

A culpa

O país atravessa um momento difícil (excepção feita ao futebol, mas sobre isso se falará no próximo Domingo) porventura apenas comparável ao Verão quente de 75, ou ao momento que antecedeu e sucedeu a queda do Governo do Bloco Central PS/CDS em 1983. A fuga consecutiva de dois primeiros-ministros, porque é disso que se trata por mais compostura que se tente dar a ambos os cenários, cria a sensação de uma vazio de poder no aparelho de Estado e no aparelho dos partidos PSD e PS, tornando-os reféns de partidos mais pequenos e normalmente sem aspiração a governar, como sejam, à esquerda, o BE e à direita o CDS/PP. Pior, tornam-nos reféns de Francisco Louçã/Miguel Portas e de Paulo Portas, o que é por si só muito pior.
Buscar as causas para compreender as consequências requer um prodigioso exercício de imaginação para perceber o que se passou nas cabeças de António Guterres e Durão Barroso. O que todavia poderá explicar muito melhor a situação actual é o progressivo alheamento dos portugueses em relação aos destinos do seu país. A abstenção sucessiva e crescente, o desinteresse pelas causas principais e uma sociedade civil esvaziada de opinião e conteúdo ideológico são em última análise, os principais culpados pelo surgimento de líderes como António Guterres, Durão Barroso, Ferro Rodrigues e, agora, Santana Lopes.
Neste cenário, a pergunta que fará sentido colocarmo-nos é a de se valerá a pena convocar eleições antecipadas e que vantagem ou utilidade terão estas por comparação a eleições que ocorram em seu devido tempo.
Se dissolver a AR era à partida uma opção, o PR podia e devia tê-lo feito de imediato quando Durão Barroso anunciou a sua demissão. E para justificar tal procedimento, bastaria que a Santana Lopes tivesse sido colocada uma simples questão (a mesma que qualquer jornalista já podia e devia ter-lhe colocado à saída de uma qualquer discoteca). Esta tem apenas que ver com o facto de Pedro Santana Lopes ser actualmente presidente da Câmara Municipal de Lisboa, líder do partido do governo - e por inerência candidato a primeiro-ministro - e pré-candidato a Presidente da República. Dois dos compromissos que assumiu não poderão por si ser, pois, cumpridos até ao fim, mas não deveríamos nós já saber quais serão? Não era natural que alguém já lhe tivesse colocado a questão? Volto a perguntar: valerá a penas convocar eleições, ou está, de facto, tudo bem como está e andamos a perder tempo a discutir coisas de somenos importância quando Portugal está a um passo de se sagrar campeão europeu, "helás!", os gregos e os deuses do Olimpo o permitam?

quinta-feira, julho 01, 2004

A vitória

Nem eu Holandês nem tu Portuguesa. Mas o teu olhar e o brinde que trocámos disseram-me tudo o que queria ouvir, apesar de não falarmos a mesma língua, nem saber como te chamas. As noites de festa também nos trazem disto.