quarta-feira, julho 07, 2004

Tara perdida

Pagou em dinheiro o quarto reles numa pensão de terceira categoria com vista para a Ria Formosa. O que da janela se avistava compensava largamente o preço da diária, mas de qualquer forma como não era pelas vistas que Inácio Valdez ali estava, um quarto nas traseiras teria servido para o mesmo efeito. Não levava bagagem, apenas a roupa que trazia pendurada no corpo. Barba por fazer havia já vários dias, cabelo desgrenhado, maçãs do rosto salientes, pousou a garrafa emrulhada num papel de jornal no chão do corredor apertado antes de meter a chave na fechadura e por fim entrou na minúscula habitação que, sob o sol das duas da tarde, estava sufocante. Descalçou os sapatos, deitou-se na cama, desembrulhou a garrafa e conservou-a numa mão enquanto contemplava o papel na outra.
Comprara de manhã o jornal e o veneno e misturara este com whisky barato a fim de disfarçar o sabor da morte a percorrer as suas entranhas. Mas acima de tudo queria morrer informado, não fosse dar-se por exemplo o caso de um ministro ter sido demitido das suas funções e ele morrer sem o saber. Deu um pequeno gole na beberagem que lhe não soube mal. Teria preferido com um pouco de gelo, mas pareceu-lhe ridícula a ideia de poder tirar algum prazer daquele momento. O verso de um poema, escrito numa das folhas de jornal, chamou a sua atenção. Leu-o, vezes sem conta. Depois leu o retalho de jornal de fio a pavio, mas nada mais encontrou que despertasse a sua atenção. Abandonou o jornal e rodopiou a garrafa nas mãos. - Tara perdida, - pensou - antes assim, ao menos amanhã não tenho de me preocupar em ir devolvê-la. Sorriu com o disparate da ideia de um esqueleto a entregar uma garrafa para recuperar a tara e riu mais ainda porque se lembrou que os esqueletos não têm bolsos. Onde guardaria então as moedas? Neste dilema estava Inácio Valdez quando adormeceu e salvou a sua alma.