terça-feira, julho 27, 2004

Um pouco (mais) de Norte

Ainda há portugueses em Portugal. Falo dos genuínos, daqueles que fazem o charme de Portugal, não dos de dedo em riste, pançudos, bigodaça farta, macaco empoleirado na narina, dedo espetado na virilha a modos de coça-qualquer-coisa e faz-te útil. Falo dos portugueses que emigraram, tiveram uma vida difícil e que um dia regressaram para fazer algo pela sua terra nela voltaram a criar as suas raízes – se é que alguma vez as perderam – e que falam (sem tiques francófonos) das saudades dos seus tempos de meninice, difícil mas feliz, à sombra da mãe e do pai, ausente na sua faina de Sol a Sol.
Foi esse o Portugal que também vim procurar ao Alto Minho do Lindoso, em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês, numa terra empoleirada à beira de uma fraga do Rio Lima que dá pelo nome de Parada. Aqui a agricultura ainda é de subsistência, os animais têm os mesmos cuidados sanitários dos homens e o irmão-vitelo partilha a campo de brincadeira dos poucos miúdos que mantêm a escola primária aberta. Tudo é genuíno, excepto quando a União Europeia força à normalização dos produtos e o queijo é limiano ou flamengo como em qualquer hipermercado.
Aqui, a porta está sempre aberta, somos convidados para a mesa, fazemos parte da família assim que chegamos, mesmo quando sabemos que talvez nunca mais nos voltemos a ver. E a despeito disso sente-se a precariedade e a dureza da vida de cada vez que franqueamos a porta das casas. E no entanto há histórias de vida, de família, de agrura, de sangue e desgraças. Filhos desavindos, pais separados, irmãos mortos em rixas, mas tudo faz parte do folclore local, como o ódio a Espanha não galega, porque esta é outra Espanha, próxima, aqui ao lado, feita de irmãos do mesmo sangue, comungando das mesmas agruras da serra.
Aqui, o tempo não parou, mas é evocado nos espigueiros, nos moinhos de água, nas pedras de cada casa, nas ruas de empedrado irregular e na voz embargada dos velhos de que falam dos seus tempos de antão. Aqui, dá gosto regressar mesmo quando chegamos pela primeira vez. Sentimos vergonha do carro novo, do ar de emigrante que no Verão mostrar aqui vem mostrar o seu “espada” reluzente e tentamos que não nos confundam com um desses espécimes, que os há, como em todo o lado.
Era para ter sido hoje, mas fica prometido para amanhã, o regresso ao primeiro volume do “Vivir para contarla” de Gabriel García Marquez. Sinceramente, tem sido uma seca enorme, mas não se pode deixar um livro a meio, sobretudo se se trata de uma obra de Gabo. O que o leitor decerto concordará.