O sr. Presidente da República não conteve as lágrimas no discurso de agradecimento e homenagem aos jogadores da selecção, à equipa técnica e aos dirigentes. E a voz embargou-se-lhe. Na mesma altura, sua excelência o ministro-adjunto haveria de esclarecer que o Euro 2004 ultrapassa tudo quanto se fez em Portugal nos últimos cem anos (desde 1904, portanto). E a imagem da Primeira-Dama, vestida de bandeira nacional na bancada VIP de um estádio de futebol, expectante, permanece na nossa retina mesmo quando cerramos os olhos e procuramos, em vão, descortinar um outro desígnio para o País e nós próprios, portugueses em êxtase descendente à medida que vamos esquecendo o odor da pólvora dos foguetes da cerimónia de encerramento e o seu estralejar colorido.
Entendamo-nos: o jogo é uma das componentes fundamentais da vida que vivemos ou suspeitamos viver. E o futebol é o jogo por excelência. Que o Euro 2004, ao menos durante umas semanas, nos tenha distraído dos problemas económicos e sociais, nos tenha feito esquecer a crise, a tanga e o pântano, nos tenha aliviado a dor dos empréstimos bancários e das contas da oficina mecânica - só lhe podemos agradecer. A ele e a cada uma das partidas que se foram disputando dentro e fora das quatro linhas que definem a arena mais fascinante e arrebatadora de um tempo em que, por regra, escasseiam os espaços de fascínio e arrebatamento. Que o Postiga tenha decidido marcar a grande penalidade num golpe de génio, deitando o guarda-redes adversário na caminha fofa do relvado, impotente, enquanto o esférico, vagarosamente, lhe passava à banda - eis um milagre de que precisávamos. Como precisávamos de ver o Ricardo a despir-se das luvas e a defender um remate desferido a onze metros de distância ou o Figo a desembaraçar-se com elegância de um defesa inglês com vocação de cão de guarda e, no drible, flectir ligeiramente à esquerda e rematar ao poste, como se o poste fosse uma provação a que necessariamente devem estar sujeitos os que aspiram à glória. Como precisávamos de trazer as bandeiras para a rua, como precisávamos do Cristiano Ronaldo, como precisávamos de sonhar, de acreditar, de dançar, de nos emocionarmos até às lágrimas mais concretas.
Mas o jogo da bola é um jogo. Só. É a alegria e o gozo de participarmos na festa, é o gosto e o júbilo de um passe de mágica, e também a aflição e a tristeza de um livre falhado ou de um desastre anunciado. É um jogo que se disputa na lama ou na relva bem tratada de um estádio. Onde temos os nossos heróis e as nossas bestas de estimação. Onde nos são permitidas a irracionalidade e a emoção extremas. Onde fazemos um intervalo que nos ajuda a viver. Ponto final.
E é por isso que nos sentimos tristes com a tristeza do sr. Presidente e com o soluço na garganta do sr. Madaíl a estender o pescoço à comenda: não havia necessidade de, tão apressadamente e a despropósito, invocar as quinas e o destino e o desígnio duma pátria com quase nove séculos de História e, pelos vistos, com cem anos exactos à espera de um feito assim que a mereça.
[Jornal do Algarve, 2004.07.29]