sexta-feira, julho 09, 2004

Espuma de barbear

Acordou. Cedo, como de costume. Mas tanto fazia, não tinha planos para o resto do dia. Estava de férias, demasiado cansado para ir para fora, demasiado cansado para ir para fora dentro da sua cidade. A "sua" cidade. A ideia pareceu-lhe disparatada. Morava numa daquelas cidades dormitórios onde ninguém vai a não ser para recuperar as energias de uma dia de trabalho igual ao anterior, desejando que o fim de semana tarde em chegar. Levantou-se. Ao espelho, fez a barba e verificou que se tinha esquecido de comprar outra vez lâminas de barbear. Há uma semana que se esquecia de o fazer e cada vez o escanhoar era menos perfeito. A espuma, também no fim e contida numa embalagem de rótulo branco imaculado, fora inspirada por um anúncio que vira na televisão protagonizado por um atleta que ganhava num mês o que ele não ganharia em toda a sua vida de trabalho. Trabalho... como se ele tivesse um trabalho. Passara os últimos vinte anos da sua vida a fazer a mesma coisa, a movimentar pilhas de papéis de um lado para o outro na sua secretária, às vezes divertindo-se a despachá-los para o seu chefe ou para a secretária do seu chefe. Invariavelmente, sabia que retornariam à sua secretária, com mais uma notazinha a caligrafia no canto superior, ou com um carimbo ordenando-lhe que os arquivasse.
Pensou em mudar-se para o centro da cidade. Não a sua, mas a dos outros, os que podiam pagar casas no centro da cidade, mas os preços eram proibitivos e mesmo que o não fossem, provavelmente não teria coragem de deixar a "sua" cidade. Afinal, já conhecia muito bem os seus vizinhos e gostava deles. Havia a senhora gorda do cão, o homem do primeiro andar que usava brilhantina e pigarreava todas as noites às duas da manhã, o miúdo do rés-do-chão que estragava as plantas todas da entrada que a gorda lá colocava a jogar à bola, e havia a loira da porta do lado que mudava de namorado como ele mudava de camisa, o que, bem vistas as coisas, nem eram tantos namorados assim.
A loira... a loira levava-o ao altar. Até era capaz de deixar de fumar por ela, porque a sentiu uma vez incomodada no elevador com o fumo do seu cigarro. Nunca a vira nas reuniões de condóminos desde que se mudara para o prédio. Seria ela a dona do apartamento? Se calhar alugara-o apenas. Subitamente, animou-se com um projecto para as suas férias. Iria descobrir se a loira era dona do apartamento, ou não. Iria à conservatória da "sua" cidade para o saber. Despachou a barba, nem comeu, e foi a correr para a rua. Animou-se mais ainda perante a possibilidade de saber o nome da loira. Mas e depois? Que faria? De modo que voltou para casa. Enfiou-se no sofá. Consumiu o resto das suas férias a pensar no assunto. No autocarro a caminho do primeiro dia de trabalho, pensou que se calhar a abordaria directamente. Afinal, era nisso que pensava há bastante tempo. Sim, é isso - pensou - esta noite convido-a para um café. O dia passou lentamente, a pilha de papéis na sua secretária tinha crescido desmesuradamente, mas não se importou com isso.
De regresso a casa, tomou um banho, o segundo nesse dia, fez a barba com lâminas e espuma novas. Ensaiou na porta do quarto as batidas na porta da loira. Tocar à campainha parecia-lhe desajustado e ao menos seria diferente. Por fim lá foi. Hesitou uma ou duas vezes, e por fim conseguiu. Corou de imediato, mas de dentro não veio resposta. Tentou novamente e nada. Desistiu, talvez tivesse saído. Tentou novamente no dia seguinte e nos que se lhe seguiram. Talvez esteja de férias, pensou. E assim aguardou pacientemente, dez, quinze dias. Em Setembro, um casal jovem ocupou o apartamento da loira.
A ver se no dia seguinte não se esquecia de comprar lâminas; o seu escanhoar já não era perfeito e estava farto de fazer a barba com a espuma do sabonete...