Levantou-se à segunda tentativa. Doíam-lhe os ossos havia muito. A face enrugada não o deixava mentir quanto à idade. Os filhos haviam partido, tinham crescido, deram-lhe netos e os netos bisnetos. Cinquenta e nove anos. Tinham passado cinquenta e nove anos desde que sentira pela última vez aquela pele. Desde que vira aquele sorriso colorido de menina. Tudo, o seu gesto, o seu odor, o seu cabelo guardara dentro de si, fechados, inviolados, aos olhos de quem quer que fosse. Cinquenta e nove anos tinham passado desde então e era isso que trazia dentro de si. Tudo o resto fora acontecendo, por acaso, porque tudo a vida lhe trouxera aos poucos, menos o riso, menos a alegria incontida.
Olhou para o corpo mirrado, adormecido, deitado há instantes a seu lado, na cama velha. As venezianas filtravam uma pequena parcela da luminosidade do romper do dia e moldavam-no na contraluz por baixo dos lençóis. Outro dia. Como o fora cada dia nos últimos cinquenta e nove anos. Um dia a mais. Mas ficara. E nisso pensara, durante cinquenta e nove anos, todos os dias, em nome de algo que, sabia, nunca mais teria tempo de reencontrar...