Uma noite e outra. Uma sinfonia inacabada, dedilhada ao extremo da loucura, na pressão de um concerto de última hora. Arpejos e escalas, ritmo marcado por café atrás do outro, impassível, metrónomo em seco, erupção de sentimentos e sentidos. Assim o pianista sentira os seus últimos dias naquela casa, naquela vida, naquela pauta que para si fora reservada. Da janela para o exterior da minúscula habitação no topo do edifício, ocupada na sua maior parte pelo velho piano de cauda herdado do seu avô entoava o seu piano e o seu estado de espírito dias a fio. Euforia, depressão, melancolia, serenidade, tudo era vivido naquele mesmo espaço... Não era um Steinway o seu instrumento, mas era seu, de estimação, como um animal de que não se prescinde. Com vida, respirava por cada um dos seus poros, resfolegava por cordas e teclas escondidas sob o verniz preto. Dias a fio, o pianista dedilhava febrilmente sonatas e sinfonias, partituras e oitavas, escalas acima e escalas abaixo. Mas sem fim e sem sentido - ninguém liga aos velhos pianistas que se curvam sob o peso do talento que a idade lhes traz. E um dia, tudo fez sentido no dia do violino tocado por dedos de mulher, bela, escondida, que com ele voava em oitavas por sobre os telhados da cidade cinzenta, mais depressa que a brisa do fim de tarde. E de repente, tudo desapareceu. Arrancadas as folhas do calendário, sem as folhas que lhe permitissem contar o tempo que passava, ao pianista apenas restava arrancar o que de mais precioso tinha. E assim, uma a uma, as teclas do seu piano foram sendo retiradas, primeiro cuidadosamente e colocadas na gaveta da mesa da cozinha na vã esperança de ainda as voltar a colocar, mas depois, em desespero, arremessadas pela janela, as brancas e as pretas, que faziam um ruído diferente ao partirem-se de encontro às pedras gastas da calçada do pátio. E um dia, quando escasseavam já as teclas, o pianista fechou os olhos, exasperado pela surdina a que votara as suas sinfonias, a sua voz, a sua vida.