Lembro-me de há uns tempos andar a circular na net um texto cuja autoria era erradamente atribuída a Gabriel García Marquez. Supostamente, seria um texto de despedida do escritor que, padecendo de doença incurável, teria decidido despedir-se do mundo com uma carta que teria sido tornada pública antes da sua morte, contra a vontade de Gabo. Felizmente, nem a notícia era verdadeira, nem o texto era da lavra do prémio Nobel. Pessoalmente, como admirador da prosa de García Marquez, duvidei que alguma vez pudesse ter escrito uma coisa com aquele teor. Não que a carta fosse má ou estivesse mal escrita. Nada disso - a despeito de possuir alguma lamechice desbocada - mas sobretudo porque a lamechice não faz parte, de todo, do estilo do escritor. Seguramente, quem escreveu "O Amor nos Tempos da Cólera" não precisa de se despedir do mundo, porque nunca dele partirá.
Mas voltando à suposta carta, há no seu texto uma frase que me marcou por abarcar toda a ideia de dignidade e igualdade do ser humano que partilho; "não olharás de cima para nenhum homem se não for para o ajudar a erguer-se". É uma frase forte, fortíssima, perturbadora até.
Vem isto a propósito de não ter conseguido recorrer aos serviços de um engraxador de sapatos em mais de duas ou três ocasiões na vida. Nunca sei se devo fugir de um de cada vez que o vejo, ou se devo recorrer aos seus serviços. Dito de outra forma, apesar de saber que é um ofício tradicional em vias de desaparecer, sinto sempre imensa dificuldade em relacionar-me com o personagem, normalmente pessoa simpática e de trato agradável. E isso, por um lado, porque me perturba olhar de cima para uma pessoa que está ajoelhada a meus pés enquanto me limpa os sapatos, por outro, porque me parece que o preço que pago pelo serviço não lhe permitirá erguer-se e, no limite, nunca lhe permitirá recuperar a sua dignidade perdida momentaneamente, enquanto esteve ajoelhado.
Pode ser apenas problema meu, mas no que me toca, penso que já decidi que o ofício de engraxador de sapatos não sobreviverá com a minha ajuda.