quinta-feira, agosto 26, 2004

Azul

A luz diminuta filtrada através da fina rede do confessionário não permitira a Benedito ver mais que a tonalidade daqueles olhos. Azuis. De um azul intenso, brilhante, que lhe ficou gravado na memória para o resto da vida, como se outra cor não pudesse existir nem fosse possível uma criação diferente. Ficou fascinado, como nunca mais ficara desde o dia em que fora ordenado padre pelo bispo que igualmente apadrinhara os seus doze anos de seminário por recomendação do pároco lá da terra. O rigor dos Invernos no seminário , as frieiras das mãos forçadas a permanecer à noite fora dos cobertores, os castigos, as privações e as provações nada significavam quando comparados com a beleza singular daqueles olhos azuis, que só a Deus por certo se deviam.
O azul daqueles olhos perseguiram-no para sempre ao longo de todos os dias do resto da sua vida. Tão depressa amaldiçoara como abençoara Deus por lhos ter revelado depois de lhe ter reclamado e colhido a vocação. Benedito nascera numa aldeia pobre, encaixada nas montanhas a Norte do país, encostada à raia, e o seminário, como para tantos outros da sua geração, fora a única saída possível para alcançar uns estudos decentes. Fê-lo por respeito e apego ao pároco da aldeia e mesmo antes de se ordenar sacerdote jurou-lhe que seria padre para toda a vida. Achara justa a cobrança e honrou o compromisso com o preço que aceitara pagar.
Agora, realizara, essa jura maldita cerceara-lhe grandemente a felicidade e a própria vida, embora a tivesse sempre levado com ligeireza, minorando a raiva que por vezes lhe consumia a alma e o coração. Todavia, apenas agora, agonizando no leito de morte e sentindo a chamada do Criador pela última vez, Benedito permitiu-se enfim duvidar da Sua existência. Mas mesmo assim fechou os olhos e deixou-se arrastar pela torrente de lágrimas criadas pela recordação dos olhos azuis que contemplara anos antes e que nunca, nem agora, conseguira esquecer.