segunda-feira, maio 24, 2004

A tortura

Desde há semanas que vêm saltando para as manchetes dos principais órgãos de informação nacionais e internacionais sucessivas notícias que vêm dando conta das torturas e perversões perpetradas contra prisioneiros em cadeias irquianas por parte de soldados e guardas americanos. Fica ainda por se saber se tais comportamentos igualmente se verificam por parte dos soldados ingleses, visto que na passada semana se ficou a saber que grande parte das fotografias exibidas pelo Daily Mail era fruto de montagem, facto que acarretou a demissão do seu director.
Boaventura de Sousa Santos escreve um artigo assaz pertinente e deveras interessante na última Visão acerca da sociologia da tortura, desenvolvendo depois um paralelo com os motivos racistas que lhe são inerentes. Evidentemente, o racismo aqui deverá ser entendido em termos latos que não se ficam a dever apenas à cor da pele, mas igualmente às ideologias e concepções políticas, à discriminação religiosa e à própria condição social de carcereiros e prisioneiros.
Retira-se ainda daquele artigo a ideia de que o abuso é subjacente e inevitável nos membros de uma sociedade dominadora que vive presa e asfixiada pela falta de realização pessoal do indivíduo que a compõe, do indivíduo a quem ensinaram o conceito de comportamento perverso -e por isso proibido - mas que por isso é igualmente um ser reprimido. Pior, a esse indivíduo coarctaram ainda mais a sua liberdade afirmando que tal se deve à necessidade de segurança do Estado e dos seus semelhantes, por causa da ameaça que representa o país em cuja invasão ele agora participa.
Seguramente por isso, mas não apenas por isso, o poder conferido por uma chave ao carcereiro pode ser quase absoluto e, no segredo do cárcere, o prisioneiro torna-se no instrumento que lhe permite assumir livremente os seus comportamentos desviantes porque tudo lhe é permitido ao abrigo da segurança do seu Estado e da dos seus semelhantes. Mercê do auxílio da sublimação que fez dos seus comportamentos, o indíviduo torna-se numa mistura explosiva, sem racionalidade que lhe permita refrear os seus comportamentos que assim se tornam quase animalescos.
Mais, mesmo racionalizando, o carcereiro observa a realidade de Guantánamo e verifica com alívio que o seu Estado não é diferente nem melhor que a sua pessoa e encontra nessa realidade a justificação comportamental para os seus vis actos.

Transpondo esta realidade para o dia-a-dia das nossas cadeias e esquadras, porquanto é certo que nelas igualmente se verificam abusos e excessos embora em menor grau - mas a nossa realidade não é a de um país em guerra e semeado de caos - muitos desses abusos e excessos ficarão explicados em semelhante análise sociológica, sobretudo se enraízada numa análise ao racismo (reitere-se que em muito lato senso) e na simples perversão sexual do indivíduo que poderá estar subjacente em muitos desses comportamentos abusivos.

PS: Encontra-se em vias de ser concluída, apresentada e discutida uma tese de doutoramento, uma das poucas feitas em Portugal, sobre o tema do racismo. O seu Autor, João Filipe Marques, é fundador deste blog.