terça-feira, maio 11, 2004
Tatuagem
Lembrava-me de um camarada de recruta (colegas são as putas) dizer que as defensivas e as patrulhas começavam a viciá-lo. E que o jogo da ordem unida e da parada, que a carreira de tiro e a pista de obstáculos lhe traziam à memória os jogos da infância, substituídos os fuzis de madeira e os punhais de plástico por armas verdadeiras e o cheiro avassalador da pólvora e do rastilho. E que já só sonhava com explosões e pelotões operacionais e cenários de guerra. Encontrei-o ontem. Contou-me que era sócio-gerente de uma empresa de sucesso que comercializa flores de estufa. Falou-me dos filhos e da Mariana. Sorriu ao recordar a tapada de Mafra e o desenho dos seus muros, as noites sem dormir durante a semana de campo, o LGF 88 e os fios de tropeçar, as minas anti-carro, a farda número 3 enlameada, as balas tracejantes, os tiros de rajada, a HK montada num tripé. Disse «pois cá vamos andando». E via-se, por detrás do sorriso composto, que ao longo do tempo uma profunda e magoada tristeza se tinha agarrado à sua pele como uma tatuagem.