segunda-feira, agosto 25, 2003

Judicatura: poder absoluto?

Há bastante tempo que me questiono sobre a origem e fundamento do poder judicial. Nada de transcendente como se verá, mas passo a explicar a minha dúvida. Na base da organização de um Estado co-existem três poderes - Executivo, Legislativo e Judicial - o que acontece desde que Jean-Jacques Rousseau teorizou e doutrinou o assunto. Hoje, tal é mais ou menos pacífico e aceite de um modo global, excepção feita a alguns Estados que ainda existem pelo mundo fora. O poder executivo e o poder legislativo, num Estado de Direito Democrático, são indigitados em resultado de eleições secretas, universais, directas ou representativas. Nestas, o povo escolhe os membros - os primus inter pares - dos órgãos de soberania que hão-de legislar ou exercer as diversas potestas ou poderes públicos do Estado. De forma simplista, no caso português, os deputados das diversas forças políticas que compõem a Assembleia da República são indigitados em eleições representativas, por círculos eleitorais nacionais, sendo a força política mais votada normalmente convidada pelo Presidente da República para formar Governo, podendo optar por governar só - como aconteceu nos governos PS de 1995 a 2001 e PSD de 1985 a 1995 - ou coligada com outra força política como acontece no presente governo PSD/PP. O Presidente da República é eleito por sufrágio directo universal, em uma ou duas voltas. No âmbito das atribuições de cada um dos órgãos de soberania, ao Governo cabe executar as leis e os actos necessários à condução dos destinos do país - poder executivo - e à Assembleia da República legislar - poder legislativo - embora a assembleia possa delegar o poder de legislar no governo, tendo este, contudo, o poder próprio de igualmente elaborar leis e regulamentos. A Assembleia apresenta moções de apoio ou censura ao governo, mercê do seu mérito e o Presidente da República pode dissolver a assembleia da República. Pode igualmente exercer o seu direito de veto relativamente às leis que considere inconstitucionais, forçando a assembleia a revê-las, ou pura e simplesmente submete-as à fiscalização da constitucionalidade perante o Tribunal Constitucional, cujos juízes são nomeados pelo Presidente da República, sob proposta do governo. Como se vê, todo um enredo de poderes e contra poderes que evita a concentração ou o abuso.
E o poder judicial, onde se insere neste contexto? O acesso à judicatura, como carreira, faz-se pela frequência de uma faculdade de Direito, e posterior frequência de um curso com a duração de três anos no Centro de Estudos Judiciários - criação de Laborinho Lúcio, ex-Ministro da Justiça do Governo PSD 1991-1995. Tout court. Não há nomeação, não há sufrágio, não há nada de comparável ao que sucede com os demais poderes do Estado, facto que transforma este num poder especial. Poder forte, que lhe permite investigar e julgar um Presidente da República, ou submetê-lo a escutas telefónicas. Poder de prender um Homem, de o manter longe da sua família e até de extinguir o vínculo de filiação entre uma mãe e o seu filho. É ainda um poder independente, autónomo, e os membros (juízes) dos órgãos (tribunais) de onde emanam as decisões são irresponsáveis pelas consequências destas. E tal está correcto, devendo contudo ser ressalvado o abuso ou a falha grosseira, que não estão acautelados. Não há nomeações políticas, nem de outra ordem, entendendo-se que é juiz quem o quer e consegue ser, abraçando a carreira como se de um sacerdócio se tratasse. O problema está em que, originariamente, entendia-se que o juiz titular do cargo era uma pessoa virtuosa, sem defeitos, ou pelos menos pessoa dotada de bom senso e experiência de vida, enfim, pessoa sabedora e justa, e tanto bastava. E hoje, sabe-se, não é bem assim, tendendo os magistrados para serem pessoas muito novas, e sem grande experiência de vida, sobretudo ao nível do tribunal de comarca ou primeira instância. Tal não seria grave, se porventura mesmo assim se conseguisse perceber em que assenta o fundamento do grande poder conferido a uma pessoa para julgar o seu semelhante pela prática de um acto que muitas vezes essa própria pessoa – virtuosa – pratica reiteradamente no seu dia-a-dia (atente-se, por exemplo, na condução de veículo em excesso de velocidade; que um juiz encartado que nunca tenha praticado esta infracção, me atire a primeira pedra). É este o grande desafio da magistratura nos dias que correm. Não se discute o seu poder mas o seu fundamento e a sua legitimação. É que, se 1789 legitimou os demais poderes judicial e legislativo e acabou com explicação da origem e delegação divina do poder no rei, que permanece por explicar em muitos casos e que noutros se resolveu com a validação do exercício de tal poder pelos parlamentos nacionais de cada um dos estados monárquicos ditos democráticos, o certo é que muitas das monarquias modernas sobrevivem unicamente à custa do carisma do monarca ou do seu presuntivo sucessor (casos de William no Reino Unido e de Juan Carlos e Felipe em Espanha). Noutros casos, as monarquias modernas tornaram-se meramente folclóricas ou meros poderes moderadores dentro dos demais poderes de um Estado. Todavia, o busilis é que se um Estado vive bem sem rei, não sobreviverá, nunca, em última análise, sem juízes, daí resultando a necessidade de fundamentar tal poder e de por essa via, o legitimar.