terça-feira, janeiro 18, 2005

Partitura inacabada

Trémulo, desenhou o último símbolo na partitura. Nem precisou de dedilhar as notas no teclado marfim e ébano, tal a certeza que tinha no acerto da melodia. Reviu uma vez mais mentalmente o dedilhar dos dedos nas teclas e, sem um estremecimento de comoção, fechou a tampa do teclado do piano preto em que há muito não tocava. Detestaria para sempre aquela música, mas no entanto tinha de a ter escrito para dela se libertar; havia muito lhe não saíam da cabeças aquelas notas malditas, a sequência que mil vezes proscreveu. Altas horas na noite, um trautear insuportável apoderava-se dos seus sentidos e acordava enxaguado no seu suor dedilhando fervorosa e infinitamente de cabeça encostada à parede da cabeceira da cama aquela maldição que apanhou num concerto de Outono a que foi por acaso sem vontade. As suas notas, as notas dela, ela... onde estaria, volvidos cinquenta anos?... Como seria o seu rosto? Teriam as suas feições perfeitas sobrevivido, como a música terminada com a pressa de cinquenta anos, à fustigação do tempo? Um último suspiro solitário, silenciado, quando se sentava na cadeira de baloiço de vime, levou-o desta vida se, lhe permitir a esperança de uma resposta.