quarta-feira, abril 28, 2004

Michael Kohlhaas e a ordem do mundo

A queixa: «Todavia passaram meses e estava prestes a cumprir-se um ano sem que ele recebesse da Saxónia uma simples declaração acerca da queixa apresentada em juízo, e muito menos a sentença. Depois de ter várias vezes reclamado junto do tribunal, perguntou ao seu advogado, em carta confidencial, a razão de um atraso tão excessivo, sabendo então que a queixa tinha sido mandada arquivar em consequência da intervenção de uma alta personalidade. A uma nova carta em que o negociante manifestava o seu espanto e perguntava o motivo de tal coisa, o advogado informou que o barão von Tronka era aparentado com dois fidalgos, Hinz e Kunz von Tronka, um dos quais era copeiro e o outro camareiro do Príncipe. Além do mais, aconselhava-o a, sem se obstinar no recurso a vias legais, procurar recuperar os cavalos que se encontravam em Tronkenburgo, avisava-o de que o barão, que naquele momento se encontrava na capital, parecia ter dado à sua gente ordem para lhos entregar, e concluía pedindo-lhe que, se uma tal solução não lhe agradasse, o dispensasse, pelo menos a ele, de insistir posteriormente na mesma causa.»

O despacho: «Decorrido esse tempo, tal como tinha previsto, Herse regressou do Brandeburgo, um pouco aliviado pelo tratamento, e com uma carta do governador acompanhada por um longo despacho. Naquela dizia-lhe sentir-se pesaroso por não poder fazer nada, afinal, pela sua causa; remetia-lhe o despacho recebido da chancelaria de Estado e aconselhava-o a retomar os cavalos deixados no castelo de Tronka, esquecendo o restante da sua queixa. A deliberação da chancelaria tinha o seguinte tom: ele, Kohlhaas, segundo o tribunal de Dresde, era um queixoso que não tinha mais que fazer; o barão, em casa de quem tinha deixado os cavalos, não lhos retinha de modo algum; que os mandasse buscar ao castelo ou indicasse onde lhe deviam ser enviados; que, de qualquer modo, não incomodasse mais a chancelaria de Estado com semelhantes intrigas e querelas.»

Restabelecer-se a ordem: «Cada vez que ouvia um ruído no pátio olhava para lá, na mais tormentosa expectativa que alguma vez lhe agitara o coração: a de ver os criados do barão aparecerem para lhe devolver os cavalos magros e esfomeados, talvez com palavras de desculpa, único caso em que a sua alma, educada na escola da vida, se teria resignado a qualquer coisa que não correspondia de modo algum àquilo que sentia. Mas pouco tempo depois veio a saber, por um viajante seu conhecido, que no castelo de Tronka continuavam a utilizar os cavalos nos trabalhos de lavoura do mesmo modo que os animais do barão, e, através da dor de descobrir o mundo em tão tamanha desordem, teve a alegria de ver restabelecer-se a ordem no seu próprio coração.»

Intimação: «[Michael Kohlhaas] sentou-se e redigiu uma sentença na qual, em nome do direito das gentes, condenava o barão Venceslau von Tronka a devolver no prazo de três dias, entregando-os em Kohlhaasenbrück, os murzelos que lhe tirara e arruinara nos trabalhos da lavoura, devendo cevá-los pessoalmente nas suas cavalariças.»

A visita a Martinho Lutero: «Lutero, com uma expressão contrariada, juntou os papéis que tinha espalhados na escrivaninha e calou-se. A atitude de desafio que aquele homem singular tomava em relação ao Estado contrariava-o, e, voltando a pensar na intimação que ele enviara de Kohlhaassenbrück ao barão, perguntou-lhe o que pretendia ele afinal do tribunal de Dresde. Kohlhaas respondeu:

- O castigo do barão em conformidade com a lei, a restituição dos cavalos no estado anterior e indemnização pelos prejuízos que tanto eu como o meu criado Herse sofremos com a violência de que fomos vítimas.»

Heinrich von Kleist: Michael Kohlhaas, o Rebelde. Editorial Inova, Porto, 1973. Tradução de Egito Gonçalves.