terça-feira, junho 14, 2005

Companheiro Vasco

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Escrever sobre Vasco Gonçalves. Tinha pensado até em nada dizer, como nada disse aquando do óbito de João Paulo II. E no entanto, é alguém a que não consigo ficar indiferente. Obviamente, escrever sobre alguém implica uma pesquisa, saber-se algo sobre a pessoa em causa, descobrir um pouco mais que aquilo que se ouve na rua ou que nos é trazido pelo vento da memória. De Vasco Gonçalves vêm-me à memória as nacionalizações, a chefia dos sucessivos governos provisórios com presença de todos os partidos, em condições inimagináveis nos dias de hoje, os militares na rua, tudo isto numa idade em que os meus sentidos estavam mais despertos para as brincadeiras de rua que para os ares da governação.
Mas dizia, o tempo - outra vez ele - encarregou-se de me pregar uma partida e proporcionou-me um encontro com o General. E assim - surreal - no dia 28 de Maio de 2005, do outro lado da linha telefónica, um amigo comum perguntou-me se queria acompanhá-lo numa visita e conhecer Vasco Gonçalves. Irresistivelmente, despi-me de todos os preconceitos e, momentos depois, acompanhado pela minha filha mais nova, ainda criança de colo, encontrei-me cara-a-cara com um dos arquétipos da revolução dos cravos. Fui recebido de forma exemplar pelo General e por sua esposa - Dª Aida - na casa onde há dias faleceu. Quando entrei, o General lia um livro sobre história das relações diplomáticas, de um autor francês cujo nome me falha. O porte do militar, alterado pelos anos, era diferente de tudo quanto a memória me permitia evocar, ainda que o tivesse visto a discursar uma vez na Assembleia da República, creio que na cerimónia comemorativa dos 25 anos do 25 de Abril. Mas o tempo não perdoa aos homens.
Eis-me, pois, a apertar a mão do Companheiro Vasco. Olhos nos olhos, um olhar embaciado que continuava a acusar sagacidade e profundidade. E uma profunda humildade do gesto e das palavras, alicerçada na crença da bondade das suas convicções. Se era comunista? Confessou que nunca foi filiado. Acompanhava e gostava de se manter informado do que se passava no interior do partido, mas é sabido que entre si e Álvaro Cunhal não havia um entendimento perfeito. Um homem de esquerda, sem dúvida, que defendia a nacionalização da banca e dos sectores estratégicos da economia.
Vi-lhe permanentemente um carácter e um semblante serenos e sem o mais pequeno índice de revolta ao longo das quase duas horas durante as quais se prolongou a visita. Abordaram-se assuntos vários e o tempo voou. Quase no fim da conversa, Vasco Gonçalves, que por diversas vezes olhou para a minha filha nos momentos em que a tive ao colo, perguntou-me se lhe permitia que lhe pegasse. Impossível recusar-lhe esse momento. Visivelmente emocionado, o General pegou-lhe com todo o cuidado, olhou-a de frente, chamou-a pelo nome e sorriu-lhe. Ela retribuiu-lhe o sorriso franco, na inocência dos seus cinco meses. "Tens uns olhos que apetece mergulhar neles", murmurou. "Sabe? só tive um neto" - disse - "já tinha saudades". "Tome, mime-a". Despedimo-nos, acompanhou-nos à porta e acenou-nos da entrada, agradecendo a visita.
Mimá-la-ei General, mimá-la-ei.
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