sábado, janeiro 31, 2004

A função pública

Os estragos da campanha que tem vindo a ser feita contra a função pública hão-de perdurar por muito tempo. Têm um efeito terrível. Os muitos que já nada fazem continuarão a fazer o mesmo, legitimados agora por uma constatação oficial e institucional. Os muitos que trabalham e sempre trabalharam a sério é como se sentissem que estão a ser multados por excesso de zelo.

Reclusão

Depois de um breve período de semi-reclusão, regressemos, pois, ao mundo real: ao dos jornais e dos noticiários televisivos. Sabemos há muito que só acontece o que é notícia. Que os nossos assuntos de conversa se resumem ao que passa o crivo dos critérios editoriais. Por isso é estranho: é como se alguém tivesse vivido por mim estes últimos dias. Mais estranho ainda: intuir que era possível viver assim, num universo onde não se discute se o sr. dr. Alberto João Jardim poderá ser o próximo presidente da Assembleia da República nem os comentários ubíquos de Adelino Granja ou Pedro Namora misturam num mesmo tempo de discussão o processo da Casa Pia e o futuro do Partido Comunista.

sexta-feira, janeiro 30, 2004

Tapar o sol

Recolhes a peneira, a rede mosquiteira, as redes da armação, as redes metálicas de malha fina. As areias movediças vão ganhando espaço, desvias-te por instantes, sobes o talude quase a pique, instalas-te num plano mais elevado, juntas a tralha com método. Levantas então um dos objectos com os dois braços esticados na direcção dessa luz intensa, escolhes o ângulo certo. Mas a luz atravessa as malhas: um labirinto geométrico de sombras desenha-se no teu rosto, espalha-se no chão. Pegas de novo na peneira. E ficas assim a tarde, tentativa após tentativa, a ver se com ela consegues, por uma vez que seja, tapar o sol.

quinta-feira, janeiro 29, 2004

A comunicação

Lembras o tempo em que as palavras se erguiam contra a noite, subindo degraus, e uma linha separava com nitidez a água e a terra. Depois vieram as frases, e alguma coisa veio com as frases que continha o excesso, mas também a exaltação, mas também o que julgavas tão afastado do logro, da sombra, da insídia. A elas te rendeste. Às palavras, às frases, às suas imagens, a esse ruído. E um dia lamentas já não haver segredos para contar.

quarta-feira, janeiro 28, 2004

Retenções na fonte

Procuramos ainda no passado as explicações do logro. Levantamos as pedras onde adormeceu o escorpião da sombra, mergulhamos nos lagos à procura de papéis antigos, recolhemo-nos às salas iluminadas por janelas altas a decifrar manuscritos e variações nas cartas militares. Tudo pode justificar a omissão, o ardil. Mas olhamos depois as mãos em concha, inquietos, e é como se já não pudéssemos reter a água de nenhuma fonte.

Perceber todas as cousas

«Um especialista é um homem que sabe qualquer cousa de uma cousa e nada de todas as cousas. De uma cousa não se pode saber senão qualquer cousa, porque o conhecimento humano é limitado. E, para perceber qualquer cousa seria preciso perceber todas as cousas, pois uma cousa é parte de todas as cousas. O especialista, pois, é um homem que não sabe nada e vive d’essa sciencia.
O especialista é útil apenas quando a sua especialidade é tam restricta que não tem importância. Pode haver bons especialistas de pregar pregos; não pode haver bons especialistas de construcção de civilizações. Há muito bons cavadores e nenhum bom psychiatra.
O especialista é um homem que tem a opinião dos outros, embora sobre um só assumpto. O especialista é incapaz de iniciativa. Porisso os especialistas são muitos e felizes.»

Álvaro de Campos
In Vida e Obras do Engenheiro, Ed. Estampa. Org. Teresa Rita Lopes.

terça-feira, janeiro 27, 2004

O silêncio

Há um instante preciso em que o tempo se suspende. Num mundo paralelo, longínquo, continuará o rumor das raízes das tílias a crescer, do musgo a crescer nos muros de pedra, dos óxidos a crescer nas fasquias abandonadas das obras, das maçãs do cedo a crescer nas hortas viradas ao sul, da tinta a descascar nos alçapões das casas da infância. Mas o céu, nesse instante preciso em que o tempo se suspende, reflecte apenas o vazio de um mundo que deixou de existir ou de fazer sentido.

segunda-feira, janeiro 26, 2004

Os regressos

Há um muro de cimento que se ergue entre quem espera e quem parte. Um mar de poeira levantada, estilhaços duma sombra a crescer desmesurada no asfalto e nos terreiros onde uma vez se dançou. Há quem um dia regresse e só então compreenda, atravessando o pátio ou subindo os degraus, que nunca como nessa altura esteve tão longe de casa, tão longe das coisas que desde sempre lhe pertenceram.

domingo, janeiro 25, 2004

[Actualização]

Este foi um jogo em que ninguém ganhou. Em que nem sequer houve repartição de pontos. Foi um daqueles raros jogos em que perdemos todos.

A paz, o amor, a concórdia

As raras vezes em que, por distracção, tropeço no Roberto Real, fico sempre com medo de que o oceano Atlântico desapareça com tanta aproximação de Portugal ao Brasil e vice-versa, ou que, quando muito, se transforme numa regueira que é possível atravessar a vau entre Esposende e Aracaju.

Fehér

Que estranho... De repente, e até ver, é como se fôssemos todos do Benfica.

A noite

Já lá vem a noite
com seu abandono
com suas sandálias
tão mortas de sono.
A noite imperfeita
nos ramos mais altos
perdida nas áleas
cinzentas do outono

Já lá vem a noite
talhada na cólera
num rumor de pálpebras
que a sombra demora

Podia dizer-te
que nem o teu rosto
afasta a insónia,
nenhuma palavra,
nenhuma memória.
Podia esquecer-te
e acender o lume,
sentar-me à lareira,
fechar as portadas

Mas a noite cresce
com suas sandálias
num rumor de pálpebras
que a sombra demora

E é só o teu nome
o que recordo agora

sábado, janeiro 24, 2004

Outra metodologia

José António Saraiva, na sua Política à Portuguesa, escreve: «Hesitamos, mesmo, sobre se valerá a pena o país continuar a existir - ou se não será mais sensato integrarmo-nos na Espanha, porque os espanhóis nos governariam melhor».
A ideia é excelente. Mas coloca inúmeros problemas de ordem prática. Alguns, quiçá, inultrapassáveis. Proponho outra metodologia: José António Saraiva pede a nacionalidade espanhola e passa a viver em Badajoz. Ele fica melhor governado, e nós sempre avançávamos um bocadinho. Sempre era um começo.

sexta-feira, janeiro 23, 2004

Primeiro de Março

O passado é uma armadilha onde acabamos sempre por cair.

quinta-feira, janeiro 22, 2004

Ainda as amendoeiras, lamento...

Um amigo cujas opiniões muito prezo aconselhou-me aqui há uns dias a abandonar o tom lamechas e lírico do blogue e a passar a textos «interventivos». Explicava: «há por aí tanta coisa por onde intervir, e tu a falares dos fins de tarde e das amendoeiras em flor. Começa a não haver pachorra».
Aquilo tocou-me. E jurei para mim mesmo que não haveria de deixar aqui uma única referência aos azuis do crepúsculo nem às flores da Amigdalus comunis durante um mínimo de três semanas.
Pois este meu amigo hoje telefonou, eufórico, a perguntar-me se já tinha reparado na explosão de branco que as amendoeiras desenhavam na berma e nas imediações da estrada do Colégio do Alto.
Tive, claro, que lhe responder que não. Que ainda não tinha reparado. Que andava um bocado ocupado a ver se encadeava uns textos «interventivos».

quarta-feira, janeiro 21, 2004

Cinco quê?

O número de emigrantes portugueses ronda praticamente os 5 milhões? O número de portugueses que emigrou em 2001 foi o menor dos últimos 20 anos? E mesmo assim emigraram mais de vinte mil portugueses? Quem é que anda a inventar estas notícias?

Por amor de Deus,
nós não emigramos. Quem
emigra
são as brasileiras
e os ucranianos.

Má fila

A tolerância zero na EN 125, depois do tempo dos helicópteros a sobrevoar a via e o mais que se sabe, deu nisto: ultrapassagens em traço contínuo, desrespeito pelo vermelho nos semáforos controladores de velocidade, entradas nas rotundas à má fila, motociclistas em aceleração deitados sobre o depósito da máquina como se estivessem nas pistas de Jerez - o diabo a quatro.
Serei injusto, mas às vezes penso que a tolerância zero teve como principal objectivo apanhar-me no radar, numa manhã quase sem trânsito, quando circulava a despropósito a 60 Km/h na recta do Livramento.

terça-feira, janeiro 20, 2004

Um cometa (2)

[versão simplificada, para o T´z´ compreender]

Um avião levantou voo há cinco minutos do aeroporto de Faro.
Mal acomparado, é como se um cometa, neste fim de tarde, por um instante se elevasse no céu e deixasse um rasto de um amarelo quase vivo, quase incandescente, num percurso em sentido inverso, de baixo para cima, juntando fragmentos, contendo numa linha estreita as pequenas partículas que antes dispersara, contrariando a gravidade, subindo muito devagar, quase em câmara lenta.

O futebol

São dez da manhã. Tomo uma bica ao balcão. A meu lado, um sujeito bebe cerveja. Vai na segunda. Uma jovem aparece à entrada, acena-lhe, e ele responde: «Já vai». Na televisão começou há pouco a retransmissão do Belenenses-Estrela da Amadora. O sujeito da cerveja garante que foi um belíssimo jogo. Que vale a pena rever. Que o Estrela virou o resultado nos últimos cinco minutos. A jovem aparece de novo à porta do café. «Já vai», rosna o artista. Saio para a rua e vejo a jovem encostada à parede.
Não posso deixar de pensar que era melhor esperar sentada. Ou então deixá-lo. E fico a tremer de aflição só de imaginar que provavelmente não o deixa porque está apaixonada por ele.

segunda-feira, janeiro 19, 2004

Um cometa

Por instantes, neste fim de tarde, um cometa eleva-se no céu e deixa um rasto de um amarelo quase vivo, quase incandescente, num percurso em sentido inverso, de baixo para cima, juntando fragmentos, contendo numa linha estreita as pequenas partículas que antes dispersara, contrariando a gravidade, subindo muito devagar, quase em câmara lenta.
Mal acomparado, parece um avião que tivesse levantado voo há cinco minutos do aeroporto de Faro.

Perder o emprego é um «problema friccional»

Jaquinzinhos tem sempre razão. Porque tudo aqui é comutável em euros, em dólares, em ienes. As grandes questões do mundo discutem-se de máquina calculadora em riste. Fazendo contas. Pressionando teclas. E, portanto, se as contas dão saldo positivo, que contrapor? A economia de mercado não tem que funcionar? Tem. E a aritmética é como o Neoblanc: não mente.
Com o Jaquinzinhos aprendemos a olhar o mundo de um modo diferente. Por exemplo: as amendoeiras. As amendoeiras em flor. Muito bonitas, tudo bem. Mas quanto é que cada uma destas árvores contribui para o PIB? O quê? Uma insignificância? Ontem puxei da máquina calculadora e juro que tive ganas de cortar pela raiz este reles pomar de cinco mil metros quadrados e meter na Câmara um projecto de loteamento.

domingo, janeiro 18, 2004

Não digas mais nada

Sobre o caso das mulheres de Aveiro julgadas pela prática de aborto, João Pereira Coutinho, no Expresso, entende que: a) «o aborto não deve ser descriminalizado»; b), «estas mulheres não deviam ser condenadas».
Pronto. Não digas mais nada. A gente percebe.

De pé atrás

Já quase não há memória do levante. Não há uma nuvem. Ou há uma ou outra nuvem que passa vagarosamente sobre a península. Não chove. Não está frio. Uma leve brandura. Uma ligeira humidade vogando nas açoteias e nos degraus do pátio. As amendoeiras em flor. O viburno exuberante. O céu iluminado pelas estrelas. A lua em quarto decrescente.
A gente desconfia. É como se o Inverno estivesse a preparar alguma.

sexta-feira, janeiro 16, 2004

Ficções

aqui contei a história: o meu exemplar do Livro desapareceu-me da biblioteca. Por isso, quando o Público o reeditou em Julho do ano passado, na Colecção Mil Folhas, aproveitei logo para comprar um exemplar. Chegado a casa, verifiquei com espanto que faltava uma das minhas peças preferidas: «A aproximação a Almotásim». De facto, na edição do Público (pelo menos no meu exemplar...), de «Tlön, Uqbar, Orbis Tertius» passava-se de imediato para «Pierre Menard, autor do Quixote», sem que ficassem quaisquer sinais desse relato de um romance publicado em Bombaim nos anos 30.
Hoje descubro que é prática normal os livreiros, ou os funcionários das livrarias, ou ambos, retirarem um ou outro livro da estante, levá-lo para casa e, no dia seguinte, arrumá-lo de novo (ver Fiama, post de 12 de Janeiro) . Como vêem, tenho razões para suspeitar que seja mais grave: que, tendo um livro em casa, e gostando particularmente de um conto, de um poema ou de um capítulo de romance, o livreiro, ou o funcionário da livraria, possa fazer (ainda que involuntariamente) com que esse excerto desapareça do livro.
Não me parece mal. Só lamento é que tenha sido logo precisamente com o meu exemplar...

quinta-feira, janeiro 15, 2004

Nos intervalos

Parece que 27% dos rapazes agride fisicamente as namoradas. E que 43% das raparigas agride verbalmente os namorados. Acredita-se que nos intervalos da retórica hostil ou da bordoada arranjem uma ou outra coisa interessante com que se entreterem.

Enfim, se não for muito incómodo

No muro da escola Tomás Cabreira, em grandes letras pintadas a tinta vermelha, um estudante escreveu: «Sr. Professor, ensine-me a questionar». Este pobre aprendiz de revolucionário, que tão reverentemente e com tanto salamaleque se dirige ao suposto violador de consciências, o mais certo é que passe o resto da vida a toque de caixa, cerimonioso, a responder a mais perguntas do que a colocar questões. Assim não vai lá.

As imagens do passado

O lume do outono a
insinuar-se nos púcaros com sede
a flor inúmera de junho
as mãos desenhadas de
memória onde cresce o abandono
como se ninguém pudesse sobreviver
às imagens do passado

Às vezes é o deserto o
que parece atar a cada um
dos nossos nomes
a sua exígua voz iluminada
pela sombra
e nos transporta a uma ausência que
não tem raízes nas palavras
e no entanto nos pertence
até ao mais fundo
de nós próprios

quarta-feira, janeiro 14, 2004

[Poema antigo]

Com as lágrimas deste coração
inútil a caiar a tua ausência,
os substantivos da memória
crescem junto ao musgo da dist
ânsia: quem chegar de longe pode
agora à sombra do seu caule
abrigar em silêncio tudo quanto
um corpo tem para morrer, ou
fazer do desejo a flor mais fr
ágil da pequena concha do olhar.

terça-feira, janeiro 13, 2004

A ordem do mundo

Apesar dos dezassete ou dezoito graus, incomoda-me ver estes adolescentes loiros de calções, manga curta e chinelas de plástico a descer a avenida da cidade como se estivessem na praia. Não apenas por razões estéticas. É que estamos no Inverno. E a temperatura (mais grau, menos grau...) é apenas um pormenor que não justifica alterações à ordem do mundo.

segunda-feira, janeiro 12, 2004

Memórias de um náufrago

O MAR
O mar é
uma ilha
rodeada de terra
por todos
os lados

A NENHUM PORTO
A nenhum porto
se regressa
sem morrer

O CORAÇÃO
No inverno
o coração
é a única âncora
que se desprende
do lodo

MARÉ
O que a maré
leva
nem metade
traz

domingo, janeiro 11, 2004

A natureza

O verde escuro das alfarrobeiras a servir de contraste a esse branco, a esse azul, a essa cor de rosa fluorescente das amendoeiras em flor. Olho o pomar contra o céu anil do fim da tarde ou contra as paredes do armazém de frutas, a água do tanque, a terra castanha, o muro de cal a delimitar a propriedade. Mas sei que toda esta luz, toda esta sombra, só é um milagre porque vem nas páginas numeradas dos romances.

As mentiras da noite

Nestas noites de lua cheia, olhando o mar, chegamos a pensar que a luz desenhada nas suas águas é a luz primeira e verdadeira, e que a lua, em rigor, não é mais que o reflexo da luz que nasce nas águas.

Os sábados

Há quem insista no refogado. Mas a canja de perdiz com grão deve levar em cru o pimento verde e o pimento vermelho, o alho, a cebola. O grão há-de entrar no tacho aquando da perdiz, acompanhado de uma folha de louro. Mas o segredo final, depois do arroz, é a hortelã da ribeira, já sobre a canja derramada no prato. Sendo que da ribeira quer dizer isso mesmo: aí recolhida.

sábado, janeiro 10, 2004

[Os prédios]

A noite deixa os seus vestígios
onde mais a sombra permanece em vindo a
própria luz e o lume: nos arames e
nos esticadores da roupa pendurada nas varandas,
nas espias de corda entrelaçada que
suspendem as antenas,
nas tábuas das cancelas velhas dos prédios,
nas fasquias das obras.

Os sacos plásticos

Depois de uma breve viagem pela blogosfera, fico com a estranha sensação de que, logo, quando comprar o Expresso, serei o único a adquirir um exemplar do semanário dirigido por José António Saraiva.

sexta-feira, janeiro 09, 2004

Adenda ao post anterior

Não, não como meixão. Não sou peixófilo.

quinta-feira, janeiro 08, 2004

Duas versões

[Versão infantil para as criancinhas adormecerem] É uma aventura fascinante. As enguias nascem no Mar dos Sargaços. Os juvenis, aproveitando as correntes do Atlântico, percorrem milhares de quilómetros, aproximam-se dos estuários e sobem os rios. É aí que vivem durante dez ou quinze anos. Mais tarde hão-de fazer a migração em sentido contrário, a caminho do Mar dos Sargaços, onde se reproduzem e garantem a continuidade da espécie.

[Outra versão] As enguias nascem no Mar dos Sargaços. Os juvenis, aproveitando as correntes do Atlântico, percorrem milhares de quilómetros, aproximam-se dos estuários e são apanhados com redes mosquiteiras quando começam a subir os rios. O Guadiana, por exemplo. Nesta fase, às enguias dá-se o nome de meixão ou angula. Como o petisco começa a ser cada vez mais escasso, o preço do juvenil pode ultrapassar os 400 € o quilo. A técnica da rede mosquiteira, claro, é proibida por lei. Mas o meixão vende-se nos restaurantes. Aí não há problema. Existem mesmo brochuras que o publicitam, sendo que parece não morrer mal de todo com molho picante. E é aproveitar enquanto é tempo: a espécie está ameaçada e um destes dias não teremos molho deste com que lamber os beiços.

quarta-feira, janeiro 07, 2004

Bem, com argumentos destes...

Já se sabe que os racistas acham que somos todos iguais - «no entanto»... E que os empreendedores imobiliários se reclamam invariavelmente herdeiros da mais pura tradição ambientalista - «não obstante»... Pois ontem à noite, a meio da conversa telefónica sobre as previsões do caudal do rio Beça nos primeiros dias de Março, um amigo entendeu, aparentemente fora de contexto, reafirmar-me a sua crença absoluta na igualdade entre os sexos. Fiquei logo de pé atrás, a temer a adversativa: «Porém, diga-se em abono da verdade que não existe mulher à face da terra que saiba pescar à pluma seca»...

Assim não vale a pena

Já chegaram as primeiras imagens de Marte, em alta resolução e a cores. Era o que se temia. Nem uma árvore: um negrilho, um carvalho negral, uma amendoeira. Nada. Tanto dinheiro investido, e é isto.

terça-feira, janeiro 06, 2004

De automóvel em riste

O Algarve é mais bonito de comboio. Sendo que, apesar dos conhecidos problemas do modo ferroviário regional, há troços com horários decentes e com tempos de percurso competitivos com o automóvel. Em particular no Sotavento. Quem vive em Cacela e trabalha em Faro, por exemplo, devia ser proibido de se meter à estrada, diariamente, e orgulhosamente só, de automóvel em riste. Mas nós, alarves, recusamo-nos a usar os transportes públicos se tivermos carro. E todos temos carro (ou vários). E portanto é isto:
No Algarve, «o reforço do uso do automóvel ligeiro pelos residentes nas deslocações, como condutores ou como passageiros, é talvez o aspecto mais preocupante do cenário que esta análise nos propõe. Assumindo valores que superam metade do conjunto de deslocações, ultrapassando mesmo o que se verifica nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, este padrão corresponde a uma situação de ausência de organização dos transportes colectivos e a um consumo energético completamente alheio às preocupações e necessidades das sociedades modernas» (João Guerreiro, Peter de Sousa e Vítor Teixerira, in Sociedade e Território, Dez. 2003).
É uma vergonha... Começando pelo signatário, que, apesar das recorrentes promessas de mudança de hábitos, ainda faz parte destas estatísticas paradoxais...

Inquéritos

A elite empresarial portuguesa confia que 2004 será melhor do que 2003. Quase metade dos portugueses acha que a situação do país em 2004 vai ser pior que em 2003. Neste tipo de inquéritos, de um modo geral, tendemos a responder perspectivando o nosso caso específico. É assim provável que ambos tenham razão.

segunda-feira, janeiro 05, 2004

Tudo normal

Recomeçaram as longas filas de trânsito na 125; as corridas e o riso das crianças no pátio da escola; as pessoas de pé nos autocarros do fim da manhã; os automóveis estacionados nos passeios; os senhores agentes da autoridade a levantar autos de notícia aos automóveis estacionados nos passeios; a discussão sobre o défice; a fisioterapia. A bem dizer, 2004 começou hoje.

domingo, janeiro 04, 2004

Sem nuvens

Foi uma noite bonita. Não apenas pelo queijinho de Serpa e pela reserva de 1999 da Casa de Santar.

Sporting

O país deve estar parado. Eu vou parar agora.

Auto-estima

Nem tudo são más notícias. Parece que a TVI continua a perder audiências.

sábado, janeiro 03, 2004

A incúria

Podíamos ser contra o estacionamento automóvel em cima dos passeios. Não somos. Estes loteamentos foram concluídos em anos recentes. Em alguns dos lotes não foram ainda retirados os andaimes e as fasquias das obras. E no entanto já não é possível estacionar. Estaciona-se nos passeios. Porque os terrenos junto à praia, agarrados às dunas e à vegetação dunar, são demasiado valiosos para que, num tempo de crise, nos dêmos ao luxo de desperdiçar índices de construção em metros quadrados de estacionamento ou espaços verdes (contrapartidas legalmente previstas e que o acto de licenciamento deveria acautelar).
Entretanto, numa segunda linha, avançam já as máquinas a remover o piorno e a escavar os alicerces de novas moradias em banda e novos blocos de apartamentos. Podíamos ser contra este triste espectáculo de encaminhar os esgotos sem tratamento para as águas do mar. Não somos. Estes loteamentos foram construídos, e estão a ser construídos, antes de se concluírem os sistemas de tratamento de águas residuais. Porque não podemos esperar. Porque não nos podemos dar ao luxo de recusar investimento privado, de desaproveitar projectos estruturantes.
Podíamos ser contra a destruição da Paisagem. Podíamos ser contra o desleixo e a ignomínia. Contra a negligência e a incúria. Não somos. E portanto está certo.

quinta-feira, janeiro 01, 2004

Não peço mais, Senhor

«Não peço mais, Senhor, que o branco da geada em sendo, nas encostas frias, o seu tempo. A chuva alimentando o abismo. O vento, o sol na primavera. A neve, quando dezembro adormece e parece que fica vagarosamente à sua espera. Não peço mais, Senhor, que o lume da manhã escondido contra o pátio. A luz dos púcaros, dos vasos. A água das raí­zes. O pano antigo em cima da masseira, a alegria verdadeira das crianças breves e felizes. Não peço mais, Senhor, que um fruto iluminando a terra».